Mais SUS para os brasileiros
O Cebes vem a público manifestar sua preocupação com os rumos do debate em torno de uma pretensa (mais uma) reforma do SUS. Como apoiadores e defensores do processo de lutas que criou o SUS na Constituição de 1988, que inclusive ajudamos a formular, não nos furtamos a debater e propor inovações e alterações no SUS. Contudo, é preciso deixar claro em favor de quem as reformas devem ser feitas. O objetivo de toda e qualquer reforma deve ser o de fazer valer o princípio constitucional da saúde como direito de todos os cidadãos, sem distinção de qualquer natureza, e como dever do Estado. Os brasileiros merecem e precisam que o SUS garanta qualidade da atenção, com acesso digno e eficaz a profissionais, serviços e medicamentos.
O SUS mudou de forma radical a configuração da atenção à saúde no Brasil. É, sem dúvida, uma das políticas sociais mais abrangentes e distributivas da história nacional, ao tornar o acesso universal e incluir milhões de brasileiros na condição de usuários de saúde. O SUS aumentou a rede de serviços públicos; criou e implementou inúmeros programas de atenção e promoção avançados e abrangentes. A população conhece e usa o SUS todos os dias, seja direta ou indiretamente. Os números do SUS impressionam, demonstram a potência desse jovem sistema e confirmam a importância da instituição do direito à saúde na Constituição.
Mas os governos têm continuamente adiado sua integral responsabilidade com o SUS, restringindo financiamento, recursos humanos, permitindo a expansão do setor privado em áreas estritamente públicas e sendo permissivo com práticas clientelistas e patrimonialistas. A saúde tem sido negligenciada em prol de uma de política econômica restritiva e de acordos políticos particularistas. Esse não é o projeto dos brasileiros. O projeto dos brasileiros é que se cumpra a Constituição. E aos governos cabe não somente ‘respeitá-la’; eles têm a obrigação de implementá-la.
O Banco Mundial, depois de alguns anos de certa invisibilidade na mídia, busca retomar seu protagonismo na definição das politicas de saúde brasileira e o faz por meio da divulgação de relatório com sugestões, pretensamente objetivas e neutras, para o enfrentamento das “ineficiências” do SUS. Como não poderia deixar de ser, o foco está no uso ineficiente dos recursos, já que para o Banco o atual patamar de financiamento não precisa ser alterado, e na relação público/privado, onde advoga mecanismos para ampliar a privatização do SUS.
Sobre a participação do setor privado na saúde, não há nenhuma evidência de que a sua participação na rede de serviços do SUS tenha gerado economia de recursos. Ao contrário, a participação privada aumentou no SUS, foram criados vários mecanismos de gestão com a participação do setor privado e não houve ganho de eficiência e os ganhos de eficácia são focalizados. Ao setor privado não interessam áreas sem lucratividade e os governos não conseguem regular a oferta privada a contento.
Reconhece que houve descentralização, ao mesmo tempo em que faz crítica à descentralização excessiva, ou seja, houve municipalização do sistema e seria necessário reorganizá-lo a partir da base estadual. A regionalização é projeto antigo do SUS e não ocorre exatamente porque interesses privados acionam a política para vender serviços ao SUS. E interesses políticos particulares constrangem as mais elementares diretrizes de planejamento.
Outra questão preocupante é a insistência em desconsiderar o princípio da universalidade, um incômodo para o Banco desde a criação do SUS. O relatório afirma que o Brasil implantou a “cobertura universal” há três décadas. Não! o que estamos tentando implementar é um sistema universal, integral, igualitário, muito diferente da estratégia focalizada tal como vem sendo maquiada nas propostas de cobertura universal que vem sendo preconizada pelo Banco, reduzida à oferta de um pacote básico com cobertura universalizada .
É inaceitável que o SUS continue sendo usado como moeda política. É preciso criminalizar o uso político de cargos de direção e dos setores de compras de hospitais do SUS, que estimulam a corrupção, drenam recursos e comprometem a qualidade dos serviços.
É inaceitável que se mantenham transferências e subsídios do setor público para o setor privado de planos e seguros, através da compra de planos para funcionários públicos e da dedução do pagamento de planos no imposto de renda. É injusto que o conjunto da população financie o acesso diferenciado das camadas médias e a sobrevivência e crescimento do setor privado.
É preciso estabelecer metas e responsabilidades sanitárias claras a serem cumpridas pelos gestores e governos. A ausência de mecanismos legais de responsabilização de governos e gestores pelos serviços não cumpridos. Essa ausência estimula e encobre a alarmante corrupção no setor.
Por fim, conclamamos os nossos representantes a discutir com a sociedade os rumos do SUS. A sociedade quer sim que o SUS mude. Mude para garantir mais acesso, mais direitos. Para que seja mais público, mais universal e mais de todos os brasileiros.
Não há paz e desenvolvimento onde a vida é um valor menor, onde a saúde é considerada uma mercadoria, que mais terá quem mais puder pagar. Não há justiça social onde a atenção à saúde dependa da capacidade e do esforço individual de cada um. Não há futuro para uma sociedade sem bens coletivos sólidos e perenes.
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes