Translação do conhecimento e saúde pública
A integração entre as descobertas técnico-científicas e a produção de novas soluções para os problemas de saúde da população, bem como a mobilização de cientistas e profissionais da saúde em torno do desenvolvimento de projetos com metodologias sólidas permitiram que o Brasil caminhasse de forma surpreendente pela epidemia de Zika. A consideração é da médica e pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, Celina Turchi, que ministrou a palestra O papel da translação do conhecimento para soluções de saúde pública, na abertura da Feira Soluções para a Saúde – Zika. O evento, realizado em Salvador (BA), entre os dias 8 e 10 de agosto de 2017, é o primeiro de uma série de cinco Feiras de Soluções, uma em cada região do país. Reunindo parceiros nacionais e internacionais, a Feira é coordenada pela Fiocruz Brasília e pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia (Cidacs).
A translação do conhecimento consiste na troca e aplicação do conhecimento com vistas a potencializar os benefícios decorrentes de inovações para fortalecer sistemas de saúde e a melhoria da saúde das populações. O conceito refere-se ao entendimento de que não basta haver conhecimento novo ou sua divulgação, sendo necessário promover sua utilização, na prática.
Segundo Celina Turchi, há no Brasil, reconhecidamente, 210 vírus, com 37 doenças conhecidas, entre elas dengue, febre amarela e zika. “Em áreas urbanas, essas doenças são transmitidas por um mesmo vetor, o mosquito aedes aegypti, que tem predileção pelo ambiente domiciliar, uma grande competência e vem acompanhando o homem ao longo de décadas”, explica Celina, eleita pela revista Time como uma das cem pessoas mais influentes de 2017 por ter liderado um estudo que formalizou o vínculo entre o vírus zika e a microcefalia.
“A dengue, por exemplo, é uma doença que há mais de trinta anos se estabelece nas cidades. Preocupa pelo potencial de transmissão duradouro, pelos picos epidêmicos dramáticos, que geram consequências graves para a comunidade”, diz a pesquisadora, apontando que a chikungunya também gerou uma preocupação especial entre os pesquisadores devido à cronicidade dos sintomas. “O zika vírus, por sua vez, foi interpretado inicialmente como uma infecção benigna, com sintomas mais leves e, por isso, sem grande importância”.
A pesquisadora aponta que, em 2015, houve um aumento de casos de crianças microcefálicas, com fenótipos diferentes e com características graves em Pernambuco. Segundo Celina, em 15 dias, já haviam sido atendidos mais de vinte casos. Até então, o índice em Pernambuco era de um a dois casos de microcefalia por ano. “Anualmente, eram registrados, no Brasil, 170 casos de microcefalia. De repente, esse número subiu para 5,6 mil casos. Isso era uma epidemia de zika, que levava à síndrome congênita do zika”.
A partir de outubro de 2015, o aumento dos números e a ocorrência em outras regiões do país chamaram atenção nacional para o problema, tornando-o uma questão importante a ser investigada. “O Ministério da Saúde, então, percebeu que se tratava de um evento que não ocorria em Pernambuco e nos estados vizinhos, mas que era apontado também na região Centro-Ooeste e em outros lugares, declarando emergência nacional, que durou 18 meses”. A declaração de emergência nacional, diz Celina, contribui para que os recursos de pesquisa possam ser entregas de forma mais ágil, visto que normalmente, dependem de processos burocráticos demorados. “Em um momento de epidemia, estamos correndo contra o tempo para obter respostas”.
Anualmente, eram registrados, no Brasil, 170 casos de microcefalia. De repente, esse número subiu para 5,6 mil casos. Isso era uma epidemia de zika, que levava à síndrome congênita do zika (Celina Turchi)
De acordo com Celina, desde o começo da epidemia de microcefalia, havia uma ideia de que o problema poderia estar relacionado a uma doença infeciosa. No entanto, os resultados dos testes a partir de doenças já conhecidas eram negativos. “Um infectologista pernambucano, Carlos Brito, observou, após atender muitas pessoas acometidas por uma infecção viral nova, que ocorria uma manifestação neurológica em adultos, a síndrome de Guillain-Barré. Também observou o aglomerado de mulheres cujos filhos apresentavam uma síndrome neurológica congênita. Deduziu, assim, que aquelas mulheres poderiam ter sido infectadas na gravidez e as malformações estavam sendo vistas no nascimento, mas afirmou não saber como provar todas aquelas evidências”, conta Celina, citando também a médica e pesquisadora Adriana Melo, pioneira ao identificar o zika vírus no líquido amniótico de uma mulher que teve um filho com microcefalia.
“O que sabemos hoje é que a infecção pelo zika vírus durante a gestação causa abortos, natimortos, crianças que nascem com restrição ao crescimento e com perímetro encefálico anormal, podendo ter alterações auditivas, visuais e de calcificação. A microcefalia, em si, não é uma doença. Trata-se apenas de um achado clínico que descreve um perímetro menor na cabeça, embora boa parte das microcefalias indiquem algum comprometimento neurológico”, explica Celina, observando que ainda há muito a ser esclarecido sobre a relação entre o vírus zika e a microcefalia. "Até hoje não temos dimensão total disso que chamamos de espectro da zika. Muitas respostas só iremos ter agora. Que manifestações tardias elas terão no futuro, que tipo de atraso, se terão problemas endócrinos, distúrbios de comportamento, dificuldade de aprendizagem etc. A microcefalia é a ponta do iceberg”, aponta. (Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)