O SUS na próxima década: a região de saúde
Da Domingueíra da Saúde/Idisa, por Nelson Rodrigues dos Santos
Vale iniciar pelas raízes da implantação e desenvolvimento da atenção básica à saúde nos anos 1970, em plena ditadura. Por iniciativa das prefeituras municipais em todo o país, voltada às periferias urbanas e vilas rurais submetidas a inusitada pauperização. Afortunadamente, desde o início, com atendimento universal por ações integradas de prevenção e cura, tendo como vanguarda os municípios beneficiados por integração com projetos de saúde de universidades públicas próximas. Simultaneamente, evoluía no seio da universidade, o movimento da reforma sanitária brasileira que debatia e propunha um sistema público de saúde nos moldes do bem sucedido na Inglaterra e debatido na Itália.
Nos anos 1980, no seio da crescente mobilização social pela volta à democracia, os avanços municipais na saúde, em consolidação e organização em cada estado, assumiram, junto ao movimento da Reforma Sanitária, a bandeira de luta com metas de atenção básica com 80% a 90% de resolutividade para 80% a 90% da população, e, junto aos estados, pleiteando ao poder federal, o apoio imprescindível à organização e implementação das regiões de saúde. Esta é a síntese do modelo de atenção à saúde vigente nas sociedades socialmente mais desenvolvidas.
Em cada região de saúde deveriam evoluir capacidade física de serviços e profissionais de saúde, desde atenção básica até os mais complexos, para atender a quase totalidade das necessidades e direitos de saúde da população, respeitando as realidades sociais e epidemiológicas de cada região, sob o ângulo da região de saúde enquanto menor célula sistêmica do SUS.
O movimento da reforma sanitária brasileira realizou em 1986, a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, que debateu e aprovou as diretrizes para o SUS: Universalidade, Integralidade, Equidade, Regionalização/Hierarquização, Descentralização, Participação Social e outras, que em 1988 foram debatidas e aprovadas na Assembleia Constituinte. É sempre oportuno destacar a reconhecida interdependência na implementação dessas diretrizes, aos níveis conceitual, estratégico e operacional. O título Da Ordem Social em nossa Constituição refletiu cabalmente o nível mais civilizado e civilizatório atingido em escala mundial pela relação sociedade-estado: estados de bem estar social, ainda que albergando importantes diferenças entre si, na maioria dos países europeus, Canadá, Japão, Austrália e outros.
Considerando o ritmo em que nos anos 1970, em plena ditadura, iniciou-se a gestação do SUS e, nos anos 1980, em grande debate social e constitucional, aprovado, as prospecções apontavam na época, para que, nas duas décadas seguintes, o conjunto das diretrizes constitucionais em implementação já estaria em etapa consolidada, como ocorreu na Inglaterra, maioria dos países europeus e outros. Com base nos 33 anos de vigência do SUS, lembraremos a seguir cinco exemplos de avanços consistentes, porém, no conjunto, ainda contra-hegemônicos, e a seguir, cinco exemplos de obstáculos/distorções estruturais, no conjunto, ainda hegemônicos.
Avanços Consistentes:
- – “Explosiva” inclusão social com a expansão e qualificação possível da atenção básica, e atendimentos eletivos e de urgência, para quase metade da população antes excluída. Inclusão essa, assumida com consciência de direito humano inabdicável e constitucionalmente irreversível. Verdadeiro “motor” de pressão e participação social direta e pelos conselhos de saúde,
- – Avanços, ainda que excepcionais, mas consolidados na realização da atenção básica com 80 a 90% de resolutividade, no território nacional, verdadeiras ilhas, ao lado dos avanços específicos como os CAPS, o SAMU, os hemocentros, o controle da AIDS, os transplantes de órgãos e tecidos e outros de alta complexidade, a vigilância em saúde, as centrais de regulação e outros,
- – Avanços na gestão descentralizada do SUS, estadual e municipal, na atividades de planejamento, gestão, prestação e avaliação de serviços públicos de saúde, o que ficou marcadamente evidenciado durante o pior período da pandemia COVID-19,
- – Mostras de experiências municipais bem sucedidas durante os congressos periódicos dos COSEMS e do CONASEMS, quando, através de painéis, dizeres e imagens, centenas de experiências comprovadamente bem sucedidas, ainda que a maioria por ações específicas ou isoladas, são expostas e relatadas, e
- – Ao nível nacional, comprovação cabal da elevadíssima eficiência do SUS, que, com apenas por volta de 1/5 do financiamento público per-capita praticado nos países europeus, Canadá e outros com sistemas públicos universalistas, realiza a média anual de 3 bilhões de atendimentos básicos, 2 bilhões de atendimentos especializados e 1 bilhão de serviços auxiliares de diagnose e terapias.
Obstáculos e distorções estruturais nos 33 anos:
- – Pesado subfinanciamento forçado pela esfera federal, mantendo o teto de 3,8% do PIB para a saúde, perante 7% a 8% nos países com sistemas públicos universalistas na saúde. Sob a conjuntura maior do desmantelamento do orçamento da seguridade social, aprovado na Constituição como referencial do estado brasileiro de bem estar social,
- – Drástico desfinanciamento federal na infra-estrutura física do SUS, que levou o setor privado complementar, integrante do SUS, a responder por 65% das hospitalizações e mais de 90% dos exames diagnósticos e terapias, além da contratação ilimitada das organizações sociais e outras, com ausência ou baixíssimo controle da efetivação da Integralidade, Equidade e Regionalização/Hierarquização, tudo isso, impensável nos países com sistemas de saúde públicos universalistas bem sucedidos.
- – Obstaculização pela esfera federal do cumprimento das disposições constitucionais e legais referentes ao desenvolvimento dos recursos humanos públicos na saúde: 65% do pessoal no SUS é alocado por empresas privadas fornecedoras de pessoal, também em nosso país, o contrário do que ocorre nos países já referidos,
- – Quanto ao setor privado suplementar (mercado na prestação de serviços de saúde), desde o início do SUS iniciou-se engendramento governo federal - empresas operadoras de planos privados, que atrelou aos acordos dos dissídios salariais na justiça do trabalho, a atenção à saúde aos trabalhadores sindicalizados. Nesses acordos passaram a ser negociados e pactuados o conjunto: aumentos salariais, interesses patronais, acordos coletivos para planos privados de saúde a menor custo para os trabalhadores, e fortes subsídios públicos ás operadoras privadas por meio de renúncia fiscal e empréstimos subsidiados. O valor desse subsídio ultrapassa o do lucro líquido legalmente declarado anualmente pelo conjunto das operadoras. Também em nosso país, o contrário do que ocorre nos países com sistemas universalistas de saúde já referidos.
- – Com o reconhecido e relevante impacto social da consciência do direito humano à saúde e a plena implementação da Universalidade, mas quase simbólico em relação à Equidade, à Regionalização/Hierarquização e até à Integralidade (aqui, excetuando parte heroica da atenção básica), não há como não reconhecer o nível ainda contra-hegemônico em que se encontra a implementação do SUS constitucional. Da média anual de 2 bilhões de procedimentos assistenciais mais complexos, e 1 bilhão de exames e terapias, qual as porcentagens daqueles evitáveis, caso o SUS constitucional estivesse sendo realizado mais plenamente? Como senão bastasse, a EC-95/2016, a nova PNAB, a inclusão na proposta orçamentária para 2023 de passar parte do já baixo financiamento federal do SUS para as emendas parlamentares, incluindo a secreta, deterioram mais ainda o resgate constitucional do SUS.
Reflexões finais e desafios:
– O que acarretaria nos já referidos sistemas universalistas de saúde bem sucedidos, a adoção de uma ou mais das cinco distorções estruturais referidas?
– Independentemente das respostas à questão anterior, considero que em nosso país o valor cultural da inclusão social na saúde, como direito humano constitucional inalienável, expandiu-se e tornou-se irreversível e expresso não só na rede dos conselhos de saúde, como pela sociedade organizada ou não, como por ocasião da recente pandemia. Essa expressão mantem-se e transparece nos movimentos sociais, na entidades da reforma sanitária brasileira, nos movimentos dos trabalhadores do SUS incluindo os terceirizados, dos gestores descentralizados (CONASS, CONASEMS e COSEMS) e a maioria da mídia.
– Os avanços consistentes aqui apontados, concentrados nos dois iniciais, resistindo e persistindo nesses tensos 33 anos do SUS, parece-me integrarem característica brasileira civilizatória, que, qual seja o resultado da peleja sucessória nacional, seguramente amanhecerá hegemônica, em quadro geral da construção do estado democrático de bem estar social brasileiro, no próximo ou um dos próximos quatriênios governamentais.
– As oportunas, coerentes e consistentes proposições do IDISA, do CONASS, da ABrES e mais entidades para retomada constitucional da construção do SUS e outras em gestação, simbolizam o enorme potencial acumulado para a realização dessa retomada, seja qual for o resultado eleitoral, incluindo o pior resultado, que poderia reduzir a retomada a mera resistência acumulando potencial e saber para retomadas até maiores e mais duradouras.
Nelson Rodrigues dos Santos, médico, doutor em saúde coletiva, foi secretário executivo do CNS, secretário executivo do CONASS, diretor do MS por diversas vezes, foi do PIASS, foi das AIS, do SUDS, das universidades estadual de Londrina; da UnB e Unicamp. Atualmente é membro do conselho superior do Idisa. Artigo publicado na edição nº 37 da revista eletrônica Domingueira da Saúde.