Privatização do saneamento: modelo limitado, distante dos mais pobres
O pesquisador da Fiocruz Minas e relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao esgotamento sanitário, Leo Heller, reafirmou em entrevista ao jornal O Globo, publicada domingo, 21/8/2016, que não há evidências de que o setor privado é mais eficiente no que diz respeito à prestação do serviço de saneamento básico. “São várias as limitações do modelo, como a dificuldade de incluir os mais pobres”, considera Leo Heller, sobre a proposta do governo interino de incentivar os estados a promoverem parcerias com o setor privado para concessão do serviço de modo a ampliar as redes de tratamento e coleta de esgoto.
Segundo o pesquisador, previamente à implementação de um novo modelo de saneamento deveriam estar a problematização e a avaliação crítica do desempenho e dos resultados obtidos nas experiências internacionais anteriores, de modo a evitar que se reproduza um modelo fracassado. “Problemas ocorreram em diferentes graus em experiências fracassadas em várias partes do mundo, que geraram o cancelamento ou a não renovação de contratos e a remunicipalização dos serviços. Um levantamento recente mostrou a ocorrência de 235 casos de remunicipalização, em 37 países, nos últimos nove anos, havendo casos emblemáticos, como os de Paris e de Buenos Aires. No caso das propostas do governo brasileiro, chama a atenção não se ancorarem em uma avaliação prévia das experiências internacionais desde os anos 1980”, avalia Leo Heller.
Problemas frequentes nas experiências mal sucedidas incluem contratos inadequados, processos licitatórios deficientes, evidências de corrupção, entes regulatórios frágeis (Leo Heller)
Ao lançar um olhar em retrospecto para essas experiências, o pesquisador verificou a recorrência de alguns problemas, entre eles, a corrupção. “Problemas frequentes nas experiências malsucedidas incluem contratos inadequados, processos licitatórios deficientes, evidências de corrupção, entes regulatórios frágeis – o que já é um problema inerente aos monopólios naturais, baixíssimo aporte de recursos privados aos sistemas”.
No debate da série Futuros do Brasil do CEE-Fiocruz sobre o tema, Leo Heller já havia chamado a atenção para importância de se olhar o saneamento básico pela lente do direito humano e, nesse sentido, de se privilegiar a gestão pública e a oferta local do serviço. “Muitas vezes se propaga que é a privatização que vai resolver o problema. No entanto, os Estados Unidos, berço do liberalismo, tem apenas 15% do seu saneamento privado; 85% estão no âmbito público. Na França, que tem pesada privatização, o sistema de saneamento é local”, exemplificou no debate.
“Os serviços devem ser prestados com base na disponibilidade, no efetivo acesso aos serviços, na sua qualidade, na aceitabilidade das soluções e na acessibilidade financeira das populações mais pobres. Impõe ainda que não haja discriminação no acesso, ou seja, moradores de vilas e favelas ou da área rural devem ser beneficiados da mesma forma dos que vivem nas áreas convencionalmente urbanizadas”, reafirma ele, na entrevista ao jornal.
A privatização do saneamento foi tema, também, do artigo A participação privada em saneamento e seus sofismas, escrito por Leo, em co-autoria com José Esteban Castro, professor de Sociologia da Universidade de Newcastle, na Inglaterra. “A prestação privada dos serviços como padrão predominante não será capaz de trazer os avanços necessários ao setor de saneamento e de incluir os 800 milhões de pessoas ainda sem acesso à água e os 1,1 bilhão sem acesso aos serviços de esgotos, segundo estimativas conservadoras da ONU”, afirmaram no texto. “Não nos parece adequado para o país aceitar acrítica e passivamente modelos que tenham fracassado em seus objetivos, em novas roupagens”.
Leia o artigo na íntegra aqui
Assista à integra do debate Saneamento Básico como direito humano, do CEE-Fiocruz, aqui
Leia a íntegra da entrevista a O Globo abaixo:
Como vê a evolução do fornecimento de água e coleta e tratamento de esgoto no Brasil nos últimos anos?
Tem havido importantes progressos, mas infelizmente sem a continuidade e a efetividade desejáveis. Deve-se comemorar a aprovação de novo marco legal, a maior institucionalização do setor, melhores práticas regulatórias e um patamar mais elevado e mais estável de investimentos. Tem havido evolução positiva dos indicadores de cobertura também. Entretanto, ainda permanecem enormes desafios, por exemplo quanto à efetiva inclusão das áreas rurais com prioridade nas políticas públicas. A área de saneamento requer políticas contínuas e estáveis e uma forte presença do poder público e do financiamento público. As descontinuidades nesse processo provocam efeitos já conhecidos da população brasileira: desmobilização de esforços e deterioração do padrão de atendimento da população.
Qual é a gravidade da situação atual do Brasil?
O país ainda acumula um importante déficit no atendimento adequado da população por abastecimento de água e esgotamento sanitário, bem como por manejo de resíduos sólidos e controle de inundações e enchentes. Os avanços ocorridos permitiram que o monitoramento internacional considerasse que o país tivesse alcançado os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio nesse setor, o que é muito positivo. Entretanto, isto não é suficiente. Quando avaliamos o acesso da população por meio de padrões mais exigentes que os adotados no monitoramento dos ODM, os déficits amplificam-se e se mostram elevados. Este quadro ficou muito bem caracterizado no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
Recentemente, o senhor divulgou, ao lado de outros especialistas, um alerta sobre a influência da situação de saneamento e o surto do zika. Qual é a influência do saneamento na saúde pública?
Os efeitos de condições adequadas de saneamento sobre a saúde pública são muito bem documentados na literatura científica. Eles podem ser múltiplos e contribuir para significativa redução de doenças diarréicas, de doenças provocadas por parasitas e de doenças transmitidas por vetores, como dengue, Zika e Chikungunya, entre outros efeitos benéficos. No caso específico da chamada tríplice epidemia que assola parte importante da América Latina, intervenções em abastecimento de água, em esgotamento sanitário, em manejo de resíduos sólidos e em drenagem pluvial — componentes do que a legislação brasileira denomina de saneamento básico – podem ter isoladamente e, sobretudo, integradamente, importante papel na redução do problema. E com a vantagem de que também melhorará, e de forma mais permanente, outros problemas de saúde pública. Estou convencido de que a priorização de intervenções ambientais para o controle da tríplice epidemia é a abordagem mais adequada para fazer frente à dramática situação provocada por essas doenças.
O governo quer estimular a maior participação do setor privado no saneamento. Como vê o debate sobre essa expansão do setor privado no saneamento?
A ênfase para a participação do setor privado em saneamento foi uma tônica das políticas dos organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI, nas décadas de 1980 e 1990, o que resultou em uma ampliação das experiências de privatização. Porém, posteriormente, esses próprios organismos e várias avaliações acadêmicas revelaram que esta saída não é uma panacéia para a prestação dos serviços. São várias as limitações do modelo, como a dificuldade de incluir os mais pobres. Não há evidências de maior eficiência do setor privado. E, para mim, a maior dificuldade é a de regulação. Os serviços de saneamento são monopólios (no jargão econômico, “monopólios naturais”), significando que há apenas um prestador de serviços em cada localidade. Isto coloca limites para um ente regulador assegurar o cumprimento de obrigações contratuais, de impedir aumentos tarifários problemáticos e de punir os prestadores quando exigências não são atendidas. Estes problemas ocorreram em diferentes graus em experiências fracassadas em várias partes do mundo, que geraram o cancelamento ou a não renovação de contratos e a remunicipalização dos serviços. Um levantamento recente mostrou a ocorrência de 235 casos de remunicipalização, em 37 países, nos últimos nove anos, havendo casos emblemáticos, como os de Paris e de Buenos Aires. Além disso, o modelo privado está longe de ser o modelo predominante na quase totalidade dos países, inclusive nos Estados Unidos. No caso das propostas do governo brasileiro, chama a atenção não se ancorarem em uma avaliação prévia das experiências internacionais desde os anos 1980. Entendo que a formulação de novos modelos de políticas públicas deveria ser minimamente baseada em evidências e não ser fruto de meras opiniões ou preferências ideológicas. Na academia, não iniciamos nenhuma proposta nova sem uma ampla e aprofundada revisão da literatura...
O que precisa ser levado em consideração? Quais cuidados devem ser tomados?
Como mencionei, uma avaliação de experiências de adoção desses modelos em realidades semelhantes à brasileira deveria ser um requisito fundamental. Problemas frequentes nas experiências mal sucedidas incluem contratos inadequados, processos licitatórios deficientes, evidências de corrupção, entes regulatórios frágeis – o que já é um problema inerente aos monopólios naturais , baixíssimo aporte de recursos privados aos sistemas. Este último ponto parece-me central, uma vez que as justificativas para processos de privatização são muito baseadas na dificuldade do Estado em investir e na atração de investimentos do setor privado. As experiências vêm demonstrando que os recursos para esses processos ou têm origem nas próprias agências públicas ou, mas fortemente, são arrecadados dos próprios usuários.
O BNDES apresentou ao governo do Rio um projeto de PPP na Cedae. O que acha disso?
Prefiro não fazer comentários específicos sobre o projeto, mas reitero que os aspectos abordados anteriormente deveriam ser considerados antes de se propor uma alteração tão profunda no modelo de prestação de serviços de saneamento. O interesse da população, sobretudo a de situação econômica mais desfavorecida, deveria ser o norteador da escolha dos modelos de prestação de serviços.
Qual é o melhor caminho para a prestação de serviços de água e saneamento, na sua avaliação?
O marco normativo mais avançado para se pensar a prestação dos serviços de água e esgotos é o dos direitos humanos. Este marco requer que os serviços sejam prestados com base na disponibilidade, no efetivo acesso aos serviços, na sua qualidade, na aceitabilidade das soluções e na acessibilidade financeira das populações mais pobres. Impõe ainda que não haja discriminação no acesso, ou seja, moradores de vilas e favelas ou da área rural devem ser beneficiados da mesma forma dos que vivem nas áreas convencionalmente urbanizadas. Sustenta também que deva haver o direito à participação e a responsabilidade na prestação de contas dos governos e prestadores de serviços à sociedade. É importante lembrar que o Brasil votou favoravelmente a esses direitos nas Nações Unidas e que o governo brasileiro tem a obrigação de zelar por eles, mesmo que haja a delegação dos serviços.
Os investimentos têm ficado abaixo do que estava estimado como necessário no Plano Nacional de Saneamento. Como enfrentar esta situação diante da situação fiscal no país, tanto do governo federal, quanto de estados e municípios?
Sem dúvida, não podemos negligenciar a crise econômica e seu impacto nos investimentos em saneamento. Os investimentos federais cresceram significativamente nos últimos anos, mas ainda respondem por uma proporção muitíssimo baixa do PIB (nos melhores anos não chegando a 0,2%), insuficiente para um país com o nível de desenvolvimento do Brasil e com tanto déficit acumulado. Penso que a mensagem do Plansab aqui é importante: se uma ênfase do investimento for colocada para medidas estruturantes, que organizem a prestação de serviços, os sistemas locais serão mais eficientes e poderão ampliar sua própria arrecadação, por meio da contribuição dos usuários com maior poder aquisitivo. Isto diminuiria drasticamente a necessidade de investimentos federais. Portanto, há problemas no fluxo de investimentos, mas há problemas ainda maiores na qualidade da política pública de saneamento.