Pesquisa associa Zika com desnutrição materna
Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)
Dados do Ministério da Saúde apontam que, entre novembro de 2015 e outubro de 2019, o Brasil teve quase 3,5 mil casos confirmados de microcefalia e outras alterações possivelmente ligadas ao vírus zika. Mais da metade das notificações ocorreu no Nordeste. Recém-publicado na revista científica internacional Science Advances, um estudo lança luz sobre um dos fatores que podem ajudar a explicar a alta concentração da doença na região: a desnutrição materna. Analisando dados epidemiológicos, o trabalho constata a correlação territorial entre as notificações de microcefalia e desnutrição. Para embasar essa evidência verificada nas estatísticas, experimentos com camundongos foram realizados. Os resultados apontam que a combinação de baixa ingestão de proteínas e infecção viral em fêmeas de camundongos durante a gestação resulta em um quadro mais severo da síndrome congênita do zika, com um número maior de danos à placenta, redução na formação de neurônios no feto e subsequente microcefalia.
A pesquisa coordenada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em colaboração com Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto Evandro Chagas (IEC) e Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemayer (IECPN) integra um projeto de iniciativa do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST) do Ministério da Saúde, coordenado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O objetivo é investigar fatores ambientais que podem potencializar os efeitos neurotóxicos do vírus zika durante a gestação. Também participaram do trabalho o Instituto para Estudos em Neurociência e Sistemas Complexos (Enys) e a Universidade Nacional de La Plata (UNLP), na Argentina; Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Microscopia: em azul, as células que dão origem aos neurônios no cérebro de embriões de camundongos. O vírus zika, em vermelho, se replica nessa região cerebral, promovendo a morte de algumas dessas células, em verde (foto: Raissa Rilo Christoff)
Coordenador do projeto, o pesquisador do Laboratório de Microbiologia Celular Flávio Alves Lara explica que o número de casos de síndrome congênita do zika apresenta variações regionais que não estão diretamente relacionadas ao número de gestantes infectadas pelo vírus. “O semiárido nordestino não foi a região mais atingida pelo vírus zika no Brasil, mas registrou maior frequência e gravidade de casos de microcefalia. A pedido do Ministério da Saúde, estamos conduzindo pesquisas para entender os fatores que podem ter agravado a situação na região. O trabalho que acaba de ser publicado aponta que a desnutrição proteica é um deles”, afirma o pesquisador.
Uma investigação anterior integrada ao projeto já havia apontado que a saxitoxina, um composto produzido por bactérias que podem ser encontradas em reservatórios de água, potencializa os danos causados pelo zika. Os resultados foram publicados no site de pré-print bioRxiv em setembro passado. O estudo foi realizado em colaboração com o Instituto D’Or de Pesquisa, UFRJ e Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Contexto da epidemia
Para avaliar a correlação entre a síndrome congênita do zika e a desnutrição no Brasil, os pesquisadores analisaram os registros de microcefalia e de internações por desnutrição em 24 estados com clima mais favorável à proliferação do mosquito Aedes, transmissor do vírus. A análise estatística sugeriu que os estados com maior número de casos de desnutrição na última década apresentaram mais pacientes com microcefalia desde a emergência do zika. Entrevistas com um grupo de mães de bebês afetados pela síndrome congênita no Ceará apontaram ingestão de proteínas abaixo da média estadual e regional, reforçando a hipótese.
Nos ensaios em camundongos, os pesquisadores observaram que a infecção pelo zika durante a gestação teve desfechos negativos no grupo infectado com baixa ingestão de proteínas em comparação com o grupo infectado que recebeu alimentação regular. As fêmeas com dieta restrita mostraram sinais de resposta imune menos eficiente contra o vírus, resultando em maior carga viral no organismo. As ninhadas apresentaram alterações características da síndrome congênita do zika, incluindo microcefalia. Os problemas não foram observados no grupo com alimentação regular.
Os pesquisadores realizaram ainda análises moleculares com objetivo de desvendar os mecanismos envolvidos nas lesões provocadas pela combinação entre infecção e restrição nutricional. Os testes apontaram prejuízo na expressão de genes importantes para a resposta imune e o desenvolvimento cerebral, entre outros.
Os autores da pesquisa ressaltam que a investigação sobre os fatores ambientais que agravam a síndrome congênita do zika é importante não apenas para compreender a emergência da doença, mas também para a preparação para futuras epidemias. “Outras epidemias de zika devem ocorrer no futuro, e é importante buscar estratégias para reduzir os casos de microcefalia. Além disso, o entendimento dos mecanismos envolvidos nas lesões pode ser a base para o desenvolvimento de novos tratamentos”, afirma Lara.