Assembleia Mundial da Saúde: equidade na resposta à pandemia? – por Paulo Buss e Luiz Augusto Galvão
A 73ª. Assembleia Mundial da Saúde de 2020, além de histórica, foi a maior exceção entre todas as já realizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi realizada de forma virtual, em apenas dois dias (18 e 19 de maio de 2020), e teve apenas um documento, que tratou da reposta à pandemia pela Covid-19. Também foi única a participação de muitos chefes de Estado e de governo, como Angela Merkel e Emmanoel Macron, e não apenas de ministros da Saúde dos Estados-membros, comme d'habitude.
A resolução, cuja elaboração foi liderada pela União Europeia e copatrocinada por mais de 135 Estados-membros (incluindo Brasil e União Africana), tem sete páginas e foi aprovada em três minutos, sem discussões e por unanimidade – dos 194 Estados-membros. Intitulada Resposta à Covid-19, recebeu ressalvas apenas da representação dos Estados Unidos da América.
O texto expressa a profunda preocupação dos países pela “morbidade e mortalidade causadas pela pandemia de Covid-19, seus efeitos negativos na saúde física e mental e no bem-estar social, as repercussões negativas na economia e na sociedade, com a consequente exacerbação das desigualdades dentro dos países e entre eles”.
Sublinha que é dos governos a responsabilidade primordial pela adoção e aplicação de respostas à pandemia de Covid-19, que sejam específicas para seu contexto nacional, assim como pela mobilização dos recursos necessários para isso. Com seu mandato constitucional, a OMS deveria atuar como autoridade reitora e coordenadora em assuntos relacionados ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI), inserida na resposta mais ampla das Nações Unidas à pandemia, incluindo o reforço da cooperação multilateral.
Nesse sentido, cita as resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Solidariedade mundial para lutar contra a enfermidade pelo coronavírus de 2019 (COVID-19) e sobre Cooperação internacional para garantir o acesso mundial aos medicamentos, vacinas e equipamento médicos para enfrentar a Covid-19.
A resolução aprovada na Assembleia sublinha que é dos governos a responsabilidade primordial pela adoção e aplicação de respostas à pandemia de Covid-19, que sejam específicas para seu contexto nacional, assim como pela mobilização dos recursos necessários para isso
Registra ainda o Plano Estratégico de Preparação e Resposta da OMS e o Plano Mundial de Resposta Humanitária à Covid-19, que se propõe a “orientar a resposta da saúde pública à Covid-19 nos níveis nacional e subnacional, incluída a orientação prática para a ação estratégica, adequada a contexto local”.
A resolução é relevante quando pede o acesso universal, oportuno, equitativo e justo a todos os produtos essenciais seguros, eficazes e acessíveis, incluindo seus componentes e precursores, necessários na resposta à pandemia como prioridade global. Ademais, defende a remoção urgente dos obstáculos injustificados a esse acesso, coerente com as disposições de tratados internacionais, incluindo o acordo Trips e as flexibilidades confirmadas pela Declaração de Doha sobre o Acordo Trips em Saúde Pública. Traduzindo: a resolução apoia a possibilidade da quebra de patentes de futuras vacinas ou remédios para a Covid-19, atendendo uma demanda dos países mais pobres para que seja garantido o acesso global igualitário a futuros tratamentos. Como sempre, esta foi a parte do texto rejeitada pelos Estados Unidos no seu comunicado à parte, enquanto a China anunciava que a vacina que vier a desenvolver será tratada como bem público global.
Como o diabo se esconde nos detalhes, aí é que mora o perigo. Porque a licença compulsória, popularmente conhecida como quebra de patente, é um processo geralmente longo e sinuoso, que inclui o pagamento de royalties (que encarece o produto) e a capacidade de produção de quem rompe a patente. Como a resolução reconhece “o papel da imunização extensiva contra o coronavírus com vacinas seguras, de qualidade, eficazes e acessíveis como um bem público global” – e pela primeira vez este conceito aparece numa resolução da OMS –, o lógico seria que desde já se definisse claramente o mecanismo a ser utilizado para garantir o acesso equitativo a todos os países do mundo.
A coisa se complica quando ali se afirma que os países de baixa e média renda devem ser priorizados, mas não como direito a um bem público global e sim “por meio do desenvolvimento oportuno e adequado e da assistência humanitária”.
Ponto positivo da resolução é clamar por uma resposta do governo e de toda a sociedade, inclusive por meio da implementação de um plano de ação intersetorial nacional, contendo ações imediatas e de longo prazo, com vistas a fortalecer de forma sustentável o sistema de saúde e de assistência social.
Como o diabo se esconde nos detalhes, aí é que mora o perigo. A licença compulsória, popularmente conhecida como ‘quebra de patente’, é um processo geralmente longo e sinuoso. Como a resolução reconhece “o papel da imunização extensiva contra o coronavírus com vacinas seguras, de qualidade, eficazes e acessíveis como um bem público global”, o lógico seria que desde já se definisse claramente o mecanismo a ser utilizado para garantir o acesso equitativo a todos os países do mundo
Bom que esses planos de ação nacionais contivessem – como propugna a resolução – “medidas abrangentes sensíveis e que atendam as questões de gênero, o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais e prestando especial atenção às necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade, promovendo a coesão social e garantindo a proteção social, a proteção financeira, a prevenção da violência, da discriminação, da estigmatizarão e da marginalização”.
Um plano intersetorial deveria garantir ainda “o acesso a água segura, saneamento e higiene e prevenção e controle de infecções, com atenção na promoção de medidas de higiene pessoal em todos os ambientes”, coisa que, se não houver um apoio internacional decidido aos países em desenvolvimento, dificilmente se alcançará – como, até aqui, ainda não se chegou sequer perto, a despeito das boas intenções da Agenda 2030 e seus ODS.
Informações confiáveis e abrangentes sobre a Covid-19 e sobre as medidas tomadas pelas autoridades é outra expectativa da resolução.
Acesso a testes seguros, tratamento e cuidados paliativos para a enfermidade e proteção adequada no trabalho aos profissionais de saúde e outros trabalhadores da linha de frente, também estão enunciados no documento aprovado.
A promoção da pesquisa e desenvolvimento, incluindo a inovação aberta sobre as medidas necessárias para conter e acabar com a pandemia, em particular sobre vacinas, diagnósticos e terapêuticas, com compartilhamento das informações relevantes com a OMS, entra nos planos do processo de equidade da resposta.
A resolução também pede que seja feita, no "momento apropriado", uma "avaliação imparcial, independente e abrangente" da resposta internacional à pandemia, incluindo uma revisão da eficácia dos mecanismos de coordenação atualmente à disposição da OMS. Muitos interpretam esse pedido como uma ingerência dos Estados Unidos no texto, ou um sinal de insatisfação dos Estados-membros com a atuação da OMS. Verdade que o diretor-geral, na sua intervenção final, explicitou que essa avaliação é muito bem-vinda, o que representou inteligente estratégia do administrador.
Finalmente, se esta resolução garantirá a tão esperada “ética global da equidade sustentável em saúde”, preconizada por mais de 150 entidades e 450 personalidades de todo o mundo em carta dirigida ao secretário-geral da ONU, António Guterres, só o tempo dirá. Mas certamente dependerá da pressão que a sociedade civil fizer sobre as Nações Unidas, a OMS e os governos nacionais, para que respondam ao enfrentamento da pandemia com a lente da equidade em saúde.
* Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz)