Conselho Econômico e Social da ONU (Ecosoc) de 2020: esperança ou fracasso? – por Paulo Buss e Santiago Alcazar
O Conselho Econômico e Social (Ecosoc) das Nações Unidas é a instância responsável por levar adiante o debate sobre o desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental. As conclusões e recomendações das reuniões do Conselho, realizadas em julho de cada ano, são encaminhadas para exame e consideração da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), cujas sessões ocorrem a partir da terceira semana de setembro. Atualmente, a AGNU está em sua 74ª sessão, inaugurando em setembro sua 75ª sessão ordinária.
O Ecosoc é composto por 54 Estados-membros das Nações Unidas, eleitos por um período de três anos, de acordo com a seguinte representação geográfica, acordada ainda durante a Guerra Fria: 14 assentos para a África; 11, para a Ásia; seis, para a Europa Oriental; dez, para a América Latina e o Caribe e 13 para a Europa Ocidental.
Em 2020, as sessões substantivas do Ecosoc foram realizadas de 7 a 16 de julho, sob o tema Ação acelerada e caminhos transformadores: concretizando a década de ação e entrega para o desenvolvimento sustentável. Essas sessões são um arranjo complexo de reuniões, das quais fazem parte: i) o segmento de integração; ii) o segmento do Fórum Político de Alto Nível (HLPF, em sua sigla em inglês); e iii) o segmento de alto nível do Ecosoc.
O segmento de integração tem a responsabilidade de receber e sintetizar os inputs de todo o sistema das Nações Unidas. Sua reunião dura um dia e finaliza com o encaminhamento de sua síntese ao segmento do HLPF.
O Fórum Político de Alto Nível, que tem a responsabilidade de fazer o acompanhamento da Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), examina a síntese do segmento anterior, bem como o progresso alcançado, as lições aprendidas e os desafios futuros. Nesse segmento também são apresentados os Relatórios Voluntários Nacionais sobre a evolução da Agenda, o que neste ano foi feito por mais de 40 países. Ao final, propõe linhas de ação e correções de rumo, que são encaminhadas ao segmento de alto nível do Ecosoc. Em 2020, por conta da Covid-19 e da quase paralização da economia, com severos impactos em todos os setores, os debates centraram-se no risco de se ver solapado e, em alguns casos, zerado o progresso alcançado na implementação dos ODSs desde 2015.
O segmento de alto nível do Ecosoc é a máxima instância política no âmbito do Conselho, cabendo-lhe a adoção de uma declaração ministerial, após consideração dos resultados do HLPF, a ser encaminhada à Assembleia Geral.
O Fórum Político de Alto Nível reconheceu que a pandemia exacerbou as vulnerabilidades e as desigualdades pré-existentes no mundo. Reconheceu, quase por consenso, os princípios consagrados na Agenda 2030: pessoas no centro, caráter universal das transformações, com objetivos e metas integrados e indivisíveis, equilibrando as dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável
Para se ter uma ideia da complexidade da sessão substantiva do Ecosoc, este ano seria recomendável acessar a página principal do Conselho. Como se poderá observar, 137 Chefes ou vice-chefes de Estado ou de Governo, ou ministros de Estado, participaram do HLPF e/ou do segmento de alto nível de 2020. Centenas de organizações da sociedade civil global apresentaram declarações e propostas, bem como realizaram um grande número de sessões paralelas, todas em caráter virtual, como se indica em tempos de distanciamento social.
Diversos documentos sobre a atual situação animaram os debates. Entre eles, caberia mencionar o relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas1, Antônio Guterres, sobre medidas rápidas que devem ser implementadas como resposta à pandemia da Covid-19, bem como após a pandemia: i) a redução da desigualdade de renda e a erradicação da pobreza extrema; e ii) a redução das emissões de CO2 para limitar o aquecimento global em até 1,5º C. No segundo relatório2, o SG traça cenários futuros de longo prazo, bem como alerta sobre os possíveis efeitos das atuais tendências no alcance (ou não) dos ODSs.
O HLPF reconheceu que a pandemia exacerbou as vulnerabilidades e as desigualdades pré-existentes no mundo. Reconheceu, quase por consenso, os princípios consagrados na Agenda 2030: pessoas no centro, caráter universal das transformações, com objetivos e metas integrados e indivisíveis, equilibrando as dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável.
Como se sabe, a mensagem mais importante da Agenda 2030 é o foco nas pessoas e em não deixar ninguém para trás (isto é, uma importante dimensão de equidade). Como disse um representante da sociedade civil do Zimbábue no HLPF: “A Agenda 2030 é uma agenda do povo, pelo povo, para o povo”. É, nesse sentido, o acordo internacional mais abrangente e possivelmente o mais acertado para superar as esmagadoras desigualdades do mundo. Esperança, certamente!
É adequado, neste contexto, recordar que a Agenda 20303 é um plano de ação para as pessoas (acabar com a pobreza e a fome), o planeta (proteger da degradação, inclusive através do consumo e produção sustentáveis, administrando seus recursos de maneira sustentável e adotando ações urgentes sobre o clima, com a intenção de atender às necessidades das gerações presentes e futuras) e a prosperidade (garantir que todos os seres humanos possam desfrutar de vidas prósperas e gratificantes e que o progresso econômico, social e tecnológico ocorra em harmonia com a natureza). Durante o debate geral do HLPF, quase todas as delegações reafirmaram e compartilharam o escopo da Agenda 2030. Esperança, novamente!
Entretanto, o projeto de declaração ministerial que seria o principal resultado do segmento de alto nível do Ecosoc, não foi adotado por falta de consenso. Fracasso? Não! A versão avançada da declaração (Advanced version)4, circulada em 17 de julho pela então presidente do Ecosoc, embaixadora Mona Juul, da Noruega, é um documento que tem o seu DNA na Resolução 70/1 – Transformando nosso mundo: a Agenda 20303. Como se recordará, a resolução 70/1 foi adotada sem voto pela 70ª sessão ordinária da AGNU, em 2015. Hoje, cinco anos mais tarde, o espírito que animou aquela Resolução não é mais o mesmo. Com efeito, o clima político mudou e o consenso que se verificou em 2015 não parece mais possível. Há dificuldades políticas que estão a merecer atenção.
O parágrafo 12 da Declaração Ministerial em sua versão avançada4, por exemplo, é um apelo ao fim de todas as formas de discriminação e racismo. Isso deve ser lido no contexto dos movimentos de protesto gerados pelo assassinato de George Floyd e a reação do governo Trump, bem como da resolução5 adotada por consenso pelo 43º Conselho de Direitos Humanos, em 19 de junho, pela qual o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, chefiado pela ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, é instado a “preparar um relatório sobre racismo sistêmico e violações dos direitos humanos contra africanos e pessoas de ascendência africana por agentes policiais, especialmente aqueles que resultaram na morte de George Floyd”, contendo referência direta aos Estados Unidos.
Como se recordará, a resolução 70/1 (‘Transformando nosso mundo: a Agenda 2030’) foi adotada sem voto pela 70ª sessão ordinária da AGNU, em 2015. Hoje, cinco anos mais tarde, o espírito que animou aquela Resolução não é mais o mesmo. Com efeito, o clima político mudou e o consenso que se verificou em 2015 não parece mais possível. Há dificuldades políticas que estão a merecer atenção
O parágrafo 14 pode ser interpretado por algumas delegações como uma postura excessivamente progressista, por conter a reivindicação de acesso universal a educação, serviços de saúde e proteção social e resposta, com solidariedade internacional, ao financiamento dos países em desenvolvimento para alcançar o desenvolvimento sustentável etc. Isso simplesmente não é compatível com as principais tendências e orientações macroeconômicas assumidas na atualidade por regimes econômicos de corte neoliberal.
Já o parágrafo 16 seria inaceitável para os detentores de patentes e de propriedade intelectual para produtos farmacêuticos, pois destaca que “o acesso equitativo, sem qualquer impedimento ou forma de discriminação, a vacinas, medicamentos, tratamentos, equipamentos médicos, novos diagnósticos e outros produtos de saúde para a Covid-19, é uma prioridade global e que sua disponibilidade, acessibilidade e aceitabilidade são fundamentais para combater a pandemia”.
O parágrafo 17 pode parecer um lembrete do fracasso da OMC, pois é reiterado que “o objetivo comum é alcançar um ambiente de comércio e investimento livre, justo, não discriminatório, transparente, previsível e estável, mantendo os mercados abertos”.
Os parágrafos 18, 19 e 20 (mudança climática, biodiversidade e energia limpa) podem parecer como anátema por algumas delegações propensas a deixar acordos multilaterais.
No parágrafo 21, sobre infraestrutura, é onde reside o principal problema financeiro. De acordo com o recém-eleito presidente do Ecosoc, embaixador Munir Akram, Representante Permanente do Paquistão nas Nações Unidas, “até 92% das metas dos ODSs são dependentes de infraestrutura; estima-se que os países em desenvolvimento necessitem em infraestrutura do equivalente a investimentos anuais da ordem de US$ 1,5 trilhão”. Esses números são grandes demais para serem assumidos pelos governos.
Finalmente, o parágrafo 29, o último, é um apelo para promover o engajamento público e a parceria inovadora por meio de uma abordagem todo o governo (whole-government) e toda a sociedade (whole-society).
A embaixadora Mona Juul, Representante Permanente da Noruega junto às Nações Unidas, que deixou a presidência do Ecosoc, estava otimista quanto às possibilidades de mudança. Sublinhando que, em meio a tumultos e riscos globais – a partir da Covid-19, crise climática, injustiça racial e crescentes desigualdades – “o mandato do Ecosoc provou ser, mais uma vez, relevante e convincente”. “Voltar ao antigo normal é impensável”, disse ela, ecoando as vozes de muitos nas sessões do Ecosoc. E completou: “Os ODSs tocam diretamente nas causas do que está quebrado em nosso mundo hoje. Por fim, permita-me oferecer um pequeno conselho de meu mandato: Estejam prontos para aceitar a mudança!” (Palavras de esperança da presidente do Ecosoc!).
Ao mesmo tempo em que se realizava o evento na sede da ONU, em Nova York, o Conselho de Direitos Humanos se reunia em Genebra. Esse seminal espaço político das Nações Unidas, cuja Alta Comissária é a médica e ex-presidente Michelle Bachelet, aprovou resolução sobre “o papel central do Estado na resposta a pandemias e outras emergências sanitárias, e suas consequências socioeconômicas na promoção do desenvolvimento sustentável e na efetividade de todos os direitos humanos”, adotada sem votação, pedindo que seja considerado prioridade global o acesso universal, oportuno e equitativo a uma distribuição justa de todas as tecnologias e produtos essenciais de qualidade, seguros, eficazes e acessíveis à saúde, incluindo seus componentes e precursores necessários na resposta à Covid-19. Esperança, mais uma vez!
No tocante à pandemia, muita esperança está também depositada na 31ª Sessão Especial da AGNU sobre a Covid-19, a ser realizada, presumivelmente, ainda durante a atual 74ª sessão da AGNU. Contudo, parece que existem dificuldades quanto à agenda a ser discutida, pois apesar de ter sido proposta por larga maioria de países (G77 + China, ou seja, mais de 130 países) e aceita pelo mecanismo do silêncio tácito (silent procedure), ainda não se tem data marcada para discutir uma enfermidade que só vem crescendo e matando. Fracasso?
O Movimento sobre Equidade Sustentável em Saúde6, no qual milita expressivo número de entidades e ativistas da saúde do Brasil, enviou carta ao presidente da 74ª AGNU, embaixador Tijjani Muhammad-Bande, Representante Permanente da Nigéria junto às Nações Unidas, na qual a liderança do movimento pede espaço para, em nome da sociedade civil global, fazer declaração na Assembleia Geral em prol do acesso equitativo dos recursos necessários para enfrentar a Covid-19, inclusive vacinas, medicamentos, kits para diagnóstico, EPI etc., bem como assegurar equidade sustentável em saúde inclusive depois da pandemia. O Movimento aguarda resposta do presidente da AGNU. Esperança, certamente! E a negativa não pode significar um fracasso, porque a luta pelos direitos humanos e a equidade jamais será abandonada pelos que acreditam nestes valores civilizatórios.
* Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz)
1 https://undocs.org/es/e/2020/59
2 https://undocs.org/es/e/2020/60
3 https://undocs.org/en/A/RES/70/1
4 https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/26780MD_2020_HLPF_HLS.pdf
5 https://undocs.org/A/HRC/43/L.50
6 https://www.sustainablehealthequity.com
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