Renda Básica Universal ou Pleno Emprego e Trabalho Decente?
Publicado no EcoDebate, por José Eustáquio Diniz Alves.
O Brasil vive uma emergência sanitária e um pandemônio econômico. Já são mais de 3 milhões de pessoas infectadas e mais de 100 mil mortes pela covid-19. O país está vivendo a recessão mais profunda da história nacional, com um sofrimento incalculável para as camadas mais pobres da população.
No meio da pandemia o Congresso Nacional aprovou o Auxílio Emergencial que é um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus. O benefício no valor de R$ 600,00 será pago para até duas pessoas da mesma família. Para as famílias em que a mulher seja a única responsável pelas despesas da casa, o valor pago mensalmente será de R$ 1.200,00.
Evidentemente, este Auxílio Emergencial foi fundamental para a sobrevivência das pessoas no período de isolamento social, de paralisação da economia e de aumento do desemprego. A queda dos níveis de ocupação tem ocorrido de forma dramática.
O gráfico abaixo, com dados da PNAD Contínua Mensal, mostra a taxa de atividade (PO/PIA) e a taxa de ocupação (PO/PT). No trimestre abr-mai-jun de 2012 a população ocupada representava 57,1% da população em idade ativa (PIA) e caiu para 47,9% trimestre abr-mai-jun de 2020. No mesmo período a população ocupada sobre a população total caiu de 45,1% para 39,5%. Ou seja, atualmente, menos de 4 pessoas em cada 10 brasileiros está trabalhando. Ainda segundo o IBGE, a população subutilizada está em 31,9 milhões de pessoas. Além disto temos muitos jovens nem-nem (nem trabalhando e nem estudando) que nem entram na contabilidade da população subutilizada.
Este quadro é sério e mostra que o Brasil está desrespeitando um direito básico de cidadania. Do ponto de vista dos direitos humanos, a ideia do pleno emprego e do trabalho decente já estava presente no Art. 23º da Declaração Universal, de 1948, que estabelece o seguinte: “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”.
A Constituição Federal do Brasil, de 1988, no artigo no Art. 6º estabelece o trabalho como um direito fundamental: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. O “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” enumera mais de 30 itens em defesa do trabalho decente.
O objetivo 8 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) fala no Pleno Emprego Produtivo e Trabalho Descente para todas as pessoas. A meta 8.3 diz: “Promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a serviços financeiros”
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que a bandeira do trabalho decente tem como objetivo principal melhorar as condições de vida de todos cidadãos e cidadãs: a) oportunidades para encontrar um emprego que seja produtivo e proporcione um rendimento justo e que garante a eles e suas famílias desfrutarem uma qualidade de vida decente; b) liberdade para escolher o trabalho e a livre participação em atividades sindicais; c) condições para que os trabalhadores possam ser tratados de forma justa, sem discriminação e que sejam capazes de conciliar trabalho e responsabilidades familiares; d) condições de segurança para proteger a saúde dos trabalhadores e proporcionar-lhes a proteção social adequada; e) condições de dignidade humana para que todos os trabalhadores sejam tratados com respeito e possam participar na tomada de decisão sobre suas condições de trabalho.
Portanto, o direito ao trabalho e à autodeterminação produtiva está presente nos ordenamentos nacionais e internacionais. Além disto, toda a teoria econômica mostra que o trabalho é a base da riqueza de qualquer nação. A primeira frase do famoso livro A riqueza das nações, publicado em 1776, por Adam Smith (1723-1790), diz: “O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente” (SMITH, 1983, p. 35). Toda a teoria do valor marxista também tem como base a contribuição essencial do trabalho para a riqueza nacional e mundial, pois só o trabalho gera mais-valia.
Evidentemente, é difícil garantir emprego para todas as pessoas em idade produtiva e garantir todos os direitos trabalhistas para todos os trabalhadores. Mas, se a bandeira do “Pleno emprego e o trabalho decente” for colocada em prática e se a sociedade, com um bom sistema de proteção social, garantir educação e saúde universais e de boa qualidade para toda a população, então onde se encaixa a proposta de “Renda básica de cidadania”?
Bem, se a renda básica de cidadania for entendida como uma política pública de transferência de renda voltada para a redução das desigualdades e da pobreza, ela se justifica pela necessidade de se corrigir as “externalidades do mercado” e devido a possibilidade de incentivar a solidariedade cidadã e a busca da mobilidade social ascendente, num contexto de melhoria coletiva da sociedade. Especificamente, as políticas de transferência de renda para crianças carentes são importantes para romper com o ciclo intergeracional de pobreza e garantir uma sociedade mais igualitária com oportunidades para todos.
No caso brasileiro, a Lei n. 10.835, de 08/01/2004, que institui a renda básica de cidadania estabelece: Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário; § 1º A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população; § 2º O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias; § 3º O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e mensais; § 4º O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas. Art. 2º Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.
Uma questão é saber se essa renda básica de cidadania viria de forma prioritária ou complementar à política de Pleno Emprego e Trabalho Decente. Neste momento em que o Brasil vive uma emergência sanitária e econômica, foi criada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, lançada em 21 de julho, em Brasília, que conta com 217 parlamentares de 23 dos 24 partidos do Congresso. Existe uma proposta de transformar o Auxílio Emergencial em renda básica permanente.
Os críticos argumentam que não existe orçamento fiscal para implementar um programa permanente com o custo do Auxílio Emergencial. Segundo o FMI o Brasil deve registrar um déficit fiscal de 16% do PIB e a dívida pública deve chegar a 102% do PIB. É uma rota totalmente insustentável. Nunca se gastou tanto em qualquer tempo, quanto neste governo atual que tem um ministro “ultra neoliberal”. Nunca houve um déficit público de tal monta.
Por outro lado, um investimento para atingir o Pleno Emprego e Trabalho Decente seria sustentável na medida que incorporasse cerca de 40 milhões de brasileiros que estão em idade de trabalhar, mas não encontram oportunidades no mercado. Algumas pessoas dizem que isto não é viável pois o processo de mudança tecnológica está eliminando os empregos e o mundo caminha para uma sociedade sem trabalho. Evidentemente, isto é totalmente falso pois não existe nação sem trabalho, pois segundo a Teoria do Valor só o trabalho cria riqueza.
É um equívoco supor que o desenvolvimento tecnológico vai levar a um mundo sem trabalho, pois isto nunca aconteceu e a tecnologia, em geral, avança associada ao emprego. É claro que o trabalho muda e assume novas dinâmicas, mas não deixa de ser trabalho. Por exemplo, a automação não implica necessariamente em desemprego. As relações são mais complexas. O desemprego tecnológico, em nível microeconômico, faz parte da história do Capitalismo. O economista francês Jean-Baptiste Say, no livro “Tratado de Economia Política”, de 1803, dá o exemplo do parque gráfico que eliminou os empregos dos copistas. Say diz que cada emprego gráfico eliminou 199 copistas. Mas a maior facilidade de ler obras impressas e o rebaixamento do custo de impressão deu o incentivo para aumentar a leitura para instrução, lazer etc. Assim, em termos macroeconômicos, em pouco tempo, havia mais gráficos empregados do que copistas desocupados. Outro exemplo é o setor agropecuário dos Estados Unidos, que empregava 90% da força de trabalho e, por conta da automação agrícola, atualmente emprega cerca de 3%, embora o país estava, até 2019, próximo do pleno emprego.
O fim do emprego “tradicional” (especialmente o industrial tradicional) não significa o fim do trabalho, mesmo numa sociedade pós-industrial. O proletariado clássico da 2ª Revolução Industrial já não existe mais. O trabalho se transformou. Porém, não passa de uma ilusão trocar a centralidade do trabalho pela centralidade da transferência de renda.
Dizem que a história vai ser diferente com a automação e a robótica da Revolução Industrial 4.0, pois os empregos desaparecerão. Mas o gráfico abaixo mostra o contrário, segundo dados da Federação Internacional de Robótica e a OIT. Os 4 países com maior percentagem de robôs em relação a cada 10 mil trabalhadores (Singapura, Coreia do Sul, Alemanha e Japão), são também os que apresentam taxas de desemprego muito baixo e próximo do pleno emprego. Assim, o nível de robotização não está correlacionado com perda de emprego nestes quatro países. Os robôs podem ter efeito multiplicador (Phelps, 2020).
Já o Brasil, com pouquíssimos robôs no seu parque produtivo, possui mais de 30 milhões de desempregados ou subutilizados (no conceito amplo do IBGE) e uma taxa de desemprego acima de 40% entre os jovens. A Covid-19 apenas acentuou o drama desta geração perdida por falta de oportunidades.
Como é fácil perceber, o desemprego e a subutilização da força de trabalho neste momento é uma verdadeira catástrofe, pois estamos em um instante singular da história brasileira, um momento que só acontece uma única vez na vida de qualquer país. É quando a proporção de pessoas em idade ativa está em seu ponto máximo e a proporção de pessoas em idade não produtiva ou menos produtiva (crianças e idosos) está em seu ponto mínimo. Conhecido como “bônus demográfico” este acontecimento especial é aquele evento indispensável para a decolagem do desenvolvimento socioeconômico de qualquer país. Não existe nenhuma nação com altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que não tenha aproveitado as oportunidades de uma baixa razão de dependência demográfica.
Esta nova configuração demográfica exigiria que as políticas econômicas e sociais se adaptem à nova realidade populacional, fortalecendo as políticas de educação e emprego. Infelizmente a crise econômica que começou em 2014 já estava fazendo o Brasil desperdiçar este momento histórico e que é fundamental para qualquer nação que queira dar um salto de qualidade de vida para a sua população.
Tudo isto significa que o Brasil está desperdiçando a sua janela de oportunidade demográfica e também desperdiçando a chance de se tornar um país rico (com bem-estar de seus habitantes) antes de envelhecer. O trabalho produtivo é a base da riqueza das nações e o pleno emprego e o trabalho decente devem ser a prioridade número um, pois é o direito humano mais desrespeitado atualmente no Brasil. Sem trabalho para todos, os demais direitos ficam comprometidos, a economia não melhora e a qualidade de vida tende a cair para toda a população nacional.
O Brasil precisa elevar as taxas de investimento e investir em saneamento básico e recuperação dos ecossistemas (reflorestamento, por exemplo). Investindo na saúde social e ambiental o país poderia criar milhões de empregos e gerar renda para a população e para o país reduzir os déficits ecossociais.
Mas se nada for feito, a crise sanitária e a crise do mercado de trabalho podem ser o golpe mortal no anseio do Brasil de ser uma nação com alto nível de desenvolvimento humano. O Brasil voltou aos níveis de renda per capita de 2010. Assim, não seria fácil sustentar uma renda básica de cidadania sem uma base produtiva sólida que seja fonte de riqueza via trabalho, gerando riqueza para ser posteriormente redistribuída. Como disse o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881): “Se alguém quiser reduzir o ser humano a nada, basta dar ao seu trabalho o caráter de inutilidade”.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. A Inteligência Artificial pode se transformar em um monstro incontrolável. Entrevista para Patrícia Fachin, IHU, 28/09/2017
ALVES, J. E. D. Crise no mercado de trabalho, bônus demográfico e desempoderamento feminino. In: ITABORAI, N. R.; RICOLDI, A. M. (Org.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil? Belo Horizonte: Abep, 2016. p. 21-44. ISBN 978-85-85543-31-0
http://187.45.187.130/~abeporgb/publicacoes/index.php/ebook/article/view/2445/2400
International Federation of Robotics. Robot density rises globally, 2018
https://ifr.org/news/robot-density-rises-globally/
SMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SIMÕES, PHC. ALVES, JED. SILVA, PLN. Transformações e tendências do mercado de trabalho no Brasil entre 2001 e 2015: paradoxo do baixo desemprego? R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v.33, n.3, p.541-566, set./dez. 2016 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982016000300541&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Edmund S. Phelps. The Robot Question, PS, Aug 6, 2020 https://www.project-syndicate.org/commentary/economics-of-ai-robot-labor-by-edmund-s-phelps-2020-08
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 12/08/2020.