A democracia não cabe no orçamento?, na nova edição da revista Política Social e Desenvolvimento
Leia abaixo o editorial e acesse a revista em pdf ou em versão digital
Eduardo Fagnani *
O objetivo de construir uma sociedade democrática e socialmente justa deveria orientar a ação coletiva e mobilizar a união dos brasileiros. Neste sentido,dentre tantos desafios, duas tarefasse colocam. O primeiro é preservar a inclusão social ocorrida nos últimos anos. O segundo é a defesa intransigente dos direitos de cidadania assegurados pela Constituição Federal de 1988, marco do processo civilizatório nacional.
Não obstante, ambos os desafios estão gravemente ameaçados. O fato grave é que, num contexto em que a comunicação do Governo Dilma Rousseff (2011-2014) optou por não disputar ideias, não enfrentar o debate econômico e não fazer a defesa das suas ações, a visão liberal passou a ser hegemônica junto à opinião pública e mesmo dentro das hostes progressistas desinformadas, onde a necessidade imperativa de “ajustes”, em sua maioria de caráter recessivo, foi aceita e passou a pautar os debates.
A criação de um clima de crise fiscal e econômica ganhou a batalha, fazendo com que o governo alterasse a própria rota e produzisse a crise que os mercados alegavam existir. Se um País que gerou superávit fiscal por mais de uma década e, num único ano, apresentou déficit primário de apenas 0,6% do PIB estaria em “crise terminal” e imerso em dramática “irresponsabilidade fiscal”, o que dizer de países que desde 2009 apresentam déficits primários seguidos e elevadíssimos (EUA, Japão, Canadá, Reino Unido, Portugal, Irlanda, Espanha, Grécia e Índia, por exemplo)?
Qual é o problema de haver déficit primário de cerca de 1% ao ano, por exemplo, durante um curto período, para enfrentar e superar o final de um ciclo econômico, num contexto internacional adverso, sem perder a perspectiva do longo prazo?
As políticas de “austeridade” ortodoxas adotadas a partir de 2015 estão empurrando o país para uma das maiores recessões de sua história. O ajuste fiscal das contas primárias (que exclui despesas financeiras), elidido pela sistemática queda de arrecadação, torna-se um ciclo sem fim. Por outro lado, os gastos financeiros decorrente da obscena taxa de juros, sem paralelo no plano internacional, elevam o déficit nominal e a dívida bruta. Em 2015, pagaremos cerca de R$ 500 bilhões de juros, mais que o dobro do que foi pago em 2014. Enquanto isso a cegueira econômica reinante insiste no ajuste das contas primárias.
Esse cenário corrói rapidamente os avanços sociais recentes, enfraquece o governo democraticamente eleito e amplifica a crise política e o eco das ações antidemocráticas e golpistas que estão em curso.
Por outro lado, a recessão é funcional para o aprofundamento do projeto liberal, que está em curso com vigor consideravelmente aumentado, pois ela não deixa outra saída a não ser a severa alteração da estrutura dos gastos governamentais exigida há décadas pelo mercado.
Nos últimos meses ganhou vigor a visão de que a estabilização da dinâmica da dívida pública requereria a mudança no “contrato social da redemocratização”.
Leia-se, liquidar com a ordem social da Constituição de 1988.
O aprofundamento do projeto liberal ganhou contornos mais sólidos com a explicitação do documento “Uma Ponte para o Futuro”, recém-divulgado pela Fundação Ulysses Guimarães do PMDB.
Em meio às tramas golpistas e antidemocráticas em curso, que envolvem o vice-presidente da República, o documento do PMDB foi batizado pelo presidente da Fundação do PMDB, de “Plano Temer”.
Diante da crise atual, o documento propõe a “formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial” em torno das propostas apresentadas.
Contando com a colaboração de diversos economistas liberais, a iniciativa recebeu amplo apoio de parlamentares, empresários e setores da mídia.
Dado este cenário, esta e as próximas três edições da Revista Política Social e Desenvolvimento dedicam-se a enfrentar a seguinte questão: “A democracia não cabem no orçamento?”.
Nesta Revista #27, iniciamos este debate com o artigo de Lucia Cortes da Costa, “Em busca de uma solução democrática para o ajuste social necessário”. A autora destaca que o Brasil, ao logo de seus mais de 500 anos de história, consolidou-se como sociedade profundamente desigual.
Após séculos de escravidão, ao liberto foi negado qualquer indenização pelo trabalho forçado, e não foi criado nenhum mecanismo de inclusão social, de fornecimento de ativos capazes de alterar a reprodução da pobreza. Chegamos a uma República sem o espírito republicano, num país onde o Estado foi privatizado pelos interesses das elites oligárquicas.
Dos anos 1930 em diante, o país enveredou pela aventura industrializante, sem desmontar as bases sociais, políticas e econômicas do latifúndio. Com a Seguridade Social estabelecida na Constituição de 1988, houve, formalmente, um ponto de inflexão da nossa história social. Pela primeira vez na história do país, conjugaram-se as dimensões políticas e sociais dos direitos de cidadania. No entanto, a expectativa democrática de construir um país mais igualitário foi frustrada pelas razões econômicas dominantes a partir de 1990. As tímidas iniciativas de redistribuição de rendas empreendidas posteriormente não vieram acompanhadas de reformas profundas capazes de consolidar essa opção por um país mais igualitário. A miragem do curto prazo, da busca de um ajuste fiscal recessivo só nos fará reproduzir a nossa histórica desigualdade. “É de ajuste social que esse país precisa, de promover mecanismos de redução da nossa vergonhosa desigualdade social, política e econômica”, finaliza a autora.
Em “Fatos e versões sobre a política fiscal”, Sérgio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair procuram, inicialmente, desconstruir “o mito da gastança e o erro da política fiscal”. Apontam que nos últimos anos, o endividamento público brasileiro foi sensivelmente reduzido, passando de 60% do PIB em 2002 para 31% do PIB em 2013, só crescendo em 2014, para 34% do PIB, quando o governo registrou um déficit primário de 0,59% do PIB. “Foi a primeira vez em 16 anos que os gastos primários (exclusive juros) não couberam na receita”, o que pode iludir os desavisados que tendem a ver o fato como claro sinal da “gastança” promovida pelo governo. Análise mais qualificadados dados, construída pelos autores, desmonta esse mito, em várias das suas dimensões. Em última instância, a piora dos indicadores fiscais tem a ver com as desonerações de tributos e, sobretudo, com a desaceleração econômica (taxa de expansão do PIB despencou de 4,55% ao ano entre 2007 e 2010, para 2,13% entre 2011 e 2014), cujo efeito é conhecido: as receitas caem mais acentuadamente do que a produção, enquanto as despesas e seu ritmo de crescimento são mais rígidos. “É basicamente isso que explica por que um superávit primário superior a 2% do PIB em 2011 se deteriorou para déficit de 0,59% do PIB em 2014”, afirmam os autores.
Em seguida, os autores desmistificam a visão de que a “gastança” fiscal seria a causa do endividamento público.
Inicialmente analisam a situação fiscal brasileira em termos comparativos. A dívida líquida no Brasil é inferior à média mundial. O país possui resultados primários superiores à maioria dos países, apesar do déficit primário de 0,6% do PIB em 2014. Porém, o cenário é distinto no tocante à dívida bruta e o resultado nominal, que inclui a conta de juros.
Segundo os autores, o déficit nominal deve triplicar de 3,1% do PIB em 2013 para 9,3% do PIB em 2015, o dobro da média mundial. “A se confirmarem as atuais projeções, o Brasil passará a figurar entre os países com maiores déficits nominais”.
Grande parte da deterioração do resultado nominal deriva das contas de juros, que devem saltar de 4,8% do PIB em 2013 para 8,9% do PIB em 2015 (enquanto a média mundial gira em torno de 1,5% do PIB). O artigo aprofunda a análise dos demais fatores que explicam o paradoxo de termos baixo nível de endividamento líquido e elevada dívida bruta. “Como é possível um governo com baixo nível de endividamento líquido vir a ter a maior conta de juros entre todos os países do planeta?”, perguntam. Gobetti e Orair apontam alternativas para enfrentar o problema fiscal e econômico. “Na atual conjuntura, é pouco razoável crer na possibilidade de um equilíbrio fiscal com baixo crescimento, o que implica que, no curto prazo, deveríamos no mínimo manter o investimento público estabilizado e sinalizar uma reforma fiscal de médio prazo que contribuísse para controlar a despesa, aumentar a receita e, principalmente, melhorar a estrutura tributária – esta sim capaz de alterar as expectativas dos agentes econômicos”, apontam os autores.
Finalmente, em “O capital contra a cidadania”, Eduardo Fagnani aponta que o novo ciclo de aprofundamento do projeto liberal no Brasil representa mais uma etapa do longo processo de ataque às conquistas sociais de 1988, iniciada antes mesmo que a Constituição da República saísse da gráfica do Congresso Nacional.
Em última instância, o que sempre esteve em jogo é que as elites financeiras nacionais e internacionais jamais aceitaram que o movimento social capturasse uma parcela do orçamento do Governo Federal (cerca de 10% do PIB), a maior parte concentrada na Previdência Social (8% do PIB). Recapturar esses recursos passou a ser tarefa obstinada. Essa ofensiva inicia-se ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), permanece nas décadas seguintes e ganha vigor extraordinário a partir da aceitação pelo governo democraticamente eleito, do programa econômico derrotado nas urnas em 2014, que realimenta a crise política e as ações antidemocráticas em curso.
Boa Leitura!
* – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com).