Eduardo Fagnani: ‘Votação da Reforma da Previdência na Câmara reflete déficit de democracia’
Qual é o problema da Previdência? Precisamos fazer uma ampla reforma geral ou resolver problemas tópicos? Trata-se de um problema relacionado ao servidor público, ao militar, ao parlamentar, ou ao regime geral, que é o INSS? Para o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp, até o momento, não foram apresentados diagnósticos precisos que respondam a essas questões. “Para pensar em proposta, você tem primeiro que discutir o diagnóstico da situação. O governo não quer discutir. Os economistas de mercado não querem discutir. Os grandes meios de comunicação não querem discutir. Sabe por quê? Porque os argumentos são frágeis”, analisa Fagnani, em comentário ao blog do CEE-Fiocruz, no qual comenta os últimos movimentos da atual proposta de reforma da Previdência na Câmara e analisa a conjuntura política, as relações, os processos e os discursos envolvidos.
No dia 9/5/2017, a Comissão Especial da Reforma da Previdência concluiu a análise da proposta de reforma e votou dez destaques que tentavam alterar o texto original elaborado pelo relator da proposta, o deputado Arthur Maia (PPS). Apenas uma alteração, que mantém na Justiça estadual as ações contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), foi aprovada. Agora, a proposta de reforma será votada em dois turnos pelo Plenário da Câmara dos Deputados, onde serão necessários 308 votos para aprovação em cada turno. “Essa votação reflete um déficit de democracia, uma democracia partida”, diz.
Leia o comentário completo a seguir.
“Não é possível aprovar uma reforma da Previdência que terá impacto sobre a vida de mais de 120 milhões de pessoas direta e indiretamente, sem debate, sem contraditório, com um governo fazendo marketing de democracia. Democracia não é mercadoria. Processos como essa votação são sintomas de um sistema político apodrecido, que herdou traços da ditadura militar. Na transição da ditadura, foi mantido um pacto conservador entre o PMDB de Ulysses Guimarães e a Arena, que acabou anistiando a base política da ditadura. A forma de a ditadura militar fazer política continuou nos anos 90, nos anos 2000 e se mantém até hoje. Nós estamos assistindo hoje ao apodrecimento desse sistema político que durou mais de 50 anos.
Uma série de questões histórico-culturais se somam a essa herança política. Temos uma elite no Brasil que é absolutamente atrasada, retrógrada, temos uma população que saiu muito rapidamente do campo e veio para cidade, compondo uma sociedade de massa pouco educada, isso associado a uma alienação promovida pelas grandes empresas de mídia. Os governos populares de esquerda que vieram nos últimos anos não enfrentaram essas grandes questões. O que nós temos hoje é uma derrota da esquerda. Essa última votação da Reforma da Previdência na Câmara reflete um déficit de democracia, uma democracia partida.
Os debates em torno da atual proposta de reforma da Previdência estão sustentados por pós-verdades devido, principalmente, à atuação da mídia. Nenhum argumento se sustenta. O debate político, econômico, das reformas sociais... Tudo é ideologizado, é partidarizado, é seletivo. A imprensa, principal fonte de pós-verdade, tem um lado, que é o lado do capital.
O debate político, econômico, das reformas sociais... Tudo é ideologizado, é partidarizado, é seletivo. A imprensa, principal fonte de pós-verdade, tem um lado, que é o lado do capital.
Uma das principais pós-verdades é o discurso de déficit. Esse discurso é um desprezo ao poder constituinte de 1988. Desde a criação do Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAP), em 1933, a Previdência Social é financiada por um sistema tripartite [governo, empregado e empregador]. O que aconteceu em 1989? A área econômica passou a mão nos recursos. E o governo contabilizou a receita da Previdência somente das fontes de empregado e empregador [Leia aqui]
O discurso que prega a necessidade de se estabelecer uma idade mínima para se aposentar no Brasil é outra pós-verdade. Existe idade mínima desde a década de 1930, com a criação do Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAPs), por Getúlio Vargas. E o artigo 201, parágrafo 7º, inciso II, da Constituição Federal é claro [de acordo com o texto, é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social obedecidas as seguintes condições: “sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar...”]. A aposentadoria precoce, que vem sendo apresentada pelo governo como justificativa para a reforma, já foi resolvida. O problema da aposentadoria precoce não é do sistema como um todo, representa só 30% das aposentadorias; são os que se aposentam apenas por tempo de contribuição.
O mais interessante é que essa reforma já foi feita em 2015 pela Lei do Fator Progressivo. A partir de 2026, para a pessoa se aposentar terá que ter 70 anos de idade e 30 de contribuição, ou 65 anos de idade e 35 de contribuição. Isso é padrão europeu.
Outro diagnóstico impreciso diz respeito aos servidores públicos. O problema é do estoque ou do fluxo dos novos ingressantes? Reformas relacionadas aos servidores públicos começaram a ser feitas pela Emenda Constitucional nº 20 de 1998, que foi regulamentada pela Emenda 41 de 2003, depois pela Emenda 47 de 2005, e foi concluída em 2012, na lei que criou o Fundo da Previdência do Servidor Público. Isso significa que o servidor público que ingressou no serviço a partir de 2012 tem um teto de R$ 5.100, o que impede que haja marajás em 2050. Então o problema do fluxo já foi resolvido. O problema dos novos entrantes já está resolvido.
Há intencionalidade na omissão de diagnósticos sobre a situação da Previdência Social. Intencionalmente, pode-se fazer propostas excludentes, absurdas.
Há intencionalidade na omissão de diagnósticos sobre a situação da Previdência Social. Intencionalmente, pode-se fazer propostas excludentes, absurdas. O problema é estrutural ou localizado? O que não foi resolvido? O que já foi resolvido? Para pensar em proposta, é preciso primeiro discutir o diagnóstico. O governo não quer discutir. Os economistas de mercado não querem discutir. Os grandes meios de comunicação não querem discutir. Isso não está sendo discutido porque os argumentos são frágeis. Derrubamos um por um, não sobra pedra sobre pedra. (Comentário a Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz).