Jorge Bermudez: ‘Na discussão sobre acesso a medicamentos vemos o confronto entre saúde e comércio’

Jorge Bermudez: ‘Na discussão sobre acesso a medicamentos vemos o confronto entre saúde e comércio’

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Homem de barba e óculos, vestindo paletó escuro, em fundo colorido

Um dos temas que comporão – após grande resistência – a programação da 70ª Assembleia Mundial da Saúde, que se realiza a partir de segunda-feira, de 22 a 31 de maio, em Genebra, é o acesso a medicamentos, em especial, o Relatório do Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Acesso a Medicamentos, publicado em setembro de 2016, trazendo 24 recomendações com foco em direitos. O tema não entraria em pauta na Assembleia, se dependesse do Secretariado da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das representações de países como Estados Unidos, Suíça, Japão e os da União Europeia, como explica nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Jorge Bermudez. Um dos quinze integrantes do Painel de Alto Nível, constituído em novembro de 2015, pelo então secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, para trabalhar durante um ano (compuseram o painel, ainda, representantes de África do Sul, Botswana, Estados Unidos, Austrália, Japão e Tailândia, entre outros), Bermudez destaca o “confronto entre saúde e comércio”, para analisar os desafios que se impõem à garantia de acesso universal a tratamentos.

“A dificuldade em se discutir o acesso a medicamentos se dá principalmente por conta das críticas do relatório ao atual sistema de propriedade intelectual, que privilegia os interesses comerciais em detrimento do acesso como direito humano fundamental. Isso nos traz sempre de volta ao confronto entre saúde e comércio, direito à saúde e direito comercial, direito individual e direito à saúde como direito universal”, observa.

A forma de trazer o tema do acesso a medicamentos à tona durante a 70ª edição da Assembleia se deu a partir de um assunto que está entre as prioridades da OMS, em vários pontos da pauta do evento: a resistência antimicrobiana, isto é, a capacidade dos microrganismos de resistir aos efeitos de um tratamento. “Temas correlatos acabam sendo uma estratégia para incluir determinadas discussões polêmicas explicitamente na agenda da Assembleia”, diz Bermudez, explicando que o problema da resistência antimicrobiana remete às contradições entre oferta e demanda no acesso a medicamentos e vem prolongando doenças em todo o mundo, afetando países pobres e ricos. “Esse problema tem relação com o fato de o investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos estar vinculado ao preço final dos produtos”, explica o pesquisador. “Ao mesmo tempo que antibióticos antigos deixam de ser produzidos por falta de interesse da indústria, há falta de pesquisa e desenvolvimento para novos antibióticos”, aponta.

Na busca de que as recomendações do relatório final do Painel de Alto Nível sejam observadas e as discussões sobre os pontos em que não houve consenso prossigam, Bermudez registra aqui seu apoio à candidatura do etíope Tedros Adhanom nas eleições para a direção geral da OMS. Tedros foi ministro da Saúde da Etiópia no período em que Bermudez era o diretor executivo da Unitaid (iniciativa implementada pelos governos do Brasil, França, Chile, Noruega e o Reino Unido, voltada a gestão de tecnologias de saúde, para a HIV/Aids, tuberbulose e malária). “Convivi muito com Tedros. O acesso a medicamentos sempre foi prioridade para ele. Sua eleição, além de abrir espaço para a África, já que a União Africana fica sediada na Etiópia, vai priorizar o acesso a medicamentos e a implementação das ações necessárias propostas no relatório do Painel de Alto Nível. Fica claro também que Tedros representa os interesses dos países em desenvolvimento e das populações negligenciadas e vulneráveis”, considera.

Leia abaixo a entrevista.

 

A que se deveu a dificuldade para que o Relatório do Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Medicamentos entrasse na pauta da 70ª Assembleia Mundial da Saúde?

A resistência se deu por parte do Secretariado da OMS e de alguns países, como Estados Unidos, Suíça, Japão e União Europeia, contrariamente ao que aconteceu em fóruns como a Unaids [Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS] e até na OMC [Organização Mundial do Comércio], em que o tema foi bastante discutido. Essa resistência em se discutir o acesso a medicamentos se dá principalmente por conta das críticas do relatório ao atual sistema de propriedade intelectual, que privilegia os interesses comerciais, em detrimento do acesso como direito humano fundamental. Isso nos traz sempre de volta ao confronto entre saúde e comércio, direito à saúde e direito comercial, direito individual e direito à saúde como direito universal, que vem se apresentando nas últimas duas décadas, nos mais variados foros mundiais.  

 

Sete meses após a publicação do relatório, é possível fazer uma avaliação de como está a aceitação do documento e das expectativas de implementação das recomendações, em nível mundial? Esse acompanhamento está sendo feito?

O Relatório do Painel de Alto Nível foi divulgado em setembro de 2016, levando a toda uma série de manifestações, a maioria de apoio ao conteúdo, ao processo e às recomendações. Da mesma maneira, originou uma série de eventos nos quais o texto foi posto em discussão, nos mais variados foros. O relatório tem que ser encarado como um documento vivo, que precisamos traduzir em ações concretas nos níveis global, regional e nacional. As 24 recomendações que apresenta precisam ser implementadas. Além disso é preciso continuar promovendo a discussão sobre os pontos nos quais não foi possível avançar por falta de consenso. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em Nova Iorque, secretariou os trabalhos do Painel e está monitorando todos os eventos nos quais o relatório é discutido. É necessário que os governos assumam o cumprimento das recomendações.

 

O relatório tem que ser encarado como um documento vivo, que precisamos traduzir em ações concretas nos níveis global, regional e nacional. As 24 recomendações que apresenta precisam ser implementadas

 

Que avanços principais o relatório final do Painel de Alto Nível apresenta?

A defesa da transparência nas pesquisas por parte da indústria, em todas as etapas de composição de seu custo; a não geração de patentes e exploração comercial pelo laboratório nos processos em que houve investimento público; e a rejeição a pressões sobre países que estão fazendo acordos de livre comércio, como ocorreu recentemente na Colômbia – conseguimos incluir o caso em um pequeno box no relatório. A Colômbia buscava aprovar licença compulsória, ou quebra de patente, de um produto para tratamento de câncer, que estava muito caro. Suíça e Estados Unidos pressionaram e disseram que, se isso ocorresse, retirariam o apoio ao acordo de paz que o país estava assinando com a guerrilha! No Painel de Alto Nível, ficou claro que esse tipo de pressão é inadmissível, não pode haver.

 

De que forma os pontos polêmicos da discussão sobre acesso a medicamentos estão apresentados no relatório final?

O relatório traz as 24 recomendações que têm como foco os direitos humanos e, além disso, traz comentários em separado no final. No comentário que escrevemos [Jorge Bermudez, Winnie Byanyima, da Oxfam Internacional, e Shiba Phurailatpam, da Rede de Pessoas Vivendo com HIV, da Ásia e Pacífico], defendemos, entre outras coisas, que deveria haver uma lista de medicamentos essenciais, que, em um primeiro momento poderia ser da OMS, livres de patente, de domínio público. A maioria desses medicamentos já não tem patentes, mas alguns sim, ainda. Tornando-os de domínio público seu preço baixaria e ficariam acessíveis. A indústria contestou, alegando que dessa forma não haveria incentivo para o investimento em pesquisa. A indústria sempre se coloca contrária. Seus representantes na comissão também inseriram comentários no relatório. O confronto não se deu no texto principal, mas ao final ficou expresso. Esse embate vai continuar.

 

Estamos propondo a criação de um fundo, coordenado pelas Nações Unidas e pela OMS, com a contribuição de países e de organismos internacionais, que remunere a indústria farmacêutica e possibilite desvincular os investimentos em pesquisa do preço final dos produtos

 

Como o tema da resistência antimicrobiana pode, no âmbito da 70ª Assembleia Mundial da Saúde, levar ao debate as recomendações do relatório final do Painel de Alto Nível, em especial a questão do delinkage – isto é, a desvinculação entre investimento em pesquisa e preço do medicamento –, conforme destaca o documento?

Como uma das prioridades apontadas pela OMS é a resistência de microrganismos a antibióticos, por uma série de fatores – fruto de uso incorreto ou incompleto por parte do paciente, uso de antibióticos no gado, levando a população a também ingerir o medicamento etc. –, buscamos levar a discussão sobre acesso por aí. Temas correlatos acabam sendo uma estratégia para incluir determinadas discussões polêmicas explicitamente na agenda da Assembleia. O número de empresas farmacêuticas que investem em pesquisa para novos antibióticos vem caindo ao longo dos anos e isso vem preocupando. Ao mesmo tempo em que antibióticos antigos deixam de ser produzidos por falta de interesse da indústria, não há pesquisa e desenvolvimento para novos antibióticos. Um exemplo é a falta de penicilina no Brasil e no mundo, trazendo o recrudescimento da sífilis. A tuberculose multidroga resistente (TB-MDR) é outro exemplo, um problema gravíssimo, com tratamentos atualmente demorados, tóxicos e caros – o que não se limita a países de baixa renda. Algumas iniciativas, como Fundo Global, Unitaid, Gavi [voltado à imunização em países pobres] e DNDi [sigla em inglês para Iniciativa Drogas para Doenças Negligenciadas], têm conseguido superar essa barreira e levar produtos a populações em países pobres, reduzindo seus custos. A resistência antimicrobiana nos remete às contradições entre oferta e demanda no acesso a medicamentos e acaba sendo um problema que afeta países pobres e países ricos e seus sistemas de saúde. Estamos propondo a criação de um fundo, coordenado pelas Nações Unidas e pela OMS, com a contribuição de países e de organismos internacionais, que remunere a indústria farmacêutica e possibilite desvincular os investimentos em pesquisa e desenvolvimento do preço final dos produtos. A resistência antimicrobiana pode ser um bom ponto de partida para a constituição desse fundo, levando ao desenvolvimento de novos antibióticos, antivirais e outros medicamentos.

A resistência antimicrobiana nos remete às contradições entre oferta e demanda no acesso a medicamentos e acaba sendo um problema que afeta países pobres e países ricos e seus sistemas de saúde

O delinkage vem sendo discutido há bastante tempo e esteve muito presente no Painel de Alto Nível. Que se invista em novos medicamentos, sem que isso seja inacessível à população; que tenhamos produtos novos, mas com acesso universal. Não é que os laboratórios tenham que ter prejuízo, mas o lucro precisa ser decente. Não pode haver lucro desmedido e preços extorsivos. A indústria diz que desenvolver determinado medicamento custa 4 milhões de dólares e, hoje, não há como auditar as contas para ver se é isso mesmo ou não. O fundo é uma forma de abrir a caixa-preta da indústria

 

Os países ricos também vêm sendo afetados pelo problema de acesso a medicamentos?

Isso ficou claro no Painel de Alto Nível. A questão do acesso a medicamentos não é mais restrita aos países pobres ou de renda média. O lançamento de novos produtos para o tratamento da hepatite C e produtos resultantes de processos biotecnológicos, a preços elevados e muitas vezes inacessíveis e até de caráter extorsivo, levaram países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França e Austrália a anunciarem a impossibilidade de arcar com esses valores em seus respectivos sistemas de saúde, mesmo reconhecendo serem produtos custo-efetivos, o que levou a um clamor mundial. Conforme um dos dados levantados, a renda mensal de uma família americana é de 65 mil dólares por ano e um tratamento de câncer nos Estados Unidos custa mais de 100 mil dólares, uma incoerência entre direitos humanos internacionais e regras do comércio, no que diz respeito ao acesso a tecnologias em saúde. O mesmo ocorre com o tratamento da hepatite C, a 84 mil dólares, com um comprimido que custa mil dólares, o sofosbuvir, tomado por 84 dias [ver mais aqui]. O que chama a atenção é que esses valores nada têm a ver com pesquisa. No caso do sofosbuvir, a empresa farmacêutica [Gilead] que lançou o produto havia comprado a empresa produtora do medicamento, e estabeleceu um preço que compensasse o que investiu. O preço do tratamento de hepatite não se deve a custos de investimento em pesquisa, mas à necessidade de recuperar o investimento feito na compra da empresa. Achava-se que o problema do acesso era da África e de países de renda média, mas não é.

 

Que se invista em novos medicamentos, sem que isso seja inacessível à população; que tenhamos produtos novos, mas com acesso universal. Não pode haver lucro desmedido, a preços extorsivos

 

Uma em cada três pessoas não tem acesso a medicamentos...

Essa relação se dá principalmente nos países pobres. Hoje, temos também um contingente enorme de refugiados. São 60 milhões, 70 milhões. Temos o que chamamos de populações negligenciadas, conforme lembrou a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, em Genebra [durante o Encontro de Parceiros Globais da OMS sobre Doenças Tropicais Negligenciadas. Colaborar. Acelerar. Eliminar, em 19/4/2017]. Costumamos falar em doenças negligenciadas, que atingem populações pobres, como leishmaniose ou doença de Chagas, mas não adianta tratar essas doenças e a pessoa morrer de diabetes, ou de hipertensão. O que temos, então, não são doenças negligenciadas, mas populações negligenciadas. É preciso tratá-las como quem tem direito a atenção integral à saúde. O acesso à saúde tem que ser universal.

 

O confronto entre saúde e comércio, conforme o senhor aponta, não pode ser contornado por meio de laboratórios públicos?

O problema é que não há laboratórios públicos. O Brasil é um dos poucos países com um parque público estatal de produção de medicamentos – Fiocruz, Exército, Marinha, Aeronáutica, e estados como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais. Fora do Brasil, no entanto, não é assim. Aqui, fazemos uso dessa característica por meio de parcerias, inclusive Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), política que começou no governo Lula, construindo uma relação entre os setores público e privado, para transferir tecnologia e produzir, por laboratórios oficiais, medicamentos estratégicos para o Sistema Único de Saúde, com quedas de preços a cada ano. No entanto, na atual conjuntura política, vemos uma enorme contradição, em que ao mesmo tempo em que novos produtos (oncológicos, para hepatite C) são registrados na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e incorporados nos nossos protocolos de tratamento pelo Ministério da Saúde, há o congelamento dos gastos públicos, o que, na prática, inviabiliza o SUS, podendo transformar esses protocolos em letra morta. No momento em que o governo propõe um teto de gastos, e os novos medicamentos desenvolvidos são normalmente mais caros que os anteriores, está excluindo pessoas.

 

O que temos, então, não são doenças negligenciadas, mas populações negligenciadas. É preciso tratá-las como quem tem direito a atenção integral à saúde

 

Saúde é direito de todos e dever do Estado, como está na Constituição...

Sim. Temos que partir do princípio de que o Sistema Único de Saúde está subfinanciado, e buscar mais recursos, fazer o que manda a Constituição.

 

E quanto à quebra de patentes? O Brasil poderia repetir a experiência de 2007, com o medicamento Efavirenz, usado no combate ao vírus HIV?

A quebra de patentes ocorre quando só há um produtor de determinado medicamento, e o governo decide por motivo de sustentabilidade produzi-lo. O único caso de quebra de patentes no Brasil foi esse, relativo ao medicamento para a Aids. O acordo Trips, acordo de propriedade industrial da OMC, abre a possibilidade de um governo não reconhecer a patente de um produto estratégico, pagar royalties ao laboratório e começar a fabricar internamente, com preços menores. No caso desse medicamento, houve queda de 40% a 50% no preço. Alguns países fazem a quebra de patente a partir de laboratórios privados de capital nacional. Há diferença entre uma multinacional e um laboratório de capital nacional, com o qual é mais fácil o diálogo. A quebra de patentes é também uma maneira de aumentar o acesso. Há possibilidade de isso se expandir no Brasil, mas essa é uma decisão governamental. A licença compulsória no caso do medicamento para a Aids se deu com Lula na Presidência e [José Gomes] Temporão como ministro da Saúde.

 

Abrindo-se a caixa-preta da indústria, será possível detectar também os casos de medicamentos que recebem pequenas alterações na fórmula ou na apresentação e passam a custar muito mais?

Existe a inovação radical, um produto inteiramente novo, e a inovação incremental, que aperfeiçoa um produto, fazendo com que, por exemplo, em vez de a pessoa tomar três comprimidos por dia, tome um. Isso é muito bom, a inovação incremental é importante, mas não é possível que a isso se coloque o preço muitas vezes acima. Há exemplos de aumentos brutais. Os Estados Unidos produziam uma espécie de caneta para uma pessoa com alergia grave injetar o medicamento. A empresa que produzia foi comprada por outra, e o produto passou a custar dez vezes mais. Há a cobiça, há o abuso da indústria. Um medicamento não pode ser tratado como qualquer outro bem de consumo. A pessoa que precisa hoje de um medicamento, tem que tomar hoje.