Patentes por decreto: Brasil na contramão

Patentes por decreto: Brasil na contramão

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Frequentemente ouvimos o comentário de que “nada mais surpreenderia vindo do atual governo”. Afinal de contas, o desmonte em curso acaba com conquistas sociais, e desregulamentar sistemas passa a ser mais um instrumento para facilitar benesses e privilegiar interesses de determinados setores. As patentes de produtos e de processos obedecem a um sistema internacional que tem como objetivo proteger os interesses individuais dos inventores garantindo monopólio por vários anos e eliminando a concorrência, até esses produtos ou processos caírem em domínio público. Temos criticado esse sistema, considerando que os monopólios permitem a cobrança de preços proibitivos, muitas vezes extorsivos e descabidos, inibindo o acesso da população a novas tecnologias em saúde.

Lemos na imprensa (Valor Econômico, 19/07/2017), com estupefação, que o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) elabora um decreto com vistas a um procedimento simplificado de deferimento de pedidos de patentes, que pretende atualizar, no prazo de um ano, em torno de 230 mil processos represados, chamando esse mecanismo de “solução extraordinária”,  prevendo o deferimento dos pedidos, ignorando a complexidade das análises e negando a necessidade de aumentar o quadro de examinadores de patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Podemos estar frente a uma enxurrada de aprovações massivas de patentes, e nosso país sucumbindo a pressões externas ou a negociação de privilégios. O atual governo destacou que “produtos farmacêuticos devem ficar fora do novo regime”, no entanto, o que temos visto são mudanças naquilo que é declarado, de modo a atender a interesses do momento. Nesse sentido, é com grande preocupação que vemos o risco de que essa proposta represente concessão automática de pedidos de patentes ou exames inadequados dos requisitos de patenteabilidade.

O setor farmacêutico tem operado no sistema de patentes com depósito de um número crescente de pedidos em torno de um mesmo produto, com a simples finalidade de estender o monopólio daqueles já consolidados no mercado, buscando proteger alterações incrementais envolvendo o mesmo princípio ativo previamente patenteado (forma farmacêutica, forma de dosagens, polimorfos, combinações, sais etc) ou com pequenas alterações. Conhecidos como uma das estratégias de evergreening, esses tipos de pedidos de patentes secundárias na maioria das vezes não atendem aos requisitos de patenteabilidade e não merecem ser concedidos.

Os custos imediatos para o SUS da concessão indevida de uma patente são estratosféricos

A questão do backlog [pendência] no exame de patentes é uma preocupação para o setor Saúde, na medida em que a incerteza jurídica quanto à patenteabilidade de um produto gera uma situação de monopólio, refletida em altos preços nas compras públicas do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a concessão automática desses pedidos não pode ser, em hipótese alguma, a solução. Ela basicamente legitimaria esses pedidos secundários como ferramenta de extensão do monopólio de produtos para além dos vinte anos estabelecidos no Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio.

Os custos imediatos para o SUS da concessão indevida de uma patente são estratosféricos. A lei de propriedade industrial (Lei nº 9.279/96) previu o mecanismo de patentes pipeline, que assegurou a concessão de patentes no setor farmacêutico, entre outros, sem o exame dos requisitos de patenteabilidade, sendo considerada Trips-plus. Estima-se que para apenas seis medicamentos antirretrovirais (ARV), cujas patentes foram concedidas pelo mecanismo pipeline, o governo brasileiro gastou cerca de 420 milhões de dólares a mais, no período de 2001 a 2007, pela impossibilidade de comprar alternativas genéricas mais baratas e disponíveis no mercado internacional (leia mais aqui).

No contexto da EC 95/2016, que estabelece o teto dos gastos por vinte anos, a concessão automática de patentes assegurará monopólio a produtos que poderiam estar em domínio público, ser objeto de licitações e, portanto, de concorrência, viabilizando a busca de melhores preços

A própria Organização Mundial da Saúde já se posicionou em defesa de um exame de patentes à luz da saúde pública, recomendando o exame restrito dos requisitos de patenteabilidade a fim de conceder proteção apenas a inovações genuínas e evitando a concessão de pedidos secundários (veja o guia publicado pela OMS, em 2007). Em 2016, o relatório final do Painel de Alto Nível das Nações Unidas para o Acesso a Medicamentos reforçou essa orientação de interpretação dos requisitos de patenteabilidade para restringir a estratégia do evergreening.

Nos últimos anos, as despesas do SUS em assistência farmacêutica foram crescentes, a exemplo das cifras do Ministério da Saúde, que passaram de R$ 8,5 bilhões, em 2008, para R$ 14,8 bilhões, em 2015, tendo os produtos em situação de monopólio um papel importante nesse aumento. No contexto da Emenda Constitucional que estabelece o teto dos gastos do governo federal por vinte anos (EC 95/2016), incluindo a saúde, a concessão automática de patentes assegurará monopólio a produtos que poderiam estar em domínio público, ser objeto de licitações e, portanto, de concorrência, viabilizando a busca de melhores preços e ampliação das políticas de acesso a medicamentos, respeitando-se os princípios da universalidade e integralidade do SUS. O impacto dessa medida nos preços dos medicamentos e no orçamento do SUS será imediata e pouco contornável pela manifestação contrária de terceiros, tal como a matéria do Valor Econômico sugere.

Podemos, ainda, estar colocando uma pá de cal em setores importantes da nossa indústria de capital nacional

A concessão de pedidos de patentes sem o exame técnico já ocorre na África do Sul. Para ilustrar, no período de 2003 a 2008, enquanto no Brasil foram concedidas 278 patentes no setor farmacêutico, na África do Sul foram registradas 2.442 (vide estudo). Considerando os efeitos nocivos para o acesso a medicamentos, desde 2011, organizações da sociedade civil em defesa do direito à saúde têm liderado uma campanha para consertar a lei de patentes sulafricana (Fix the Patent Law Campaign), demandando o exame dos pedidos de patente (ver aqui, aqui e aqui).

Além de comprometer nossa soberania, a medida deve ter seu impacto econômico, político e jurídico, cuidadosamente avaliado. Podemos, ainda, estar colocando uma pá de cal em setores importantes da nossa indústria de capital nacional. Como destaca a Manifestação da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), um decreto nos moldes divulgados, além de inconstitucional, viola tratados comerciais internacionais e se reveste de ilegalidade.

De acordo com o MDIC, uma das possibilidades estudadas foi a de contratação de 687 novos servidores, o que permitiria analisar os processos pendentes em aproximadamente oito anos, mas não está sendo considerada por implicar custo superior a R$ 1 bilhão com salários nesse período. Com certeza, uma maior permissividade na anuência de patentes pendentes vai gerar custos muito superiores a esse. Afinal, quanto vale uma patente? Quanto custa para o Brasil pagar produtos sob monopólio, que não têm concorrência e que poderiam ser obtidos com preços muitas vezes inferiores?

O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), coletivo de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, ativistas e pesquisadores, que, desde 2003, vem atuando no tema da propriedade intelectual e acesso à saúde no Brasil, representando 17 entidades, também já se manifestou em Carta Aberta ao Ministro do MDIC, assim finalizada: “Manifestando profunda preocupação e reafirmando nosso compromisso de trabalhar no sentido de dotar o Brasil com a melhor análise de patentes possível, uma análise que defenda o interesse público, que tenha em consideração que o monopólio só deve ser concedido caso realmente a tecnologia se prove merecedora, repudiamos veementemente o decreto acima mencionado. O atraso no exame de patentes do Brasil só poderá ser solucionado com políticas públicas sérias e transparentes e não com medidas midiáticas que atendem tão somente o interesse das grandes corporações transnacionais”.

Somamo-nos às vozes desses grupos e expressamos nossa profunda preocupação com os desdobramentos dessa decisão governamental, contrária aos esforços de garantia do acesso a medicamentos no sistema público de saúde.

Lembramos que, hoje, existem pelo menos 16 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que alteram a Lei 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), para melhor ou para pior. Analisar essas alterações representa necessidade premente, em vez de se buscarem soluções extraordinárias que, ao mesmo tempo em que apressam procedimentos que precisam de reflexão profunda, podem favorecer um balcão de negócios em que se trata de interesses muito distantes daqueles da Saúde Pública, com vistas à melhoria das condições de vida de nossas populações. O mundo e a imprensa internacional veem, hoje, um Brasil muito distante daquele que já admiraram em passado recente, pautado por nossa Constituição, que define a saúde como direito de todos e dever do Estado.

* Pesquisadores do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF) da ENSP/Fiocruz