Saúde e desenvolvimento: evento debate a integração de políticas para um novo Brasil
O entendimento das políticas sociais como caminho para o desenvolvimento do país – e não apenas como iniciativas compensatórias – foi enfatizado no webinário Saúde e Desenvolvimento, o terceiro da série Proposta de política para um novo Brasil, promovido pela Rede de Pesquisa em Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist), do Instituto de Economia da UFRJ, e pelo Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Realizado de forma remota, em 15/9/2022, o evento foi um convite a pensar fora da caixa e reuniu como palestrantes o coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, Carlos Gadelha, e o professor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Naomar de Almeida-Filho, com moderação do professor José Cassiolato, coordenador da RedeSist e professor associado do Instituto de Economia da UFRJ (IE/UFRJ). A abertura contou com os professores Carlos Pinkusfeld Bastos, diretor-presidente do Centro Internacional Celso Furtado, e Helena Lastres, também coordenadora da RedeSist, e as exposições dos palestrantes receberam comentários das professoras Raimunda Monteiro, professora e ex-reitora da Universidade Federal do Oeste do Pará, e Ana Lucia Tatsch, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editora da revista Análise Econômica editada pela universidade.
Conforme destacou José Cassiolato, o tema do webinário, voltado à Saúde, foi escolhido de forma precisa, tendo em vista o momento de decisão pelo qual passa o Brasil. “Temos uma série de desafios, alguns de longa data, que se mostraram significativos em 2007/2008, com o aprofundamento da crise mundial que culminou com estagnação da economia, aumento brutal da desigualdade no planeta e aprofundamento da submissão da economia aos ditames do capital financeiro”, apontou. “Com a crise aguda da pandemia de Covid-19 e o conflito militar que assola o continente europeu neste momento, esses desafios foram acelerados, constituindo-se em entrave civilizatório do século XXI e exigindo compreensão e enfrentamento”, considerou, observando que esse enfrentamento aponta para a necessidade de novos modelos “que se centrem na manutenção e enriquecimento da vida humana”.
Pinkusfeld lembrou que o conceito de desenvolvimento “sempre esteve ligado corretamente a acumulação de forças produtivas, e o Brasil até os anos 80 foi bem-sucedido nessa trajetória”. No entanto, acrescentou, foi malsucedido no que diz respeito à capacidade de inclusão social e melhoria da vida das pessoas de maneira geral. “As ideias a serem debatidas neste seminário buscam acabar com essa dicotomia e pensar as políticas sociais – em especial a intervenção do setor público na economia, por meio das compras públicas – como forma de desenvolver o país”, observou o economista e professor.
“Temos defendido desde o início deste século, e a partir das pesquisas realizadas pela RedeSist, que, no Brasil, os sistemas e arranjos produtivos e inovativos centrados na saúde e demais serviços públicos essenciais são os principais portadores de futuro e deveriam ocupar o centro da agenda de políticas”, destacou Helena Lastres. " Essa percepção foi ainda mais realçada na pandemia, que evidenciou a estreita articulação entre saúde e um futuro sustentável”.
O Estado moderno, inventado para ser um instrumento de promoção de equidade e garantia de direitos é um Estado promotor de desigualdades sociais. Essa é a hipótese (Naomar de Almeida Filho)
Em sua palestra, o professor Naomar de Almeida-Filho ressaltou a importância da palavra humano para qualificar o desenvolvimento, ao abordar o tema Desenvolvimento humano e saúde no Brasil, e registrou sua “saudade” da palavra soberania, “que só aparece em nossa lembrança”. Conforme definiu Naomar, o Brasil é um “caso de globalização subordinada”, que vem se radicalizando com retrocessos e efeitos perversos e diretos sobre o cotidiano, em uma sociedade com desigualdade já estrutural. “Não se trata só de lidar com uma versão espelhada e perversa do liberalismo. É isso em uma escala sem precedentes e com contradições internas”, observou.
De acordo com o professor, o discurso sobre a liberdade, caro ao Iluminismo, vem sendo utilizado “para racionalizar sobre a questão econômica” e apropriado de forma individualista. “Liberdade sem igualdade e sem fraternidade”, resumiu, observando um “recuo” no projeto de bem-estar social e a conformação de um Estado gerador de mal-estar social. Para Naomar, o Estado brasileiro descumpre os preceitos do Estado moderno, “inventado para ser um instrumento de promoção de equidade e garantia de direitos”. Trata-se, assim, de um Estado promotor de desigualdades sociais: “É essa a hipótese”, afirmou, apontando que Saúde e Educação são instrumentalizadas de modo a reproduzir iniquidades.
“Uma minoria ganha incentivos fiscais, tem acesso a uma assistência privada de melhor qualidade, com renúncia tributária, e garantia de utilização dos serviços de alta complexidade na rede pública, que, nesse caso, é a de melhor qualidade e gratuita. Isso resulta em melhoria e mais capital político para essa minoria social. É um ciclo dominante de reprodução das desigualdades com base na saúde”, descreveu, lembrando que o Estado que concede esses privilégios a uma minoria é financiado pela maioria pobre, por meio de tributação compulsória pelo consumo e pelo modelo regressivo de impostos. “Essa maioria pobre tem cobertura baixa, acesso reduzido, serviços públicos arruinados, com déficit de qualidade claro, o que resulta em baixa qualidade no serviço prestado e exclusão social, contribuindo para que essa maioria pobre se reproduza como pobre”.
Naomar lembrou que a Constituição brasileira é “avalista da construção de uma sociedade democrática” e tem a equidade como direito implícito. No entanto, prosseguiu, se os contornos do Estado e do mercado são claramente definidos no texto, o mesmo não ocorre com o espaço destinado à sociedade. “A Constituição faz equivaler o público ao estatal e o privado ao mercado e deixa dois espaços não definidos – a sociedade e a comunidade. Isso permite uma política que perverte o conceito de comunidade e traz para a sociedade elementos preocupantes que confirmam esse mal-estar social”, observou.
O pesquisador convidou a uma reflexão: como seria o país, se tivéssemos uma sociedade justa e solidária? “Poderíamos definir a equidade a partir de quatro componentes: risco de adoecer – numa sociedade justa e solidária, na utopia de desenvolvimento humano pleno, as pessoas continuariam adoecendo, mas os riscos de adoecer seriam homogêneos e não condicionados a inserção social; todos os cidadãos cobertos por programas eficientes de promoção e proteção à saúde igualmente distribuídos; sistemas e serviços de assistência e recuperação de igual qualidade; e efetividade, humanização e qualidade no cuidado igualmente disponibilizados a todos e todas, em função das necessidades”, definiu. “Esse é um exercício em abstrato, mas permite indicar que não se pode lidar com a questão da saúde exclusivamente pelo polo da prestação de serviço, mas em toda a configuração do sistema de saúde”.
Naomar vê um novo tipo de desigualdade conformando-se hoje, com mecanismos que quebram o princípio da integralidade do SUS “e que são institucionais”, como a redução de financiamento para certos segmentos do sistema de saúde e disponibilidade desigual de tecnologias diagnósticas, preventivas e terapêuticas. “O direito à saúde é de todos e de cada um”.
A atenção básica é claramente um espaço de desenvolvimento econômico (Carlos Gadelha)
Em sua exposição, Carlos Gadelha destacou que a convergência entre desenvolvimento e saúde está “na própria narrativa da Fiocruz”. Ele apresentou e comentou as dez proposições da instituição dirigidas aos candidatos à Presidência da República e à sociedade, divulgadas em agosto. “Eu me lembrei da figura do pau de sebo das festas de São João: tentamos subir no pau de sebo, escorregamos e tentamos novamente. Ou também do mito de Sísifo, apontando que não podemos desistir nunca e nunca deixar de tentar”, considerou. “Estamos em um momento em que, mesmo no campo progressista, favorável à participação do Estado como instância essencial para orientar o desenvolvimento, à redução das assimetrias globais, à produção nacional, ainda temos que lutar muito para ver a convergência entre saúde e desenvolvimento”.
Gadelha chamou atenção para a separação que se costuma fazer entre os âmbitos econômico, social, ambiental e territorial ao se tratar de política pública. “Temos que conseguir fazer diferente, para enfrentar a globalização que Naomar menciona, trazer a questão humana para o centro. Para se lidar com o cuidado, é preciso políticas integradas”, afirmou, identificando “uma exogeneidade”, que exclui o campo social, o ambiente e o território do núcleo central da economia. “É como se a vida humana e do planeta estivessem fora do espaço de expansão, acumulação, do núcleo duro das estratégias de desenvolvimento e fossem colocados no âmbito das políticas compensatórias”.
Para Gadelha, a retomada de que o Brasil precisa é a pautada no diálogo e na criatividade. “É preciso parar de ter medo de divergir”, convidou. “Não dá mais para discutir Sistema Único de Saúde, ambiente, no âmbito das políticas acessórias. A saúde nos obriga a uma visão integrada e sistêmica”.
O pesquisador mostrou-se contrário a uma “visão utilitarista da saúde” e à necessidade de “justificar a saúde” em função de aspectos como produtividade e expectativa de vida, na forma como fazem os economistas neoclássicos. “Justifico a saúde pela dimensão humana, da preservação da vida e da equidade. Os sistemas universais vão além das políticas compensatórias, são modelos de sociedade. São como uma fila da vacina, em que não se distingue raça, nível de renda”, considerou.
Considerando que a saúde talvez seja “a parte mais dinâmica da economia mundial”, Gadelha lembrou que o setor gera 10% do produto interno bruto e 25 mil empregos diretos e indiretos. “Chega de falar em extrair petróleo cru, derrubar árvore, automóvel. Temos que pensar fora da caixa”, convidou. Para Gadelha a Estratégia Saúde da Família (ESF), que organiza a atenção primária no SUS, trata-se de um “arranjo produtivo local de cuidado – olha que coisa bonita!”: gera emprego, gera renda, incorpora big data e inteligência artificial para fazer vigilância epidemiológica inteligente, tira pessoas da fome. “Isso tem uma dimensão econômica!”, afirmou. “A atenção básica é claramente um espaço de desenvolvimento econômico”.
Além do aspecto econômico, lembrou Gadelha, a saúde tem forte integração com a ciência, a tecnologia e a inovação, aí incluídas não só as ciências biomédicas, como as humanas e sociais. Ele lembrou o sanitarista Sergio Arouca, que rompeu com a “dicotomia triste” e a tensão entre os campos biomédico e da política social. “A saúde é uma área que, nesse espectro mais amplo, mobiliza 40% da pesquisa nacional”, contabilizou.
Gadelha lembrou, ainda, da relação da saúde com a sustentabilidade ambiental – “não podemos produzir serviços, vacinas, medicamentos de modo insustentável” – e com o território – “se há uma área presente nas escalas nacional, mesorregional, microrregional e local do território, é a da saúde”. Para ele, não é possível fazer política pública segmentando esses elementos.
Essa visão integrada, destacou o pesquisador, pautou as dez diretrizes estratégicas que compõem a Carta da Fiocruz aos candidatos à Presidência da República e à sociedade, apresentada e analisada em sua exposição. “A visão que a Fiocruz traz tem o SUS como carro-chefe, conforme indica a primeira diretriz, e se trata de uma visão ampliada do desenvolvimento, em que a saúde é área emblemática, mas ao lado também de educação, sustentabilidade ambiental, mobilidade urbana”, definiu. “Nós nos baseamos em um encontro fictício, mas cognitivo e de visão de mundo, entre o grande líder da criação do SUS e do pensamento sanitário brasileiro, Sergio Arouca, e o maior pensador econômico brasileiro, Celso Furtado”, relatou.
Sobre a primeira diretriz da Carta da Fiocruz, Gadelha destacou o fortalecimento do SUS como “como prioridade máxima do estado de bem-estar no Brasil” e a meta de o Estado aumentar o investimento em saúde para 7% do PIB. “Só o que temos de desoneração tributária já pagaria esse incremento no âmbito federal”, contabilizou. Da segunda diretriz, “priorizar a ciência, a tecnologia e a inovação, para a sociedade, o ambiente e a economia”, foi destacada a meta de dobrar os recursos para o setor, de 1% para 2% do PIB, e vincular ciências humanas, biomédicas e exatas para atender os desafios nacionais. “Não é uma visão utilitarista da ciência, mas a ciência, ao lado da Educação, como base de uma sociedade democrática, inclusiva e desenvolvida”, observou.
Em relação à terceira diretriz, “desenvolver o Complexo Econômico-Industrial da Saúde para a soberania nacional”, Gadelha lembrou que, em 2021, o país bateu o recorde de 20 bilhões de dólares em importações, com aumento de 5 bilhões só durante a pandemia de Covid-19, uma expressão da dependência externa brasileira. Quanto à quarta diretriz, “promover o desenvolvimento sustentável e a defesa da vida como paradigma de política pública”, o pesquisador mencionou a interrupção do desmatamento não sustentável na Amazônia e a universalização do abastecimento em saúde, água e esgoto, indicando, ainda, “para ontem” a “extirpação” da fome no país. “Isso é imediato, não tem cronograma. Não há desenvolvimento com fome”.
Ele prosseguiu com a quinta e a sexta diretrizes: “valorizar a educação como base da cidadania e do desenvolvimento inclusivo”, com destaque para a educação pública, “que permite a universalizar a oportunidade do acesso e a permanência dos estudantes nos seus estabelecimentos de ensino”; e “garantir a democracia, no que diz respeito ao direito a voto e também em defesa da cidadania”, em especial, “com interrupção da agressão e da violência nas comunidades vulnerabilizadas do país”.
Ao mencionar a sétima e a oitava diretrizes, “constituir um Estado soberano, qualificado e socialmente inserido” e “valorizar o trabalho e o serviço público”, Gadelha criticou as pessoas que se dizem favoráveis ao SUS, mas que defendem o Estado mínimo e a demissão de servidores públicos. “É uma contradição. Não tem SUS sem Estado, sem serviço público, é preciso dizer isso com todas as letras. O Estado precisa ser transparente e controlado para cumprir seus objetivos sociais, mas sem Estado não tem SUS”, considerou.
Quanto à nona e a décima diretrizes, ambas abordando as assimetrias globais, Gadelha mencionou a “grande hipocrisia no campo das vacinas”, que se observou durante a pandemia, tendo-se países como o Haiti com menos de 1% de sua população vacinada. “Não somos contra a globalização, mas, como diria Milton Santos, queremos uma outra globalização”.
Como uma das debatedoras das exposições de Naomar e Gadelha, a professora Raimunda Monteiro chamou atenção para o caminho percorrido pela democracia no país, ao longo do tempo. “Percebemos o quanto a democracia foi tênue e o quanto as políticas sociais foram capturadas e negligenciadas, mas, ao mesmo tempo, como a sociedade brasileira conseguiu e consegue reagir, como ocorreu com a Constituição de 88, que traz importantes princípios norteadores, elementos que tornaram possível aos governos assumirem a proposta do Estado de bem-estar, orientando-se pelos cânones do texto constitucional, como universalização, atendimento integral, participação das comunidades”.
Ana Lucia Tatsch observou que a pandemia de Covid-19 acabou “realçando aspectos da realidade brasileira, tanto no que diz respeito às iniquidades e vulnerabilidades, quanto em relação à dependência do país no setor produtivo. “Vimos que as cidades brasileiras com piores indicadores de desenvolvimento socioeconômico foram também as mais afetadas pela Covid”, mencionou. “Não há estrutura de serviço de atenção à saúde sem uma base produtiva, tecnológica e inovativa. O fortalecimento do SUS passa pelo fortalecimento do CEIS”, acrescentou.