Paulo Buss: ‘Brasil tem chance de reverter visão fragmentada da saúde na Agenda 2030’
Entre os dias 25 e 27 de setembro, serão aprovados pelos chefes de Estado reunidos na 70ª Assembleia Geral das Nações Unidas os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs), que orientarão o planeta até 2030, na direção da erradicação da extrema pobreza, promoção de prosperidade e bem estar e proteção ao meio ambiente, tal como aponta o documento Agenda 2030 – Transformando nosso mundo (Transforming our world). São 17 objetivos e 169 metas, que substituirão os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2000-2015) e que resultam de construção coletiva envolvendo os 193 Estados-membros da ONU.
O documento é, assim, considerado uma conquista. No entanto, um olhar mais atento sobre a forma como a saúde está apresentada, seja no Objetivo 3, no qual é tratada de forma explícita, seja nos demais, vai identificar uma abordagem fragmentada, pontual, na contramão do que acordaram os mesmos Estados-membros, durante a Rio+20, em 2012. Na ocasião, a saúde havia sido definida como “condição prévia, resultado e indicador das três dimensões do desenvolvimento sustentável – econômica, social e ambiental”, como explica nesta entrevista ao blog do CEE o sanitarista Paulo Buss, coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz), entidade colaboradora da Organização Mundial da Saúde.
“O ponto que defendo como mais importante, que é garantir o desenvolvimento de sistemas de saúde, equitativos, universais e de qualidade, não aparece no documento, reduzido a garantir cobertura universal de saúde”, observa Paulo, que vem expondo em fóruns diversos esse quadro, detalhado no artigo Saúde na Agenda de Desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas, escrito com mais cinco autores e publicado nos Cadernos de Saúde Pública, em dezembro de 2014 – um dos muitos estudos que produziu sobre o papel da saúde no desenvolvimento sustentável.
A expectativa – e a luta – agora é quanto à forma como o Brasil traduzirá os novos objetivos para o plano nacional. “O Brasil pode organizar os objetivos e suas metas como quiser, pode fazer suas adaptações e chegar a um todo lógico e harmônico”, espera. “Precisamos saber quem vai ficar responsável pela implementação dos ODSs no país”.
Como avalia os ODSs e suas metas, em especial, no que diz respeito à Saúde, considerada em 2012, na Rio+20, como indicador do desenvolvimento sustentável?
Durante três anos, após a Rio+20, foram feitas consultas a pesquisadores, ativistas, políticos, em relação a 15 grandes áreas, como saúde, gênero, erradicação da pobreza, energia, câmbio climático. A partir dessas consultas, foram construídos os objetivos do desenvolvimento sustentável, um consenso intergovernamental. A reunião sobre saúde foi realizada em Botswana [em março de 2013, na qual foi discutido o Report of the Global Thematic Consultation on Health, relatório resultante de uma consulta global sobre Saúde, liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em colaboração com os governos da Suécia e da Botswana]. A responsabilidade pelo documento Transforming our world é da Assembleia Geral das Nações Unidas, que reúne a representação dos países condutores do trabalho. Isso dá mais força ao processo, mais participativo, democrático. A saúde tem uma belíssima proposta, no Objetivo 3, que é “assegurar vidas saudáveis e promover o bem estar para todos, em todas as idades”. No entanto, quando vamos às metas referentes ao cumprimento desse objetivo [nove metas propositivas e quatro de implementação], verificamos que não dão conta dele, que há um fracionamento, uma fragmentação.
Como essa fragmentação se expressa?
Três metas originam-se exatamente da agenda não concluída dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs), definidos para o período 2000-2015 – mortalidade materna (meta 3.1), mortalidade infantil (meta 3.2), e aids, tuberculose e malária (meta 3.3). As outras metas tratam de doenças não transmissíveis, saúde sexual e reprodutiva, acidentes de trânsito, uso e abuso de drogas legais e ilegais e contaminação e poluição do ar. O ponto que defendo como mais importante, que é o desenvolvimento de sistemas de saúde, equitativos, universais e de qualidade, não aparece e reduz-se a garantir cobertura universal de saúde (meta 3.8). Cobertura é um conceito muito pequeno perante a ideia de um sistema universal de saúde; estimula-se o seguro saúde, não há menção aos determinantes sociais da saúde e à iniquidade. Não há referência a direitos, não se fala em acesso gratuito. Fala-se em garantia de medicamentos e serviços de saúde, mas não se fala em equipamentos (devices). Como se para pobre só seja essencial remédio e vacina, mas não uma videolaparoscopia, ou um exame de imagem. Não aparece também menção a tecnologia de saúde pública, a vigilância sanitária e epidemiológica, a regulação. Nada disso está contido no documento. Não interessa a alguns grupos que o Estado tenha força para fazer vigilância sanitária, regular o uso de tecnologia e intervir em absurdos como o acesso à tecnologia apenas a quem pode pagar.
Cobertura é um conceito muito pequeno perante a ideia de um sistema universal de saúde; estimula-se o seguro saúde, não há menção aos determinantes sociais e à iniquidade
E os demais objetivos, como a saúde relaciona-se com eles?
Os determinantes sociais da saúde estão espalhados nos outros ODSs – erradicação da pobreza, segurança alimentar, cidades saudáveis e resilientes, água e saneamento. Alguns objetivos fazem em suas metas menção à saúde, mas ainda assim isso está fragmentado. O objetivo referente à saúde deveria conter uma décima meta voltada a garantir a existência de formas de governança que articulassem a saúde aos demais objetivos. Isso seria o ideal. Mas não aconteceu. A Fiocruz propôs ao governo brasileiro que levasse para a discussão essa décima meta, e a resposta que tivemos foi que abrir mais uma vez o debate poderia levar a piorar não só objetivo da saúde, como os demais. Em artigo nos Cadernos de Saúde Pública, apresentamos a versão do documento que gostaríamos de ver aprovada agora. Na meta que trata de cobertura universal acrescentamos: “por meio de sistemas universais, integrais, gratuitos, baseados em direitos, de qualidade”. A cobertura universal até permaneceria no texto, mas ficaria como uma parte da proposta de sistemas universais. O documento evita falar em sistema, principalmente porque o país que mais influi nisso, os Estados Unidos, não tem um sistema. Gastam muito e têm resultado muito ruim em relação ao gasto, porque não têm monitoramento, planejamento, avaliação. É tudo picadinho.
Não interessa a alguns grupos que o Estado tenha força para intervir em absurdos como o acesso à tecnologia apenas a quem pode pagar
O que fazer a partir desse resultado alcançado?
Temos o objetivo referente à saúde, que é fantástico. O documento que vai ser assinado, para o bem e para o mal, tem coisas boas e coisas lamentáveis, que iremos analisar, ponto por ponto. A questão, agora é a tradução dele para o plano nacional. É o que me interessa neste momento, como pesquisador, professor, analista político. Vamos lutar para que o acréscimo que propusemos ao documento geral apareça na implementação que o Brasil fará dos ODSs. O Brasil pode organizar os objetivos e suas metas como quiser, pode fazer suas adaptações. Precisamos saber quem vai ficar responsável pela implementação dos ODSs no país. Vai haver uma comissão? Essa comissão vai poder propor ao governo um plano lógico, harmônico, em que entrem os pilares econômico, social e ambiental? Quais serão os objetivos e metas priorizadas? Com que dinheiro isso vai ser feito? Como a saúde poderá dialogar, aqui dentro, com o que chamamos de saúde em todas as políticas? Vamos indagar, de cada um dos objetivos sustentáveis, qual o impacto da política estabelecida sobre a saúde? Em caso de impacto negativo como eliminar ou mitigar? Que meta devemos definir para que haja impacto positivo? O que interessa agora é isso.
O olhar fragmentado sobre a saúde não se restringe apenas ao documento dos ODSs...
Temos sempre nos governos uma visão fracionada, partida da realidade, enquanto defendemos, no mínimo, a articulação de políticas, coerentes, com impactos positivos sobre a saúde humana e o ambiente. A economia não pode ser o centro de uma agenda de desenvolvimento, tem que servir à questão ambiental e social. No entanto, o que predomina no desenvolvimento é a palavra crescimento, a qualquer custo. Não é assim que nós vemos. Se houver desenvolvimento impactando negativamente a saúde, vamos denunciar.
A economia não pode ser o centro de uma agenda de desenvolvimento, tem que servir à questão ambiental e social
O Brasil já tem seu Sistema Único de Saúde (SUS), e, na Constituição (art. 196), afirma a saúde como direito de todos e dever do Estado. Isso poderia ser uma inspiração para implementarmos os ODSs da forma esperada?
O SUS é uma dimensão. Se for universal, equitativo, integral e de qualidade, está fazendo seu papel. Mas por mais que tenhamos um sistema de saúde assim, isso não basta. Para se ter saúde, é preciso uma série de outros fatores favoráveis. Distribuição de renda justa, ambiente limpo, água acessível, esgoto, habitação, energia, um conjunto de coisas que nós chamamos de determinantes sociais, ambientais e econômicos. E isso tem abrangência nacional e internacional. Produzimos um grande relatório em que analisamos as origens políticas globais das iniquidades [relatório da Comissão The Lancet – Universidade de Oslo sobre Governança Global para a Saúde, formada por 18 pesquisadores e formuladores de políticas, chamado As origens políticas da iniquidade em saúde: perspectivas de mudança, publicado na revista inglesa The Lancet, em 2014]. É preciso entender que a forma como o mundo atua, tem consequências sobre o Brasil. Assim, temos que defender, por exemplo, comércio justo, controle da ação das multinacionais que estão no país, dos negócios que geram iniquidade, das atuações que trazem efeitos negativos sobre o ambiente. Um conjunto de questões relativas à governança global e à governança nacional. A regulação dentro do Brasil dos efeitos sobre a saúde humana das políticas econômicas é fundamental.
Como fazer com que o econômico saia do centro da agenda e passe a servir à questão social e ambiental, obtendo-se recursos, por exemplo, para o financiamento do SUS?
Financiamento do SUS significa, hoje, justiça fiscal. Para aplicar em políticas sociais adequadas de infraestrutura, saúde, o governo não pode ganhar esse dinheiro com imposto sobre o pãozinho. O nosso maior imposto é sobre o consumo, quando temos os bancos lucrando horrores. No primeiro trimestre, em meio a uma crise econômica braba, tiveram a bagatela de 20 bilhões de lucro! Isso é aceitável? Tem também a questão das grandes heranças, das grandes fortunas. A iniquidade fiscal tem que ser corrigida. É uma política de natureza econômica. E vai impactar a saúde. Os cortes na educação e na saúde vêm da inexistência de recursos financeiros suficientes. Mas como está esse ingresso fiscal? Temos que repensar isso. É fácil? Não. Há legitimidade neste momento no governo? Não. Mas o que eu, como médico, como profissional de saúde, tenho que dizer é que precisamos ter recursos financeiros adequados, bem aplicados, bem gerenciados, para financiar uma saúde baseada em direitos, integral, de qualidade. E mesmo bem aplicados, não serão suficientes. E essa falta tem que ser suprida por uma fonte justa, que, para mim, é buscar a contribuição maior de quem ganha mais. Isso é um debate social, da sociedade civil, do Congresso. A maior parte dos políticos eleita tem compromissos com essa injustiça fiscal geral.
Para aplicar em políticas sociais adequadas de infraestrutura, saúde, o governo não pode ganhar esse dinheiro com imposto sobre o pãozinho
Um plano nacional de implementação dos ODSs, com uma visão sistêmica é uma questão de Estado, mais do que de governo, não?
Mas o Estado tem uma representação no governo. E tem o Congresso Nacional, tem a pressão da sociedade civil, o Judiciário, somos um Estado-nação. Tem os movimentos sindicais, as ONGs do bem, as do mal, a academia, as universidades, a Fiocruz. Forças vivas. E nós temos que ter uma posição clara. É a minha visão. Posso ser bombardeado, como idealista, ingênuo, carimbem como quiser. Temos feito no Cris [Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz] análises que buscam ajudar a Fiocruz a definir uma posição. Temos feito relatórios, informes claros para a fundação. Isso tem que chegar ao nosso Ministério da Saúde e ao nosso Ministério das Relações Exteriores. O Brasil vai ter um novo grupo de trabalho para implementar os ODSs? Quem vai compor? A Fiocruz será ouvida? Ela é parte do governo. Tem que ganhar esse lugar naturalmente, politicamente. Espero que o Ministério da Saúde veja essas posições da Fiocruz, que, às vezes, não são incorporadas, apesar do esforço dos grupos internos, de escrever, de sugerir. Há uma pressão a ser feita. (Entrevista a Eliane Bardanachvili/CEE-Fiocruz)