A desidratação dos recursos para saúde e seus efeitos catastróficos
O programa Previne Brasil, de realocação dos recursos empregados na Atenção Básica e saúde, põe em risco os princípios da universalidade, integralidade e equidade, definidos na Constituição, alerta o economista Francisco Funcia, professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) em entrevista ao site IHU Online. Funcia, pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz, observa um contexto de restrição orçamentária e financeira vigente desde 2015, aprofundada pela EC 95, e no qual inclui-se também a recente extinção do seguro automotivo obrigatório DPVAT, que transferia recursos ao SUS. “As projeções sobre os efeitos negativos da EC 95/2016 para o financiamento do SUS até 2036 indicam que o gasto federal cairá de 1,7% do PIB para 1,2% do PIB, ou de 15% da receita corrente líquida para 10% da receita corrente líquida”, analisa.
Por: João Vitor Santos do IHU Online
Confira a entrevista.
Como o senhor avalia o programa Previne Brasil, lançado em novembro pelo governo de Jair Bolsonaro?
O Programa Previne Brasil traz grande preocupação porque se trata de um novo critério para definição da transferência de valores para o financiamento da Atenção Básica do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais, cujas bases anunciadas colocam em risco os princípios e diretrizes constitucionais da universalidade, integralidade e equidade. Além disso, não foi apresentado até o momento nenhum estudo técnico que fundamentou essa proposta. A expectativa era que isso ocorresse no dia 5 de dezembro, quando o Secretário Nacional de Atenção Primária à Saúde, Erno Harzheim, fez a apresentação na mesa formada para debater esse tema.
É oportuno ressaltar que esse novo modelo não pode ser efetivado – afinal, a Lei Complementar 141/2012 estabelece que o objeto pactuado na Comissão Intergestores Tripartite deve ter a aprovação do Conselho Nacional de Saúde para entrar em vigor, o que ainda não ocorreu. Nessa perspectiva, a Portaria 2979 do Ministério da Saúde não pode ser adotada como referência normativa para implementação desse novo modelo enquanto o Conselho Nacional de Saúde não aprovar.
Em que medida o programa Previne Brasil pode promover um estrangulamento do financiamento do SUS?
Dentre os novos critérios pactuados, o que condiciona a definição dos recursos a serem transferidos ao número de usuários cadastrados em combinação com a extinção do Piso de Atenção Básica - PAB Fixo é o mais grave, tanto em termos do rompimento com os princípios constitucionais do SUS, quanto da redução de recursos a serem transferidos. Isso está bastante sintonizado com a austeridade fiscal iniciada com a vigência da Emenda Constitucional - EC 95, que será aprofundada se houver a aprovação das três Propostas de Emendas Constitucionais - PEC encaminhadas em novembro pelo governo Jair Bolsonaro sob o comando econômico de Paulo Guedes.
Em outros termos, por que está sendo apresentado sem discussão aprofundada com o Conselho Nacional de Saúde, as entidades da Reforma Sanitária Brasileira e movimentos populares de saúde, dentre outros, um novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde? É evidente que a resposta está relacionada ao contexto da restrição orçamentária e financeira vigente desde 2015, aprofundada com a vigência da EC 95/2016 e ainda mais com as PECs recentes. As projeções sobre os efeitos negativos da EC 95/2016 para o financiamento do SUS até 2036 indicam que o gasto federal cairá de 1,7% do PIB para 1,2% do PIB, ou de 15% da receita corrente líquida para 10% da receita corrente líquida. E, com isso, o gasto federal do SUS de R$ 1,56 per capita por dia cairia para R$ 1,09. Se alguém disser que está colocando recursos adicionais na Atenção Primária à Saúde precisa esclarecer que política de saúde está perdendo recursos, pois o cuidado à saúde é integral, não segmentado.
Por que, diferente de gestores municipais, estaduais e federais, o Conselho Nacional de Saúde desaprova o Previne Brasil?
O Conselho Nacional de Saúde aprovou uma recomendação para revogação da Portaria 2979 do Ministério da Saúde e para a realização de debates sobre esse novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde, tendo em vista que o próprio Secretário de Atenção Primária à Saúde não conseguiu responder os questionamentos apresentados pelo debatedor da mesa realizada no dia 5 de dezembro durante a reunião do Conselho Nacional de Saúde. A matéria é complexa, e ultrapassa a discussão de ganho ou perda de recurso, porque envolve os princípios e diretrizes constitucionais do SUS da universalidade, integralidade e equidade.
Ainda sobre o Previne Brasil, uma das principais críticas é que deixa de priorizar a Estratégia Saúde da Família. Em termos de gestão e financiamento de saúde pública, qual a importância do investimento em saúde básica? E como o senhor avalia os investimentos nesse setor?
Os gastos federais dos SUS estão predominantes na subfunção orçamentária 302 (Assistência Hospitalar e Ambulatorial), quando comparados às demais subfunções, incluindo a 301 (Atenção Básica). A Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde - Cofin/CNS realiza um acompanhamento do índice decorrente da razão entre as despesas federais com Atenção Básica e as com Assistência Hospitalar Ambulatorial. Esse índice cresceu gradativamente no período de 2009 a 2014, quando atingiu aproximadamente 0,4 em 2014, ficando estagnado um pouco abaixo desse patamar nos anos seguintes e crescendo novamente em 2018.
Deixar de priorizar a Estratégia de Saúde da Família, assim como ocorreu com a mudança realizada no Programa Mais Médicos, representa abandonar ações cujos resultados foram exitosos em termos de atendimento às necessidades de saúde da população, inclusive com reconhecimento internacional.
Quais os limites da municipalização da gestão em saúde como vemos hoje? Como superar esses limites?
Os limites da municipalização do SUS somente serão superados com o aprofundamento da regionalização das ações e serviços públicos de saúde em termos de gestão, inclusive de natureza orçamentária e financeira. Ainda nos governos de Dilma Rousseff, uma série de Unidades de Pronto Atendimento, as UPAs, foram construídas com recursos federais e, através de convênios com os municípios, estes seriam responsáveis pela contratação e pagamento de profissionais. No entanto, como muitas cidades estavam com as contas no vermelho, diversas unidades ficaram fechadas. Como o senhor avalia essa experiência? E como evitar que casos como esse se repitam?
Esse caso das UPAs fechadas revela três problemas: em primeiro lugar, os gestores municipais não conseguem mais alocar recursos próprios adicionais para ampliação de serviços – o governo federal financiava 73% dos gastos totais em saúde em 1991 e 43% em 2018, enquanto a participação dos municípios no mesmo período aumentou de 12% para 31%; mas, em segundo lugar, é preciso uma reflexão profunda sobre o processo decisório da CIT – afinal, os gestores deveriam ter pactuado conscientes de que o volume para o custeio dessas unidades seria suficiente ou não, ou seja, não pactuar se os recursos fossem insuficientes; e, por fim, essa política e respectivo processo de financiamento deveria ter sido objeto de debate e deliberação no Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei 8.142/90, o que não ocorreu, salvo engano da minha parte.
A municipalização é mesmo a melhor saída para gestão de recursos em saúde pública?
A municipalização foi uma estratégia necessária e exitosa para a construção do SUS, mas não foi acompanhada da regionalização, que agora precisa ser priorizada. A federalização caracteriza a centralização, cujos resquícios ainda são sentidos – um exemplo recente é o do novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde –, pois a proposta pronta foi discutida somente com os gestores pouco tempo antes da apresentação no Conselho Nacional de Saúde.
Outra medida adotada pelo governo de Jair Bolsonaro foi a destituição do DPVAT, tributo para custeio de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre. Como o SUS deve ser impactado por essa medida? Como minimizar esse impacto?
A receita do DPVAT integrava o conjunto de receitas utilizadas para o financiamento do SUS federal. Os valores estavam em queda desde 2018, quando o governo do presidente Michel Temer promoveu uma alteração nesse tributo. A queda dessa receita exigirá compensação de outras fontes do orçamento fiscal, mas evidencia que a falta de preocupação governamental com a redução dessa fonte de financiamento está relacionada ao objetivo de redução de despesas primárias definido na EC 95/2016.
O que essas recentes ações do governo de Jair Bolsonaro revelam sobre a sua concepção de financiamento em saúde pública?
A concepção geral do governo Bolsonaro é de que os direitos de cidadania (dentre eles, saúde) definidos na Constituição não cabem no orçamento. Mas, diante da possibilidade de integrar política fiscal que aumente a receita ou reduza a renúncia de receita, o governo optou tão somente pela redução de despesa. No entanto, não há nenhuma medida que promova o crescimento econômico, o que está sendo responsável pela queda de receita e aumento da despesa como proporção do PIB.
A “PEC de congelamento de gastos” já tem se manifestado no cotidiano do SUS? Como superar essas restrições orçamentárias?
A EC 95/2016 tem sido responsável pela queda da despesa federal per capita do SUS e pela redução da proporção da despesa em relação à receita corrente líquida. A superação da restrição orçamentária guarda relação direta com a revogação da EC 95/2016 e aprovação da PEC 01D.
Para o senhor, o que é mais marcante nessa experiência de mais de 30 anos de SUS?
Apesar de todas as dificuldades, de uma cultura política centralizada, da estrutura inadequada do aparelho do Estado, do subfinanciamento crônico, o SUS foi um processo exitoso de construção coletiva – usuários, trabalhadores e gestores. Muitas de suas políticas são referências internacionais.
Quais os maiores desafios para conceber um modelo eficiente de financiamento de saúde pública no Brasil de hoje?
É preciso criar fontes de financiamento estáveis e exclusivas para a Seguridade Social e, dentro dela, para o SUS. Essas novas fontes devem ter origem na reforma tributária que reduza a incidência sobre a produção e o consumo e aumente a incidência sobre patrimônio, renda e riqueza. A tributação sobre herança no Brasil é de base estadual e de baixo valor. A tributação sobre grandes fortunas está com a tramitação parada no Congresso Nacional. A isenção da tributação sobre rendimentos precisa ser revista.
*Francisco Funcia possui graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e mestrado em Economia Política pela mesmo instituição. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS e consultor da Vignoli e Funcia Consultores Ltda; além de professor da USCS. Ainda integra o Instituto de Direito Sanitário Aplicado - Idisa e foi diretor da Associação Brasileira de Economia em Saúde - Abres.