Carlos Ocké-Reis: reforma trabalhista fragiliza trabalhadores e põe em risco arrecadação da Previdência
A reforma trabalhista que o governo vem propondo, que se concretiza na nova lei de terceirização e trabalho temporário (Lei nº 13.429/2017), põe em xeque os direitos dos trabalhadores, incluindo, o direito à greve, fragiliza sua capacidade de luta e, ainda, incide negativamente sobre a arrecadação da Previdência Social. A análise é do economista Carlos Ocké Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que, em comentário ao blog do CEE-Fiocruz, analisou a conjuntura econômica brasileira e os impactos da proposta de reforma trabalhista, em especial, da Lei de Terceirização, que foi sancionada em 31/03/2017.
“É uma armadilha que está colocada para os trabalhadores”, afirma Carlos Ocké Reis, doutor em Saúde Coletiva e pós-doutor pela Yale School of Management. “Em vez de se fazer uma política econômica para promover crescimento, produzir emprego de qualidade, oferecendo algum grau de segurança e de direitos sociais e trabalhistas, o governo usa um argumento extremamente perverso de que, como estamos em crise, é necessário desregular o mercado para tentar garantir pelo menos o emprego de subsistência”.
Leia a seguir íntegra do comentário.
“O que nós podemos tirar de mais grave dessa reforma trabalhista? Uma vez que o projeto autoriza a contratação de terceirizados para substituir trabalhadores em greve – se a greve for considerada abusiva ou atingir serviços considerados essenciais, em um cenário em que as decisões judiciais deixam claro que qualquer greve pode ser considerada abusiva e qualquer serviço pode ser considerado essencial –, a prática atinge em cheio o direito de greve, quando os trabalhadores já estão politicamente recuados por conta do desemprego.
A situação de desemprego é o momento mais frágil do trabalhador, em que ele está sem poder de barganha para aumentar seu salário real (ou seja, descontada a inflação). Torna-se mais fácil avançar na luta política e corporativa quando a economia está crescendo e há pleno emprego, porque você um tem um exército industrial em reserva. Mas em cenário de recessão – no caso do Brasil, ainda mais complexa pela heterogeneidade do mercado de trabalho em função da ampla informalidade – com milhões de trabalhadores desempregados, reduz-se o poder de barganha dos trabalhadores.
A situação de desemprego é o momento mais frágil do trabalhador, em que ele está sem poder de barganha para aumentar seu salário real (ou seja, descontada a inflação)
No fundo, a lógica é: trabalhadores entram em greve e, como é possível terceirizar as atividades-fim, a partir dessa nova legislação, terceiriza-se. É um profundo ataque não só a CLT, uma vez foi prorrogada a possibilidade do contrato temporário, sabendo-se que algumas categorias têm alta rotatividade de emprego, em especial no momento de recessão. Não devemos esquecer que não crescemos em 2014, que a taxa de crescimento foi negativa em 3,8% em 2015, e que, em 2016, foi menos 3,6% do PIB. O último trimestre também apresentou taxa negativa de crescimento do PIB. Ou seja, a projeção de crescimento para 2017 ou é residual ou é nula, e a recessão tende a continuar.
Por esse motivo, o governo está com problema de receita, de pressão sobre déficit primário. E o próprio governo que acusou a Dilma de querer aumentar os impostos está acenando com a mesma coisa. As projeções de inflação e de crescimento para o ano de 2017 apontam para uma continuidade da recessão. Como a economia está em recessão, será sobre uma base muito deprimida que iremos olhar se cresceu se estagnou ou se deprimiu durante este ano. É possível que, nesse percurso, haja alguma variável macroeconômica na composição do PIB, por exemplo, a exportação, com movimento positivo e exerça influência, no final do ano, sobre o crescimento agregado. Mas o que sabemos, hoje, é que tanto Banco Central quanto Ministério da Fazenda estão reduzindo suas projeções de crescimento para este ano. A prova concreta disso é o governo estar contingenciando ainda mais seu orçamento.
Em vez de fazer uma política econômica para promover o crescimento, produzir emprego de qualidade, oferecendo algum grau de segurança e de direitos sociais e trabalhistas, o governo usa um argumento extremamente perverso, dizendo que como estamos em crise, torna-se necessário desregular o mercado para tentar garantir, pelo menos, o emprego de subsistência. O mais grave é que essa reforma trabalhista coloca os trabalhadores, que hoje estão fragilizados, em negociação direta com seus patrões, ou seja, reduz-se a capacidade de intermediação da Justiça do Trabalho.
Ao invés de uma política econômica para promover o crescimento, produzir emprego de qualidade e oferecer algum grau de segurança e direitos, o governo usa um argumento extremamente perverso, dizendo que como estamos em crise, torna-se necessário desregular o mercado para tentar garantir pelo menos o emprego de subsistência
A nova Lei de Terceirização ocorre no marco de uma derrota, mas podemos observar que o governo está sendo obrigado a recuar em relação à reforma da Previdência. Toda a lógica da aprovação da Emenda Constitucional 55, de congelar gastos com despesas primárias em relação à inflação por vinte anos, tem, em contrapartida, o arrocho na Previdência, aumentando a idade mínima de contribuição e o tempo de trabalho. No entanto, essa legislação recém-aprovada é fonte de redução de receita da Previdência, uma vez que desobrigada a empresa terceira a apresentar certidão negativa do INSS. Ou seja, as empresas que devem contribuição previdenciária poderão livremente contratar servidores terceirizados, gerando impacto sobre a capacidade de arrecadação.
Não se avança na Reforma da Previdência, levando o governo a acelerar a reforma trabalhista. O governo precisa dar resposta à sua base social de apoio, aqueles que apoiaram o impeachment. Assim, aprova essa reforma trabalhista, só que afetando a Previdência negativamente.
Tenta-se confundir o trabalhador mais precarizado, sobretudo o do mercado informal, afirmando-se que com a desregulamentação é que que terão emprego e alguma renda
Quando o cidadão está desempregado, aceita qualquer acordo, porque está em jogo o mínimo necessário para sua subsistência. Por isso, há um requinte de crueldade nessa proposta. Tenta-se confundir o trabalhador mais precarizado, sobretudo o do mercado informal, afirmando-se que com a desregulamentação é que que terão emprego e alguma renda. Está sendo omitido, mas será percebido em médio prazo, que essa legislação representa o fim dos direitos trabalhistas. Como o exército de reserva hoje é muito grande, seja pela informalidade, seja pela taxa de desemprego – em torno de 12% – haverá alta rotatividade. Os trabalhadores entrarão cada vez mais em contratos temporários, podendo receber um valor aquém do que recebiam.
A meu ver, as reservas internacionais [recursos que o país tem em moeda estrangeira] seriam uma mediação necessária para superarmos a crise. Macroeconomistas do campo da esquerda estão corretos ao serem cautelosos na aplicação dessas reservas para alavancagem do investimento público – afinal, uma crise na balança de pagamentos pode quebrar a economia brasileira, em um cenário global instável e belicoso, que favorece a manipulação do câmbio por setores do capital financeiro internacional e nacional. Mas, nessa quebra-de-braço, dados os obstáculos para renegociar a dívida interna e para aprovar a reforma tributária, visando ao fortalecimento do padrão de financiamento público, esse zelo não deveria desconsiderar que, na atual correlação de forças, o Brasil não retomará – rapidamente – o crescimento e o emprego, tampouco fortalecerá a industrialização e o mercado interno, sem o apoio decisivo do Estado. Celso Furtado nos inspira a dizer que não há saída para a crise que não passe pela reconstrução do Estado e pela melhoria do padrão de vida das classes populares e médias.
É certo que não se moderniza a CLT tirando direitos, e sim desburocratizando os processos
Já que não dá para fazermos reforma tributária, nem renegociação da dívida interna, nem é possível mudar as condições adversas do comércio internacional, a alternativa para se recompor um pouco as contas públicas, e, nessa recomposição, tentar promover o crescimento por meio do investimento público, é voltar a dinamizar a economia. Isso não significa que não seja necessário fazer reformas pontuais na CLT para modernizá-la. Mas é certo que não se moderniza a CLT retirando direitos, e sim desburocratizando os processos.
Estamos diante de uma novidade: temos, simultaneamente, a presença de um Estado democrático de direito liberal cada vez mais subordinado à lógica do comportamento parlamentar e a ampliação de um estado de exceção seletivo. O governo propôs uma reforma trabalhista que amplia suas contradições. Em um primeiro momento, os trabalhadores em necessidade imediata de sobrevivência podem ser sensibilizados por essa proposta. No entanto, ao perceberem que perderam direitos, isso poderá se voltar contra o governo. Trata-se de um governo impopular, e isso vai piorar. Com o tempo, sua capacidade de legitimação diminuirá, e pior, quando a economia não cresce, o bloco de poder começa a apresentar mais fissuras, seja do ponto de vista da ética pública, seja do ponto de vista dos capitalistas que apoiaram o golpe, que querem crescer.
Se a economia continua numa rota de recessão e de depressão, é lógico que esse governo não vai interessar. A reforma da Previdência Social e a reforma trabalhista precisam ser vistas no contexto do golpe parlamentar, da crise econômica e da crise internacional. É um jogo muito complexo, e essa leitura da conjuntura precisa ser debatida, divulgada. É um momento de retomada de massa, de retomada do bloco histórico progressista. (Comentário a Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)