Ligia Bahia: 'O SUS não é ineficiente, é insuficiente'

Ligia Bahia: 'O SUS não é ineficiente, é insuficiente'

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Todas as sociedades definem prioridades para o desenvolvimento social (incluindo saúde) em contextos de maior ou menor crescimento econômico. Existem interações bidirecionais entre saúde e economia, nem todas quantificáveis. O progresso econômico reduz deficiências nutricionais, contribui para manter padrões elevados de higiene pessoal e promove avanços educacionais, que permitem planejar famílias e cuidar adequadamente de crianças.

A saúde, por sua parte, prolonga o tempo de vida laboral, gera demanda para indústrias de medicamentos e equipamentos e renda para quem trabalha em serviços assistenciais. A economia, isoladamente, não resolve todos os problemas de saúde. Pessoas saudáveis dispersas, desconectadas dos sistemas de produção e distribuição de bens e serviços, não evitam declínio econômico.

Ideias que consideram a saúde como dependente apenas dos rumos econômicos foram superadas. Evidências sobre intervenções médicas que salvam e asseguram tempos dilatados de sobrevida e a crescente participação da saúde no PIB de todos os países derrubaram dogmas unicausais. Saúde — e bem-estar — é direito e como setor de atividades ocupa posição destacada nas economias nacionais. A existência de mercados globais é contemporânea e coetânea à expansão da saúde pública. Contudo, essas relações e suas implicações para as decisões políticas são rejeitadas ou mal absorvidas por devotos acríticos da restrição de gastos públicos.

O ministro Paulo Guedes crê que milhões de investimento privado em saneamento irão reduzir drasticamente a mortalidade infantil e aumentar a esperança de vida. Parece não saber, ou mal saber, que o perfil dos óbitos em menores de 1 ano mudou. No passado, até os anos 1980, a mortalidade infantil era sensível aos determinantes socioeconômicos (entre os quais saneamento).

Atualmente, 70% das mortes de bebê ocorrem nos primeiros 28 dias de vida e refletem condições de vida e qualidade de atendimento às gestantes, parto e puerpério. O saneamento correlaciona-se positivamente com melhoria da saúde, mas não é um detonador mágico da mortalidade infantil. A reversão do atual padrão epidemiológico na primeira infância requer uma rede de serviços de saúde abrangente, robusta e qualificada.

O SUS não é ineficiente, é insuficiente. Uma estrutura burocrática estável, competente e coerente é essencial para levar um projeto comum de bem-estar adiante. Políticos pouco afeitos ao diálogo, refratários a novos conhecimentos, desatentos e insensíveis às desigualdades, impedem mudanças para melhorar o desempenho e corrigir deficiências de aparatos estatais. Tornar o servidor público uma antítese do empreendedorismo é uma irresponsabilidade histórica. Os modernos e bem-sucedidos sistemas de saúde foram organizados com base na contratação por governos de médicos para atender à população, independentemente da capacidade de pagamento dos pacientes.

Os avanços no controle das doenças decorrem da compreensão sobre os limites da mercantilização para responder aos desafios da saúde. Diagnósticos e recomendação de tratamento são definidos por condições clínicas, e não por renda. A inserção de médicos e outros profissionais de saúde em sistemas públicos assegurou-lhes autonomia para desenvolver pesquisas e estabelecer condutas adequadas aos agravos individuais e coletivos. Não se admite uma classificação de doença baseada no status socioeconômico, e por enquanto a experiência humana segue confirmando que dinheiro não compra saúde.

Publicado no Jornal O Globo em 03/12/2019.