Suplemento temático de ‘Cadernos’ enfoca a financeirização na saúde
Com informações do Informe Ensp/Fiocruz.
O Cadernos de Saúde Pública publicou um número temático contendo resultados da pesquisa sobre financeirização do setor saúde no Brasil entre 2008 e 2016. Em editorial, os pesquisadores Ligia Bahia e Mário Scheffer explicam que a investigação foi inspirada pela acelerada expansão de empresas e grupos empresariais na saúde no Brasil, implicitamente justificada pelos limites fiscais e pelo “desenvolvimento” advindo do potencial transformador dos empreendimentos privados.
O estudo percorre antecedentes, instituições, agentes, mecanismos e estratégias que facilitaram a penetração do capital privado no sistema de saúde brasileiro, bem como o surgimento de novas práticas e ativos que o distinguem na atualidade. O esforço de pesquisa dialoga com produção empírica estrangeira que argumenta sobre o aprofundamento da financeirização, representativo de ameaças concretas aos princípios organizadores de sistemas universais.
Os artigos do suplemento contemplam a história mais recente da formação de capital na saúde no Brasil, robustecendo mercados já arraigados, mas também diversifica negócios e oportunidades de acumulação, em nome da suposta modernização do sistema de saúde.
O exame da interação entre saúde e financeirização no país contribui para distinguir a transformação da saúde em ativos vendáveis e negociáveis. Uma das mudanças coadjuvantes é o uso mais ostensivo de fundos públicos por empresas da saúde, por meio de subsídios e empréstimos, segundo os autores.
Para a análise, foram acionados documentos, legislações, formulações de políticas, relatórios de empresas, bancos de dados secundários, fontes de mídia e pesquisas qualitativas.
Parte-se da concepção de que o campo da Saúde Coletiva é local apropriado para a crítica da financeirização e o aprofundamento de estudos também capazes de reinterpretar a ambição do Sistema Único de Saúde (SUS) público e universal.
Consignas sobre o SUS “100% público, 100% estatal” ou, quando se considera o tempo, “será público”, no futuro são fortemente normativas, embora carreguem consigo críticas e anunciem alternativas políticas de superação das tendências de privatização.
Divisar um horizonte de chegada não nos exime das tarefas de compreensão das características estruturais que viabilizam a troca de papéis e responsabilidades entre público e privado. Identificar instituições e engrenagens que facilitam a alavancagem empresarial fornece pistas para inverter os sinais, restringir a expansão do setor assistencial.
É plausível supor que a rarefação do conhecimento acerca das transações contemporâneas envolvidas com a transformação de saúde em ativos comerciais dificulte e retarde a efetivação de um sistema verdadeiramente universal, diz o editorial.
A exploração de trajetórias de formação de patrimônio, capital e, especificamente, as iniciativas de agentes estatais e não estatais para aprofundar a financeirização, criando mercados e oportunidades de acumulação, interpela as aspirações de saúde, bem-estar e vida saudável para todos.
A concentração dos grupos econômicos setoriais em cidades, regiões com maior renda, se constitui como processo permanente de geração de desigualdades. Inovação, disrupção e parcerias, se descolam da melhoria das condições de saúde, remetem à criação de novos mercados, oportunidades de acumulação e volatilidade, e opacidade dos investimentos, apontam os autores.
Inicialmente, o setor privado nacional esteve conformado por profissionais independentes, empresas familiares e organizações filantrópicas. As empresas brasileiras surgiram pequenas e descapitalizadas, sob um regime de acumulação “da mão para a boca”. Nos anos 1970 e 1980, convênios intermediados pela Previdência Social, anistias fiscais, empréstimos e créditos oficiais conferiram às empresas de planos de saúde um formato capitalista amadurecido.
Posteriormente, de acordo com o editorial, a rede pública substituiu serviços próprios, inclusive de diagnóstico, por contratos, e terceirizou a administração de serviços e redes de cuidados. O envolvimento corporativo sob a égide da “governança” ampliou os espaços para a atuação privada sem e com fins lucrativos, bem como disseminou ideário da superioridade da expertise gerencial.
Nos anos 2000, o Brasil entrou na rota dos investimentos internacionais via aproximação de grupos nacionais a fundos e empresas estrangeiras e abertura de capitais em bolsas de valores. Um trajeto algo singular, vis-à-vis iniciativas de participação direta de empresas e capitais estrangeiros na Índia e China 3 no mesmo período. Fusões e aquisições geraram um processo de centralização e concentração que borrou a especialização empresarial pretérita.
O apoio de um dos pioneiros das pesquisas sobre a “dominância financeira do capitalismo”, o professor José Carlos Braga, e das constatações sobre a penetração da lógica de valorização patrimonial em todas nas esferas da economia nos permitiu delinear um enquadramento para o fenômeno complexo e multifacetado da expansão empresarial assistencial privada em um país que tem SUS.
A operacionalização do conceito de financeirização ao exame concreto de grupos econômicos setoriais requereu esforços metodológicos consideráveis, entre eles o processamento e a análise de relatórios contábil-financeiros e registros societários.
Parte dos resultados da pesquisa sobre a dominância financeira no setor saúde está publicada neste número temático. Uma segunda parcela das informações produzidas foi incorporada em trabalhos de teses e ainda inspira novos enfoques.
No entanto, as principais repercussões da investigação não são traduzíveis em um discurso dissertativo. O grupo de pesquisadores conviveu e ainda convive com conceitos, teorias, termos científicos e seus cânones de objetividade. Mas foi adiante, arriscou-se a assumir um caráter mais interrogante do que afirmativo, duvidou de si mesmo, relativizou seu próprios conhecimentos; enfim, saltou da margem do mundo do trabalho para a experiência amorosa.
A condição do ser humano perecível é uma das marcas da investigação. Daniela Tranches, jovem e promissora pesquisadora, morreu um pouco antes do trabalho finalizado. Sua vivacidade impregnou no termo valor, tão decantado para quem estuda saúde no capitalismo, outros sentidos: valioso e valoroso.
Acesse os textos e seus autores:
Carlos Gadelha: Complexo Econômico-Industrial da Saúde: a base econômica e material do Sistema Único de Saúde
O artigo tem como objetivo fazer uma discussão teórica e política do conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), atualizando a visão para o contexto contemporâneo de transformação tecnológica e dos desafios para os sistemas universais de saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular. Em um contexto de globalização assimétrica, de emergência de uma revolução tecnológica e de (re)colocação de barreiras estruturais que trancam a sociedade brasileira em seu movimento histórico de desigualdade, vulnerabilidade e exclusão, necessitamos repensar a saúde, retomando e atualizando uma agenda que privilegia os fatores histórico-estruturais da sociedade brasileira, a inserção internacional do País e sua relação com uma difusão extremamente assimétrica do progresso técnico, do conhecimento e do aprendizado, dissociados das necessidades sociais e ambientais locais.
Leonardo Vidal Mattos, Rondineli Mendes da Silva, Flávio da Rocha Pires da Silva, Vera Lúcia Luiza: Das farmácias comunitárias às grandes redes: provisão privada de medicamentos, sistema de saúde e financeirização no varejo farmacêutico brasileiro
O artigo analisa as expressões da financeirização em empresas do varejo farmacêutico brasileiro considerando três dimensões transversais: patrimonial, contábil-financeira e política.
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, Roberta Dorneles Ferreira da Costa Silva, Catalina Kiss: Mudanças recentes e continuidade da dependência tecnológica e econômica na indústria farmacêutica no Brasil
O artigo descreve a trajetória percorrida para responder aos desafios teóricos e metodológicos da pesquisa sobre empresas e grupos empresariais do setor saúde no Brasil que reorganizaram suas estruturas societárias, diversificaram atividades e ampliaram operações financeiras.
Leonardo Vidal Mattos, Elza Maria Cristina Laurentino de Carvalho, Diego Viegas Sato Barbosa, Ligia Bahia: Financeirização, acumulação e mudanças patrimoniais em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil
O objetivo deste trabalho é analisar a dimensão patrimonial de mudanças em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil entre 2008 e 2017.
Milton Santos Martins da Silva, Claudia Travassos: A dinâmica capitalista no setor hospitalar privado no Brasil entre 2009 e 2015
O objetivo deste estudo é descrever, no contexto brasileiro, o movimento em curso nos hospitais e grupos hospitalares privados, identificando suas principais características e tendências à luz das dinâmicas atuais do capital.
José Antonio de Freitas Sestelo, Leandro Reis Tavares, Milton Santos Martins da Silva : Planos e seguros de saúde: a financeirização das empresas e grupos econômicos controladores do esquema comercial privativo de assistência no Brasil
O objetivo deste artigo é descrever a expressão da financeirização em um conjunto de dez empresas e grupos econômicos atuantes no comércio de planos e seguros de saúde no Brasil entre 2008 e 2016, selecionadas pelo faturamento e pelo tamanho da carteira de clientes.
Artur Monte-Cardoso, Lucas Salvador Andriett: Crescimento, centralização e financeirização de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) no Brasil: estudo de empresas selecionadas entre 2008 e 2016
Este artigo discute a dinâmica do subsetor de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) no Brasil entre 2008 e 2016.
Mário Scheffer, Paulo Marcos Senra Souza: A entrada do capital estrangeiro no sistema de saúde no Brasil
O estudo descreve o histórico da legislação, analisa a trajetória e dimensiona o capital estrangeiro no sistema de saúde no Brasil.
Mario Roberto Dal Poz, Leila Senna Maia, Maria Helena Costa-Couto: Financeirização e oligopolização das instituições privadas de ensino no Brasil: o caso das escolas médicas
O objetivo foi descrever e analisar os movimentos de reconfiguração empresarial do setor educacional com tendências de oligopolização e financeirização relacionadas à expansão recente do Ensino Médico no Brasil.
Fabiana Turino, Lorena Estevam Martins Fernandes, Gabriella Barreto Soares, Gabriella Bigossi de Castro, Shayene Machado Salles, Juliana Costa Zaganelli, Carlos Eduardo Gomes Siqueira, Elda Coelho de Azevedo Bussinger, Francis Sodré: Seguindo o dinheiro: análise dos repasses financeiros do Município do Rio de Janeiro, Brasil, para as organizações sociais de saúde
Este artigo analisou a atuação das Organizações Sociais de Saúde no Sistema Único de Saúde e o uso dos contratos de gestão e dos termos aditivos como instrumentos de privatização.
Lucas Salvador Andrietta, Artur Monte-Cardoso: Análise de demonstrações financeiras de empresas do setor de saúde brasileiro (2009-2015): concentração, centralização de capital e expressões da financeirização
O objetivo deste artigo é analisar as expressões da financeirização na dimensão contábil-financeira das empresas e grupos econômicos do setor de saúde brasileiro.
Eduardo Levcovitz: Contribuições da pesquisa sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde ao projeto político-pedagógico da Saúde Coletiva
Na Saúde Coletiva, a convivência intelectual entre docentes, pesquisadores e estudantes de distintas formações e experiências profissionais, sejam eles estruturalistas-marxistas ou pós-estruturalistas, pós-modernistas ou neoinstitucionalistas, está presente desde os escritos pioneiros.
José Carlos de Souza Braga, Giuliano Contento de Oliveira: Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19
O artigo discute o sistema de saúde no Brasil sob a égide do capitalismo financeirizado e à luz da pandemia de COVID-19.
Erika Santos Aragão: Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19
O texto de Braga & Oliveira tem um tom otimista ao apontar a visibilidade da importância do SUS para a sociedade brasileira, sem deixar de apontar os desafios de sua sustentabilidade no contexto marginal em que nossa economia se encontra em termos mundiais.
Jairnilson Silva Paim: Da capitalização da medicina à financeirização da saúde
O artigo em debate aciona a categoria de totalidade com promissores desdobramentos na produção de conhecimento.
José Carlos de Souza Braga, Giuliano Contento de Oliveira: Réplica aos comentários sobre o artigo Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19
Os comentários realizados ao artigo que escrevemos e tivemos a honra de ser aceito e publicado neste importante periódico contribuem, muito, para enaltecer a importância de juntarmos esforços para a transformação de uma realidade altamente adversa.
Nelson Rodrigues dos Santos: O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado
O texto apresentado por Braga & Oliveira cumpre e atualiza oportunamente em alto nível, na complexa e inusitada conjuntura da COVID-19.
Fonte: CSP