Portaria do Ministério da Saúde que dá autonomia a gestores locais desestrutura o SUS
A Portaria nº 3.992 do Ministério da Saúde, publicada dia 28 de dezembro de 2017, que reduziu de seis para dois blocos de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) – um de custeio, que concentra a quase totalidade dos recursos federais, e outro de investimentos - fragmenta e desfigura o sistema ao flexibilizar o uso das verbas da Saúde na ponta, o que pode comprometer a manutenção e a ampliação dos serviços de atenção básica e de vigilância em saúde. Esse é o alerta dos sanitaristas ouvidos pelo blog do CEE-Fiocruz, que destacam, entre outros prejuízos, o enfraquecimento do Ministério da Saúde como indutor de políticas estruturantes do SUS e a redução de seu papel a mero repassador de recursos aos estados e municípios. Uma medida, acreditam eles, que alivia as pressões de prefeitos e governadores por mais recursos sobre o Governo Federal, submetido à política de ajuste fiscal, e expõe os gestores locais à ação de lobistas da indústria farmacêutica e de procedimentos. Nesse quadro, eles anteveem a queda dos níveis de investimento na atenção básica e na vigilância em saúde que, desde a criação dos seis blocos, pela Portaria Nº 204, de 29 de janeiro de 2007, vinham sendo ampliados.
Para ler a íntegra das análises dos sanitaristas sobre a Portaria 3.992/2017, clique nos links abaixo.
Eli Iola Gurgel (Abrasco): Portaria do Ministério da Saúde põe em risco a regionalização do SUS
Jorge Bermudez (ENSP/Fiocruz): Retrocesso neoliberal
Eli Iola Gurgel (Abrasco)
Portaria do Ministério da Saúde põe em risco a regionalização do SUS
"A portaria 204/2006 do Ministério da Saúde estabeleceu seis blocos de repasse federal para os municípios e estados, para ações de atenção básica, procedimentos de média e alta complexidades, vigilância epidemiológica, gestão do sistema, assistência farmacêutica e investimentos. A razão dessas diretrizes está na própria essência do Sistema Único de Saúde (SUS).
Da criação do SUS pela Constituição Federal, em 1988, até 2006, quando se pactuaram os blocos de repasses das verbas federais, se deu um grande debate, pontilhado por diversas normas a partir das leis 8.080 e 8.142, ambas de 1990, sobre o que seria o modelo e estrutura de descentralização para o sistema de saúde Até 1988, a saúde estava dentro do sistema previdenciário, que era absolutamente centralizado.
O Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] geria a assistência médica em todo país, a partir da agência no Rio de Janeiro. O debate sobre a descentralização da gestão do sistema em um país da dimensão do Brasil, com um enorme número de municípios, tinha uma importância fundamental. Não se poderia pensar na organização de um sistema que não fosse estruturado no conceito da descentralização.
Ainda havia a questão do financiamento, que sairia de um modelo totalmente centralizado (do Inamps) para uma forma descentralizada, que permitisse a expansão e estruturação regionalizada do sistema. Vivíamos, então, um tempo de discussão importante sobre o que seria a estruturação do sistema. Mas vínhamos também com a herança do sistema anterior.
No nascedouro do SUS, havia o legado da época da Previdência, que tinha um modelo muito fortemente calcado na assistência hospitalar. Os grandes centros, que em geral estão nas capitais, foram heranças da Previdência. Você vê, geralmente nas capitais, um conglomerado de hospitais públicos, privados e clínicas numa só região. Esse modelo, que denominamos na literatura como hospitalocêntrico, precisava ser tratado. No mundo inteiro já se conhecia a importância da estruturação da atenção à saúde, partindo da organização da atenção básica como porta de entrada do sistema de saúde. Essa experiência vinha do sistema inglês e a Organização Mundial da Saúde repercutia, desde os anos 70, a importância da estruturação do sistema de atenção à saúde a partir da atenção primária.
No Brasil, tivemos esse confronto sobre o que seria a organização do sistema, depois de 1988. Com muitas dificuldades, começou-se a articular o financiamento com a estruturação da atenção primária, que passou no Brasil a ser chamada de básica. Em 1996, foi aprovado o piso de atenção básica, com um repasse de R$ 10 per capita para os municípios. O repasse, contudo, só foi iniciado em 1998. A partir daí, começou-se um movimento no sentido de estruturar a atenção básica no país, ao lado de um sistema de média e alta complexidade que era herança do período previdenciário. As dificuldades foram tantas que, somente em 2004, se chegou à formulação de uma política e de estratégias de organização da atenção básica e, em 2006, com os seis blocos de financiamento, se aperfeiçoaram as formas de repasse para os estados e municípios. Isso foi um sinal de que o sistema não estava mais orientado apenas para a organização do atendimento de média e alta complexidade. Os blocos se referem a ações essenciais a qualquer sistema de saúde e já preveem uma janela de planejamento e de expansão para novas necessidades do sistema. Na verdade, a regra dos seis blocos não aprisiona o gestor, pelo contrário, estrutura o sistema, em um país da dimensão do Brasil, com mais de 5 mil municípios, de uma forma uniforme, em todas as regiões.
A reivindicação de liberdade para os gestores locais, que a portaria do Ministério da Saúde atende, precisa ser questionada porque quando se desmonta essa estrutura, como será a cara dos investimentos e da aplicação dos recursos daqui para frente? Em um país com 5.570 municípios, como isso ocorrerá? Ainda há um agravante. Sabemos que o sistema público de saúde sofre as dificuldades de conviver com um sistema privado, que tomou dimensões muito importantes. Arrisco dizer que, na verdade, essa liberdade de utilização dos recursos proposta pela portaria pode transformar os municípios em presas do mercado de oferta de serviços de saúde. Minha preocupação é que o sistema de saúde público se desestruture com a falta de eixos, que eram dados pelos seis blocos de financiamento, e com a ação isolada de cada município para responder às suas necessidades, tendo em vista apenas o que ele tem à mão. À mão, os municípios sempre terão a oferta de fornecedores privados, disputando a compra de serviços pelo município.
Uma liberdade que pode dar aos prestadores de serviços o controle das ações de saúde em diversos municípios. Além disso, com essa medida perdemos a possibilidade de enfrentar nosso maior desafio que é a regionalização do sistema no país. A esfera federal deveria ser protagonista nesse desafio. Não há condições e nem existe em lugar nenhum do mundo um sistema de saúde organizado a partir dos municípios. Na verdade, o município tem características importantes na organização de um sistema de saúde, mas a produção de um serviço não pode ser municipalizada, e mais, para ser custo efetiva, o planejamento da oferta regionalizada precisa ser regulada e financiada pelo sistema de saúde em seu conjunto.
O sistema público tem que ter mecanismos de regionalização da oferta de serviços para ser economicamente viável. Não tem como termos hospital em todos os municípios, tão pouco com o perfil de complexidade que nos exige uma sociedade que envelhece. A regionalização, desta forma, é um imperativo e essa portaria vai no sentido oposto, tornando soberano o município, o que pode retardar ainda mais o esforço urgente de organizar a oferta de serviços regionalmente.
Por fim, essa portaria não foi submetida ao Conselho Nacional de Saúde, como determina a Lei 8.080. O atual ministro usou a comissão tripartite que reúne a representação dos secretários municipais e estaduais para articular politicamente essa portaria, que já vem confrontando o quadro normativo do SUS."
Eli Iola Gurgel é vice-presidente da Abrasco e professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
José Gomes Temporão (CEE-Fiocruz)
Faltou transparência e debate na elaboração da portaria do Ministério da Saúde
"A Portaria nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017, altera a forma de financiamento federal da Saúde, acordada, em 2006, pelo Pacto da Saúde, que resultou na Portaria Nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Na ocasião eu era o secretário de Atenção à Saúde da gestão do ministro Agenor Álvares e o que pactuamos, na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), com aprovação do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foi a redução de mais de uma centena de caixinhas de modalidades de repasse de recursos federais para seis blocos de financiamento para custeio. Definimos, assim, que o SUS seria organizado pelos investimentos na atenção básica, na atenção de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar, na vigilância em Saúde, na assistência farmacêutica, na gestão do SUS e na rede de serviços de Saúde.
A medida tomada agora pelo Ministério da Saúde, com a Portaria 3.992, publicada no dia 28 de dezembro, reduz as modalidades de repasses a apenas um bloco, o de financiamento de custeio. Isso aumenta a flexibilidade dos estados e municípios no uso dos recursos federais para o SUS, que representam cerca de 50% do total dos recursos públicos. Em tese esses recursos seriam gastos de acordo com as prioridades estabelecidas pelos planos de saúde de estados e municípios, que teriam que ser aprovados pelos respectivos conselhos de saúde e fiscalizados pelos órgãos de controle e pelo Ministério Público.
Entre os principais argumentos dos que defendem a portaria do MS está o de que os blocos anteriores restringiam a capacidade de gestão, criando situações de sobra de recursos em uma modalidade e falta em outras. Um debate que pode ser travado e, eventualmente, resultar em uma alteração na normatização. Mas isso tem que se dar de forma transparente e com amplo debate, o que não aconteceu. Apenas a CIT, que representa os três níveis de governo, participou da decisão, deixando de fora do debate o CNS e outros representantes da sociedade.
Há muitas críticas à portaria, das quais destaco, além da falta de transparência e de debate, os riscos de que ela crie grave distorções no SUS, agravando a fragmentação do sistema de saúde e a perda de macroplanejamento e avaliação, com a redução dos gastos em pesquisa e educação continuada e a fragilização das políticas de promoção da saúde, saúde da família, vigilância sanitária e epidemiológica. Riscos que devem ser levados em conta considerando-se a pressão por medidas no campo da assistência e da atenção hospitalar; a predominância do saber médico na condução das políticas de saúde a nível local e a hegemonia da visão curativista e hospitalcêntrica; além da fragilidade da capacidade de planejamento e de gestão de parte importante dos municípios, assim como em relação ao funcionamento dos conselhos de saúde e órgãos de controle. Tudo isso em um contexto de ano eleitoral, que representa um risco adicional na implementação da medida, e de grave restrição dos recursos públicos estabelecidos pela Emenda Constitucional nº 95, que forçará um uso pragmático dos recursos pelos gestores, impactando o funcionamento de políticas e programas que, nas últimas décadas, foram responsáveis por expressiva melhoria dos indicadores de saúde pública".
José Gomes Temporão é ex-ministro da Saúde e pesquisador do CEE-Fiocruz
José Noronha (LIS/ICICT/Fiocruz, Saúde Amanhã)
A nova portaria representa a ruptura do pacto federativo
"O Ministério da Saúde diz que veio ao encontro de uma demanda antiga de estados e municípios, no sentido de terem mais liberdade para aplicação dos recursos federais transferidos para cuidados da saúde, fazendo uma leitura de que são o prefeito e o governador que melhor entendem onde aplicar os recursos, que são mais cientes de suas necessidades de saúde e que não deve ser o governo central, em Brasília, a decidir a melhor alocação desses recursos. Parte dessa reivindicação se deve ao fato de que foram multiplicadas as transferências de fundos com destinação específica, multiplicando um conjunto de políticas estabelecidas pelo governo central, que vinculavam recursos para ações finalísticas do Ministério da Saúde.
Uma delas, bastante exitosa, foi a transferência do Saúde da Família, em que havia uma normatização da implementação do programa para a liberação dos recursos. Mas, como essa, havia várias outras ações, o que fazia os gestores locais protestarem, dizendo que isso diminuía muito a capacidade de ajustar as necessidades dos estados e dos municípios. Havia até quem achasse que os recursos deveriam ser descentralizados. Então, o ministro pegou essa demanda dos gestores locais e essa ideia, ventilada em alguns setores ligados à Reforma Sanitária, que essas transferências deveriam ser feitas fundo a fundo.
O problema é que, quando os recursos estão em abundância ou não estão em momento de contração, haveria uma margem maior para fazer essa transferência sem que isso significasse uma desobrigação para com as políticas definidas pelo Ministério da Saúde. O governo central tem dois papéis importantes na organização setorial: um redistributivo de promover o equilíbrio federativo, de apoiar os municípios e estados que mais precisam para buscar uma equidade da repartição dos recursos públicos; e outro que é a coordenação federativa, de articular União, estados e municípios para viabilizar um sistema de maior complexidade por conta do envelhecimento da população. Para isso, dentro do próprio SUS, foram criados pactos bipartites e tripartites para a integração de fundos estaduais, federais e municipais. Essa portaria dificulta esse papel da coordenação federal que o Ministério da Saúde teria que fazer tanto do ponto de vista da distribuição mais equitativa dos recursos, quanto da organização das redes assistenciais que vão desde a atenção primária até os cuidados mais complexos, como o tratamento do câncer e da aids que requerem eventualmente recursos mais sofisticados.
Com a Portaria 3.992, o ministério se desobriga da coordenação federativa ao transferir os recursos em bloco. Do ponto de vista dos prefeitos e dos secretários, em período de escassez financeira, tudo que eles querem é maior liberdade no uso dos recursos. Então, vão dar a um sistema que requer integração um perfil de aplicação de recursos ajustada às extremas peculiaridades de seus municípios. Isso talvez fique mais evidente se pensarmos em como podemos conciliar, em um país em que a maioria da população vive em aglomerados urbanos, em regiões metropolitanas, uma política de descentralização de recursos, com a coordenação do cuidado que envolve várias cidades. Essa medida, assim, fragiliza terrivelmente a coordenação federativa, requerida para um perfil de adoecer, em que a saúde requer cuidados integrados, da atenção pelo agente comunitário da saúde aos tratamentos especializados. Em um momento de estrangulamento financeiro como o que vivemos, a medida é extremamente perigosa. Em nível municipal serão beneficiados aqueles grupos ou organizações com maior capacidade de pressão. Em um processo eleitoral menos enviesado, pode ser que se consiga algum grau de equilíbrio no município A ou B, mas, como regra geral, os prefeitos estarão mais sujeitos às pressões dos grupos de maior força em suas localidades e muito mais vulneráveis com a falta de integração.
Há alguns anos, quando Cesar Maia era prefeito, causou grande tensão, ao dizer que não atenderia nos hospitais do Rio de Janeiro os pacientes de municípios vizinhos, como é natural em qualquer região metropolitana do Brasil ou do mundo. Os recursos de saúde têm que operar articulados. Ele tomou essa decisão ao arrepio das instâncias de controle social, como o Conselho Nacional de Saúde, que emitiu uma nota bastante contundente a respeito. Volto a lembrar que a Constituição de 1988 pressupõe alguns pactos: o federativo, que implica articulação dos entes federados; o da ordem social, com corte universalista; e o redistributivo, em que o sistema tem que ser também, internamente, redistributivo. Isso vem sendo fragmentado quando, na Seguridade Social, se colocou a Saúde para um lado, a Assistência Social para outro e a Previdência para outro ainda. O que o ministro está fazendo é aprofundar na gestão pública a ideia de desoneração dos recursos da União. Isso é absolutamente coerente com a Emenda do Teto, de contração dos gastos públicos, e provoca ruptura do pacto federativo. Quando se anuncia uma medida como essa, diminuem as pressões pela disputa dos recursos da União. Esse é o objetivo final da portaria. A saúde entra aí de gaiata, para o Governo Federal poder continuar a pagar juros, garantindo renúncias fiscais para os planos de saúde. Vale lembrar que, nos últimos cinco anos (de 2012 a 2016), os recursos federais para a Saúde aumentaram 1,7% em termos reais e os dos planos de saúde e das seguradoras, em 24%.
Nesse quadro de forte restrição de gastos do setor público, era previsível o aumento das pressões por transferências não vinculadas (fundo a fundo), com tendência à inviabilização de organização em rede dos serviços, com fragmentação e segmentação do cuidado. Isso terá forte impacto sobre a organização do cuidado em saúde, provocando redução dos investimentos em novas capacidades; queda da qualidade e segurança dos serviços; aumento da desigualdade territorial; aumento da desigualdade por renda; expansão de novos arranjos privados (clínicas de vizinhança, clínicas populares); surgimento de novas modalidades de pré-pagamento: planos populares, VGBL saúde, franquias; aumento da estratificação do atendimento; e aumento da concentração das inversões e inovações no setor privado de ponta".
José Noronha é pesquisador do LIS/ICICT/Fiocruz e coordenador-executivo do projeto Saúde Amanhã, da Fiocruz
Daniel Soranz (CEE-Fiocruz)
Sem respaldo técnico, portaria desestrutura a base de financiamento do SUS e é uma das mais agressivas à estruturação do sistema
"O teor dessa portaria do Ministério da Saúde é muito grave. O texto extingue os seis blocos de financiamento negociados em 2006, pelo Pacto da Saúde, e institui apenas dois – um de custeio e outro de investimento – fazendo ruir a estrutura orçamentária e o planejamento do Sistema Único de Saúde. Coloca-se, desta forma, em risco a atenção primária e a vigilância em saúde, permitindo que o lobby da indústria farmacêutica e de procedimentos direcione o orçamento para onde quiser.
O Ministério da Saúde baixou essa portaria sem qualquer avaliação técnica consistente. Vale dizer, que não há parecer técnico que a respalde. Ela é uma das portarias mais agressivas à estruturação do SUS, por jogar por terra qualquer possibilidade de planejamento e proteção da atenção primária, bem como da vigilância em saúde. Ela institui uma anti-regra, com a intenção de abrir espaço para o aumento do gasto da União e dos estados e municípios com lobby, desestruturando a base de financiamento do sistema. Essa portaria enfraquece o Ministério da Saúde, que tem como uma das funções induzir políticas estruturantes para o país. O governo federal, assim, perde esse papel e transforma-se em mero repassador de recursos financeiros, como nunca o foi, mesmo antes do SUS. Até no tempo do Inamps o ministério exercia o papel de indutor de políticas de saúde.
Com essa medida, baixada no apagar das luzes de 2017, o SUS perde os princípios organizacionais em que tanto acreditamos. É a desconstrução da atenção primária e da vigilância, que, com o Pacto pela Saúde negociado pelo Ministério da Saúde com estados, municípios e sociedade, teve seus recursos protegidos contra a ação de lobbies da indústria farmacêutica e de procedimento. A portaria pode trazer votos para o atual governo, com o apoio de gestores não comprometidos com o SUS, e também financiamento para a campanha de atores que se interessam pela desvinculação dos recursos da saúde e a consequente desestruturação da atenção primária e da vigilância em saúde. Dessa forma, pode gerar benefícios eleitorais para esses grupos, mas, com certeza, em médio e longo prazos, irá gerar muito dano para a população na ponta".
Daniel Soranz é pesquisador do CEE-Fiocruz, professor da ENSP/Fiocruz e ex-secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro
Gastão Wagner (Abrasco)
Nova regra desequilibra a relação sistêmica, federativa, em rede, para o lado da descentralização excessiva
“Nós, da Abrasco, observamos essa medida com preocupação. É importante acompanhar os desdobramentos da decisão, visto que prevemos consequências negativas para o SUS. A nova regra desequilibra a relação sistêmica, federativa e em rede para o lado da descentralização e da municipalização excessiva. Por não termos mecanismos de regulação das diretrizes dos programas do SUS nem termos implementado a regionalização, os projetos, programas e a gestão dos municípios já tinham muita autonomia. O sistema, que já era exageradamente fragmentado, com baixa convergência nacional, estadual e municipal, passa agora por um desmonte desse equilíbrio precário, entre o que deve ser nacionalizado e centralizado, fragmentando-se ainda mais. Na prática, cria-se agora 5.700 sistemas – o número de municípios – em que cada um deles poderá ter o SUS com a sua cara.
Com essa forma de financiamento, cada município pode alocar seus recursos como achar mais interessante. Darei um exemplo: atualmente, alguns municípios onde há prevalência alta de hanseníase recebem um adicional de financiamento. Esses municípios são obrigados a implementar uma série de medidas de prevenção e de combate à hanseníase. A partir de agora, continuará havendo o repasse do recurso, mas sem mecanismos para garantir quanto será destinado ao combate da epidemia. Qualquer serviço de saúde poderá ser considerado na aplicação dos recursos, independentemente das prioridades, comprometendo os recursos da atenção básica, do combate às epidemias, como dengue, zika, malária etc.
Essa medida põe em risco toda a programação do SUS, transferindo a disputa por recursos ao nível municipal. Cada município também poderá aplicar o que antigamente era a parte da atenção básica usando qualquer modelo ou estratégia. A recente modificação da política de atenção básica já foi feita nesse sentido. Em vez de se favorecer o hospital público municipal, se houver, os recursos poderão ser destinados a uma santa casa conveniada, por exemplo. Deve-se observar, ainda, que os lobbies médicos, os hospitais privados e o próprio interesse dos prefeitos em relação às necessidades de saúde nem sempre coincidem, o que pode gerar repercussões negativas no conjunto do SUS e mais ainda nas áreas mais vulneráveis, onde os lobbies empresarial e médico são menores. Além disso, é impossível cada município construir uma política de atenção hospitalar, visto que 96% dos municípios não têm massa crítica para fazer isso, recursos etc. É uma forma de tornar o SUS reduzido, destinado apenas ao pobre.
A nova regra conta com o apoio dos prefeitos, porque confere a eles liberdade maior para o uso dos recursos, dando margem, inclusive, para que sejam feitas políticas eleitoreiras a partir disso. Se essa forma de financiamento fosse feita junto com, por exemplo, um plano de saúde municipal em execução, seriam aprovados e controlados pela Região de Saúde, gerando outro tipo repercussão. Mas, na prática, embora esteja prevista na Resolução Normativa nº 259 (2011), nós não temos Região de Saúde. Ela é apenas informal.
O SUS tinha as políticas nacionais de atenção básica, hospitalar e de enfrentamento às arboviroses como diretrizes pactuadas, construídas ao longo de 20 anos. Não foi o Ministério da Saúde que inventou. O sistema já está em crise de subfinanciamento, de gestão devido à fragmentação, além de o grau de privatização estar muito além do conveniente. A expansão do SUS, de atenção à saúde da família e as políticas de saúde mental foram interrompidas. Em vez disso, estamos tendo desconstrução do atendimento hospitalar, cirúrgico, e as filas estão aumentando. Estamos sendo derrotados no enfrentamento da dengue, da zika, das arboviroses, da malária. Trata-se de uma estratégia empregada para que a população deixe de responsabilizar o governo federal pelo SUS, no mesmo padrão que as secretarias estaduais já fazem. O SUS passa a ser do município, uma forma de simbólica e politicamente transmitir a ideia de que se o SUS não funciona, é devido a um problema local”.
Gastão Wagner é médico e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Jorge Bermudez (ENSP/Fiocruz)
SUS 2017: Retrocesso neoliberal
"E assim se encerra 2017 para o Ministério da Saúde. Reunindo uma ampla gama de formadores de opinião, incluindo a imprensa, e promovendo mais um evento histriônico: o ministro Ricardo Barros anuncia, no encerrar do ano, em 28 de dezembro, a Portaria 3.992/2017, afirmando que está flexibilizando as transferências fundo a fundo, dos recursos federais para as outras duas esferas do SUS. Ao extinguir arbitrariamente os seis blocos de financiamento de elevada relevância para a gestão dos estados e municípios (atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância em saúde, gestão do SUS e investimento), resume o repasse de recursos a duas categorias: custeio e capital.
Essa flexibilização ou desburocratização dos repasses de cerca de R$ 75 bilhões anuais se dá sob o argumento de possibilitar mais liberdade aos municípios, condicionada ao cumprimento de seus planos de saúde, que pelo menos 400 municípios ainda não possuem. Mas, na verdade, a medida estabelece normas rígidas de controle (SIOP e SUS-Gestão, entre outros mecanismos) e engessa sua utilização, em uma disputa local predatória, sempre ditada pela lógica da eficiência cartorial no gasto, sem absolutamente nenhuma preocupação com o direito à saúde ou com uma visão social do processo saúde/doença ou de seu impacto social ou epidemiológico.
Essa proposta não leva em consideração a Constituição Federal, mais do que violentada pelo Governo Federal. Muito menos a regulamentação específica determinada pelas Leis 8.080/90, 8.142/90, Lei Complementar 141/2012 e uma pletora de recomendações do Conselho Nacional de Saúde. Estamos de volta aos preceitos do Banco Mundial em 1993, que em seu Relatório Anual, explicitamente um receituário neoliberal, estabelecia que os países deveriam restringir suas ações públicas ao fornecimento de uma cesta básica de serviços, que incluísse imunização, prevenção da aids, atenção básica (atenção a crianças, atenção pré-natal e no parto e tratamento de tuberculose e de doenças de transmissão sexual), deixando os procedimentos de alta complexidade e custo para o setor privado.
O governo Collor tentou implementar essa política por intermédio do Projeto Inovar, em que pretendia a desregulamentação total do setor saúde. Este governo, entretanto, vai mais além, pois não podemos analisar a Portaria 3.992 como ação isolada do Ministério da Saúde, e sim no contexto das políticas do governo Temer ,de desestruturação dos serviços públicos, colapso do SUS, sucateamento dos hospitais públicos, extinção ou inviabilização de universidades públicas, acopladas a políticas regressivas de alto e negativo impacto nas condições de saúde e de vida das nossas populações.
A mudança na política de repasse de recursos do SUS a estados e municípios não pode ser vista sem que se leve em conta a Emenda Constitucional nº 95, que congela os gastos públicos pelo período de 20 anos; a reforma da atenção básica; a extinção unilateral e arbitrária da rede própria do Programa Farmácia Popular; a reformulação da Política de Saúde Mental, que propõe o "encarceramento de pessoas” e a eliminação sumária de Centros de Atenção Psicossocial (Caps); o desmonte dos hospitais da rede federal; a inviabilização dos hospitais universitários; e o corte de 32% em novos investimentos, anunciado para o Ministério da Educação para 2018.
Cabe destacar que praticamente todas essas ações no campo da saúde têm sido violentamente criticadas pelo presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos, pelas entidades do setor da Saúde, pela sociedade civil e até por personalidades internacionais que prestam sua solidariedade à população brasileira e repudiam o momento político insano e macabro que o Brasil atravessa no momento, a partir do golpe impetrado em 2016. Esses protestos, no entanto, não parecem afligir um governo golpista, com nível de aceitação próximo de zero, que atropela princípios éticos e morais ao designar para ministérios e cargos relevantes pessoas envolvidas em escândalos e com processos judiciais claramente definidos, ao negociar apoio em troca de recursos.
Caberá ao Brasil se reerguer em 2018 e temos um papel fundamental nessa empreitada, elegendo um governo e um Congresso à altura das aspirações de um povo que sempre prezou a democracia, a soberania e a altivez de uma nação líder, seja no Mercosul, na UnaSul, na CPLP, nos Brics ou no G-20, que não se curve, não sucumba a interesses ilegítimos ou saia pela porta dos fundos, e que saiba responder ao orgulho de um Brasil, com um governo legitimamente consagrado nas urnas".
Jorge Bermudez é pesquisador da ENSP/Fiocruz e integrante do Painel de Alto Nível sobre Medicamentos das Nações Unidas
Heider Pinto (UFRGS)
Ministério transferiu a crise de recursos para os municípios, e a conta será paga pelo cidadão
"A Portaria nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017, que estabelece a unificação do financiamento da saúde e à qual o Ministério tem dado o ar de modernização do financiamento, é, na verdade, um misto de desresponsabilização federal com a saúde do cidadão e mecanismo de corte de gastos na saúde pública. Uma medida que serve, de um lado, para preparar o terreno para absorver a brutal redução de recursos decorrentes da Emenda Constitucional 95 e, de outro, para abrir espaço para o crescimento da saúde privada e paga pelo cidadão, justamente nos espaços de desassistência provocados pela redução e o sucateamento do Sistema Único de Saúde.
O resumo dessa medida, em bom e coloquial português, seria: prefeito, você sabe que reduzirei os recursos da saúde nos próximos 20 anos, então ao menos deixarei você cortar os gastos onde quiser e nada mais lhe exigirei.
A palavra de ordem é flexibilização, que, em vez de benéfica, é prejudicial para o cidadão, na media em que descompromete o SUS com a qualidade, a cobertura e os critérios de investimento na saúde, o que pode resultar em menos atenção básica e prevenção de doenças, dificuldade de acesso ao cidadão, mais epidemias, etc. Como sabemos, para o ministro Ricardo Barros não é possível manter a universalidade e integralidade do SUS, como ele está previsto na Constituição e, como o governo Temer não tem força para mudar o texto constitucional, corta os recursos e joga a crise para os municípios.
São duas as armadilhas que armam para o gestor municipal. A primeira é responsabilizar o prefeito pela gestão, já que, quando perguntarem ao ministro sobre uma grave crise na Saúde, ele dirá que repassa os recursos paras os municípios e que, como deu toda a liberdade de gestão, é o prefeito o responsável por qualquer problema e, portanto, é ele quem deve explicações à imprensa e população. A segunda é que estão vendendo gato por lebre, pois, como a Lei Orçamentária de 2018 prevê mais de 60 ações, se o gestor municipal usar um recurso previsto, por exemplo, para gestantes para pagar a contratação de uma empresa privada para fazer mutirões, ele poderá ser processado e até ser condenado, pagar multas e ficar inelegível. Será uma questão de tempo. Então, há uma promessa, mas quem se fiar nela sem observar a legislação se arrependerá em um ou dois anos."
Heider Pinto é médico sanitarista, mestre em Saúde Coletiva e doutorando em Políticas Públicas; já foi gestor nas três esferas de governo.