Agenda 2030: no objetivo referente à saúde, uma contradição
No último dia 25 de setembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), um conjunto de 17 objetivos e 169 metas que compõem a Agenda 2030 e propõem uma parceria global para o desenvolvimento sustentável. Em artigo[1] publicado no The Lancet em agosto, Harald Schmidt, da universidade da Pensilvânia, e colegas, ao apontar alguns riscos na adoção da estratégia de cobertura universal em saúde (CUS), chamam atenção para o que pode ser entendido como uma possível contradição no ODS 3, que trata da saúde e bem-estar, com o pertinente propósito de “garantir uma vida saudável e o bem-estar para todos em todas as idades”:
Ao mesmo tempo em que a maioria das 13 metas relacionadas a esse objetivo, como reduzir a mortalidade materna, infantil e neonatal e acabar com epidemias de doenças transmissíveis, por exemplo, requerem intervenções ao nível populacional, a meta da cobertura universal (3.8) tende a valorizar serviços médicos, em geral especializados, com foco no indivíduo. Essa meta propõe:
3.8 Atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos.
Amplamente discutido e com diferentes interpretações conceituais, o modelo de cobertura universal, de maneira geral, tem como foco a provisão de serviços via pacotes de seguros pré-pagos, reduzindo o acesso à saúde a serviços médicos, mais amplos para aqueles que podem pagar por melhores pacotes e mais restritos para os que não podem.
Além das iniquidades diretas no acesso a serviços, outro perigo apontado por especialistas que estudam o tema é a possível negligencia aos determinantes sociais da saúde: níveis de pobreza, condições de moradia, acesso a água e saneamento, padrões nutricionais, entre outros, que afetam direta e indiretamente as condições de saúde de uma população.
Apontando o momento como positivo em termos de debates sobre os modelos de intervenção na saúde, os autores do artigo fazem três recomendações para que uma abordagem curativa não prevaleça sobre uma visão ampliada da saúde pública e seus determinantes sociais, possibilitando equilíbrio entre intervenções no nível individual e populacional:
1 – Implementar a ação intersetorial. O risco de o modelo de CUS enviesar a agenda da saúde é maior se somente o setor Saúde for responsável por sua implementação. Nesse sentido, a estratégia de “saúde em todas as políticas” lançado pela OMS em 2009 pode ser um instrumento importante ao, entre outras coisas, recomentar avaliações de impactos sobre a saúde de políticas de fora do setor.
2 – Implementar orçamentos fixos e distintos para intervenções no nível populacional e individual, de modo a prevenir que a abordagem individual, mais custosa, subtraia recursos de intervenções ampliadas. Os orçamentos devem, ainda, ser adequados ao nível de desenvolvimento de cada país e determinados por análises epidemiológicas, econômicas e éticas, baseadas em uma estratégia ampla de saúde pública.
3 – Garantir uma força de trabalho robusta. O desenvolvimento de capacidades em saúde não deve centrar-se em aspectos clínicos, mas garantir treinamento relevantes sobre questões epidêmicas e endêmicas e em particularidades locais que incluem, por exemplo, escassez de recursos.
Essas e outras recomendações sobre meios de se implementar a cobertura universal são válidas e oportunas.
Vale lembrar que, no Brasil, o sistema de cobertura por seguros de saúde pré-pagos é responsável pela provisão de serviços a cerca de 25% da população, e o Sistema Único de Saúde atende, sem desembolsos diretos, os outros 75%, mais grande parte dos clientes dos planos de saúde que utilizam os serviços públicos de vacinação e outros de alta complexidade, como transplantes de órgãos e tratamentos de câncer. Mas essa não é a realidade da grande maioria dos países em desenvolvimento que, por recomendação da OMS e dos ODSs da ONU, correm o risco de implementar políticas que submetam as necessidades de saúde à capacidade de pagamento. Lógica cruel.
* Do CEE-Fiocruz. Mestre em Saúde Global e Diplomacia da Saúde.
[1] Schmidt, Harald, Lawrence O. Gostin, and Ezekiel Emanuel. Public health, universal health coverage, and Sustainable Development Goals: can they coexist? (2015).