Luiz Santini: ‘Brasil tem boa estrutura para tratamento de câncer; acesso é o grande desafio’
O Brasil tem histórico positivo pouco conhecido sobre a abordagem do câncer, que vem desde as primeiras décadas do século passado. Saber de onde viemos é importante para situar o cenário da doença, hoje, quanto às conquistas alcançadas e aos desafios que se impõem, defende nesta entrevista o médico Luiz Antonio Santini, pesquisador do CEE-Fiocruz, que, por dez anos (2005-2015), dirigiu o Instituto Nacional do Câncer (Inca). “O Brasil é um dos poucos países que têm preocupação antiga com o tema do câncer como problema de saúde pública. O Instituto Nacional de Câncer tem sua origem situada há mais de 80 anos, bem antes da criação do Ministério da Saúde”, relata Santini. A esse histórico acrescenta-se um outro também peculiar. “Temos no Brasil um quadro de instituições filantrópicas ligadas ao câncer que até quase os anos 2000 predominavam na assistência à doença no país”, observa o médico, explicando que essas instituições vieram atuando em rede com o Inca, conformando um importante quadro de assistência.
Ao lado do ex-ministro José Gomes Temporão, Santini coordena a pesquisa que o CEE-Fiocruz realiza em parceria com as sociedades brasileiras de Oncologia e que deverá identificar o olhar dos profissionais de saúde que estão na ponta, atendendo pacientes no SUS e no setor privado, sobre as possibilidades de acesso da população a novas tecnologias de diagnóstico e tratamento do câncer. O ponto de partida do projeto é o estudo também do CEE-Fiocruz, publicado em 2018, O futuro da atenção ao câncer (2017-2037), web survey de abrangência mundial, com mais de mil respondentes, orientada pela abordagem de Technology Foresight. Os resultados dessa pesquisa apontaram nove tecnologias com grandes perspectivas de aplicação na atenção ao câncer no futuro, como as terapias celulares, vacinas, biópsia líquida, imagem molecular e ferramentas de edição gênica (alteração de genes específicos, para tratar e prevenir doenças).
Nesta entrevista, Santini reforça o que registra no artigo Controle do câncer no mundo e no Brasil – Estado da arte, que acaba de ser publicado no blog: o grande desafio na abordagem do câncer é o acesso equânime ao diagnóstico e tratamento hoje disponíveis, e ainda não alcançado, o que aponta para iniquidades no acesso às sofisticadas tecnologias em desenvolvimento. “Acesso ao que se tem hoje, àquilo que é clássico no tratamento: cirurgia oncológica em estágios iniciais da doença, radioterapia e quimioterapia básica. Isso é o desafio”, afirma Santini. “O acesso às novas tecnologias é outra questão. Não está separada dessa, mas não adianta aquela sem essa”.
Leia a seguir a entrevista.
Por que se deve falar em epidemia de câncer?
Realmente esse é um conceito utilizado pela saúde pública para as doenças infecciosas. Mas é também um conceito quantitativo. E, no caso do câncer, há um crescimento muito significativo da doença, ligado a fatores inexoráveis. Quero dizer que o aumento da expectativa de vida e o aumento da exposição a fatores de risco, inclusive devido a mudanças ambientais, têm impacto muito grande no número de casos de câncer em todo o mundo. Embora o câncer, até os anos 90 tivesse maior relevância epidemiológica em países de alta renda, hoje, isso mudou. Hoje essa relevância já se observa também nos países de baixa renda, o que fez a OMS considerar que se trata de uma epidemia global.
Qual o peso dos fatores sociais e econômicos no cenário da doença, uma vez que tanto países ricos como os de baixa renda são afetados?
Os fatores socioeconômicos têm influência, principalmente, em dois aspectos. O primeiro é a longevidade: na medida em que as pessoas vivem mais estão mais sujeitas ao aparecimento de câncer, uma influência, portanto, de forma indireta sobre a doença. Outra influência é o acesso ao tratamento – que em geral é caro e necessita de organização adequada dos serviços de saúde.
Que indicadores devem ser utilizados para medir o controle – ou a falta deste – do câncer?
A questão dos indicadores é muito importante. Existe uma metodologia recomendada aos países pela OMS, de desenvolver o Registro de Câncer de Base Populacional, com coleta, armazenamento e análise da ocorrência e das características dos novos casos de câncer de uma população. Ou seja, para construir um histórico da ocorrência de câncer em cada país, em cada região, é necessário produzir dados. Primeiro, o câncer não é uma doença só; são mais de 200 doenças enquadradas nesse conceito de multiplicação desordenada das células. Cada grupo dessas doenças tem uma história natural diferente. Em alguns casos a importância dos fatores socioambientais é maior, em outros, o fator principal é a genética, em outros, ainda, os fatores são ligados a infecções, como no câncer de colo do útero, câncer de laringe, de esôfago, vinculados a infecção pelo vírus HPV; no câncer de fígado, pela hepatite B. O tema da causalidade e dos fatores de risco é muito variável, considerando os diferentes tipos de câncer e isso influi na história natural da doença. Por isso, é fundamental o registro dos casos de câncer, com uma metodologia que identifique frequência, distribuição espacial, faixa etária, renda etc. Outro componente importante, além do Registro de Base Populacional, são os Registros Hospitalares de Câncer, que se referem às informações sobre pacientes com diagnóstico confirmado, atendidos em uma unidade hospitalar. Identifica-se o que acontece ao paciente, com o diagnóstico, o tratamento, sua evolução dentro do sistema de saúde, até o desfecho, que é dado pelo resultado do tratamento ou pelo sistema de mortalidade. Esses três sistemas de informação – registro populacional, registro hospitalar e sistema de mortalidade – constituem o sistema básico de informação sobre câncer. Sem isso é muito difícil uma estratégia para controlar o câncer em um país.
Dados da revista The Economist, que o senhor cita em seu artigo, mostram que os gastos estimados com o tratamento do câncer, em nível global, estariam ao redor de 1 trilhão de dólares por ano. No que consistem esses gastos?
No caso global, se está falando de gastos com tratamento do câncer, o que significa cirurgia, medicamentos, radioterapia e quimioterapia. Isso é o que está contido nesse trilhão. Se incorporássemos aí os gastos com promoção e prevenção, diria que o montante chegaria a, pelo menos, mais 50%. No que se refere ao Brasil, esse montante está em torno de 4 bilhões de reais. O gasto do SUS com o câncer cresceu à taxa de 9% ao ano entre 2010 e 2014. Os gastos com quimioterapia e radioterapia superaram R$ 2 bilhões. Há um cálculo também que se refere não só ao gasto com tratamento, mas ao gasto social – que envolve previdência, anos de vida perdida, uma estimativa do impacto do câncer na economia do país. Nesse caso, chega-se a 80 bilhões de reais.
O mesmo estudo, que envolveu 28 países, mostrou o Brasil bem situado, na terceira posição (atrás do Reino Unido e da Austrália), em relação a políticas e planejamento. No que diz respeito aos quesitos prestação de serviços e sistema de saúde, o país ficou em posição intermediária (10ª e 14º lugar). Como podemos ler esses resultados?
O Brasil tem uma situação bastante peculiar em relação à questão do câncer, que precisa de uma referência histórica para percebermos todas as conquistas e entendermos melhor os desafios. O Brasil é um dos poucos países que têm preocupação antiga com o tema do câncer como problema de saúde pública. O Instituto Nacional de Câncer tem sua origem situada há mais de 80 anos, bem antes da criação do Ministério da Saúde, quando, em 13 de janeiro de 1937, é assinado por Getúlio Vargas o decreto de criação do Centro de Cancerologia, no Serviço de Assistência Hospitalar do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. E por uma concepção bastante original de seus criadores, entre eles, destacadamente, o médico cirurgião Mario Kroeff, nome importante na história do câncer no Brasil. Numa época em que se sabia muito pouco a respeito do câncer, o Mario Kroeff já vislumbrava uma ideia sobre as possibilidades, inclusive de prevenção, o que não era corriqueiro. Ele começou a trabalhar para construir o que hoje é o Inca em 1922. Levou muitos anos, do projeto à concretização. Durante esse período, já concebia o câncer como problema de saúde pública – isso está muito bem relatado em uma publicação da Casa de Oswaldo Cruz , intitulado De doença desconhecida a problema de saúde publica: Inca e o controle de câncer no Brasil. Por influência política – Mario era gaúcho e o presidente do Brasil era o Getúlio [Vargas] –, ele conseguiu criar um Instituto com a missão de desenvolver e implementar ações relacionadas à doença. Isso foi uma inovação política, que não havia em lugar algum. Para se ter uma ideia o Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos foi criado na década de 60!
Além dessa iniciativa no Rio de Janeiro, houve outra, em São Paulo, também de um médico, com concepção semelhante, mas construindo esse processo de atenção ao câncer não vinculado ao estado, e sim à sociedade, com iniciativas filantrópicas. Esse médico [cirurgião] chamava-se Antônio Prudente [de Meirelles de Moraes], acompanhado de sua mulher, [a jornalista] Carmem Prudente. Tanto ele quanto Mario Kroeff fizeram sua formação médica – no que hoje seria uma pós-graduação – na Alemanha, e tiveram influência no pensamento da saúde pública alemã, que, desde o século XIX, era bastante avançado. É muito interessante observar esses dois pilares da organização do câncer no Brasil. Mario Kroeff, no Rio de Janeiro, capital federal na época, pelo caminho da articulação do Estado, e Antonio Prudente, em São Paulo, cidade mais ligada à iniciativa privada, às iniciativas da sociedade, com a filantropia. Isso, em longo prazo, representou impacto enorme na evolução da medicina das duas regiões, teve uma repercussão muito grande no avanço do processo. Durante todos esses anos, de 1937 em diante, em vários estados do Brasil foram criadas diversas organizações filantrópicas para apoiar pacientes de câncer. Até então, o apoio ao paciente de câncer era dar abrigo, não havia tratamento, eram cuidados paliativos. A filantropia atuou muito esses casos. Temos no Brasil um quadro de instituições filantrópicas ligadas ao câncer que até quase os anos 2000 predominavam na assistência à doença no país. Até 2003, quando assumi a Coordenação de Ações Estratégicas do Inca, 80% da assistência eram feitos por instituições filantrópicas. É preciso conhecer esse passado, essa história, para entender porque o Brasil tem posição de destaque em política e planejamento [detectada no estudo da The Economist]. Isso não foi um acidente.
Saber de onde viemos para entendermos onde estamos...
Sim. Esse modelo de organização em que as instituições filantrópicas tinham papel importante na assistência mantinha-se, de alguma forma, vinculado ao Inca, por intermédio de um conselho, o Cosinca. Criado por Marcos Moraes, em 1992, era formado pelas representações dessas organizações filantrópicas, instituições científicas e o Inca. A partir de 2003 esse órgão foi robustecido, na gestão do doutor Temporão [ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão], com a participação representantes de gestores do SUS, dos três níveis de governo, sociedades científicas e do Conselho Nacional de Saúde. Houve um fortalecimento do papel desse conselho na construção e implementação de uma política nacional.
É muito interessante observar esses dois pilares da organização do câncer no Brasil. Mario Kroeff, no Rio de Janeiro, capital federal na época, pelo caminho da articulação do Estado, e Antonio Prudente, em São Paulo, cidade mais ligada à iniciativa privada, às iniciativas da sociedade, com a filantropia. Isso, em longo prazo, representou impacto enorme na evolução da medicina das duas regiões, teve uma repercussão muito grande no avanço do processo
Em que esse histórico relaciona-se mais objetivamente com o cenário atual?
Primeiro, os outros países citados no relatório da The Economist não passaram por esse processo de forma orgânica. Os países que aparecem na frente do Brasil em relação à política de câncer, a Austrália, como o Canadá e a Nova Zelândia, compõe o Common Wealth [Common Wealth of Nations ou Comunidade das Nações, antiga Comunidade Britânica das Nações, que reúne 53 países, 50 deles ex-integrantes do Império Britânico], tem inspiração na organização do Reino Unido, no que diz respeito à universalidade da atenção etc. São países que se organizaram a partir do pós-Guerra, com fim claramente social, para atender as necessidades da sociedade, provocadas pelas perdas da guerra. O Reino Unido adotou o NHS [National Health System] com esse objetivo. Com isso, conseguiram buscar compreender e resolver os problemas de saúde do conjunto da população, e com esse tipo de organização, passaram a contar com um sistema de informação bem desenvolvido e a perceber o câncer como problema de saúde pública antes de outros países.
Podemos dizer, então, que o Brasil teve então dois fatores positivos em prol da atenção ao câncer – além desse histórico que o senhor traz, a criação do SUS, nos final dos anos 1980?
Sim. O SUS consolidou essa abordagem política do controle de câncer.
O cenário que temos hoje é compatível com esse histórico positivo, no que diz respeito a acesso a diagnóstico e tratamento? Como estão hoje os números do Brasil, quanto a esses dois aspectos?
Olhando os outros indicadores do relatório, vimos que o Brasil está em posição intermediária em relação aos 28 países pesquisados. Na pior posição entre os mais desenvolvidos, e em melhor posição entre os demais. O que esse histórico tem a ver com a posição do Brasil? Esse histórico proporcionou uma base de recursos que permitiu que, durante muitos anos, especialmente até os anos 1990, as pessoas com câncer no Brasil tivessem algum tipo de atendimento, nessa rede filantrópica. Era um atendimento relativamente compatível com o que existia na época, de recursos para tratamento muito mais para cuidados paliativos. Dentro da tecnologia disponível na época, o Brasil oferecia atendimento aos pacientes, nessa rede. Claro que o câncer, na época, não era uma epidemia. Mas alguma forma de tratamento havia. Antes do SUS, o setor público oferecia muito pouco em relação a tratamento de câncer. O SUS revolucionou isso, veio dar estrutura àquele conjunto de instituições filantrópicas, que passou a se articular de forma estratégica com o Inca. Em 1998, foi criada uma portaria [nº 3.535, de 2/9/1998], que organizou a atenção ao câncer como problema de alta complexidade e o acesso ao hospital e à remuneração. Em 2005, outra portaria [nº 741, de 19/12/2005] organizou a rede de atenção oncológica e vem sendo aperfeiçoada até agora.
Dentro da política de atenção ao câncer, o Programa Nacional de Imunização, em especial no que diz respeito às vacinas contra hepatite B e HPV, e o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT), são outros pontos importantes desse conjunto de aspectos positivos que o senhor cita, não?
Todos contêm os dois componentes de que estamos tratando e que sustentam a política de câncer: o conhecimento da doença e a existência do SUS. Um ligado ao câncer em si, a uma compreensão profunda da história natural da doença, ou seja, a história natural da doença orientando a organização da política de câncer; e outro relacionado ao sistema e à atenção primária e secundária à saúde. Quero dizer que existem ações do sistema não necessariamente ligadas ao tratamento de câncer, mas que produzem efeito sobre a doença, como a vacinação e o programa de controle do tabagismo. São ações de prevenção. Mas tudo o que é feito na atenção primária e secundária pode ter impacto na redução da incidência da doença e da mortalidade, como rastreamento do câncer do colo do útero, rastreamento do câncer de mama, que são ações de detecção precoce.
Ao lado do histórico positivo e das conquistas, que desafios temos que enfrentar na atenção ao câncer?
É o problema do acesso. Acesso ao que se tem hoje, não ao que se vai produzir ainda, àquilo que é clássico no tratamento: cirurgia oncológica em estágios iniciais da doença, radioterapia e quimioterapia básica. Isso é o desafio hoje. O acesso às novas tecnologias é outra questão. Não está separada dessa, mas não adianta aquela sem essa. O problema do acesso não está ligado especificamente ao câncer, mas às questões de alta complexidade de forma geral. E aí temos a questão da estruturação do próprio SUS, concebido dentro de uma visão dos anos 1970, em que as doenças crônicas degenerativas e o câncer não eram expressivos do ponto de vista epidemiológico. O que era expressivo no Brasil eram as infecções, a mortalidade infantil, as doenças transmissíveis. O foco da resolução desses problemas estava na atenção básica, no nível local. Tivemos êxito nesse processo, reduziram-se aqueles problemas citados, houve impacto extraordinário. Houve um impacto extraordinário. No entanto, ao se modificar o quadro epidemiológico, no que diz respeito às doenças crônicas degenerativas e a sobrevida da população, a estrutura não está preparada. Essa mudança não foi assimilada pelo sistema, que continuou organizado da forma anterior. E o motivo disso não é técnico, mas político. O processo de municipalização levou a isso.
De que forma?
Mais de 90% dos municípios têm menos de 50 mil habitantes. Esse número não constitui base populacional para se programar o financiamento adequado ao atendimento de câncer, uma vez que essa programação se dá estimando-se um percentual sobre a população. O número de casos em uma população de 50 mil pessoas fica inexpressivo. A prevalência de doenças crônicas e do câncer não é a mesma das doenças infecciosas, é bem menor. A base precisa ser de no mínimo 500 mil. Seria preciso regionalizar, programar os recursos por região, e não por município. Assim, antes da falta de recursos, há a questão da organização do modelo. Não estou defendendo que se reduzam recursos para a saúde e sim que, apesar da falta de recursos, há má utilização, o que, por sua vez, resulta do modelo de organização que não dá conta das necessidades de doenças crônicas e do câncer.
Além de tudo isso, no século XXI, houve uma verdadeira revolução no conhecimento sobre câncer, produção de novas tecnologias, novas drogas, o que é absolutamente revolucionário. A descoberta de que não existe um único mecanismo de descontrole da multiplicação celular, e sim que sete ou oito fatores atuam no disparar de um crescimento desordenado das células, ou invasão de estruturas vizinhas ou disseminação à distância – os três componentes que definem um estado de câncer – propiciou o desenvolvimento de pesquisas sobre cada um desses componentes e de drogas e terapêuticas para cada um deles. O conhecimento sobre a biologia desse processo produz uma infinidade de novas possibilidades diagnósticas e terapêuticas, que estão sendo testadas. Mas cada uma dessas tecnologias traz uma lógica de desenvolvimento, de modelo de financiamento e de disponibilidade para o mercado que é impagável. Chegou-se a um impasse nesse sentido. Daquele um trilhão que se calculou em gastos de câncer no mundo, 90% estão na Europa, Estados Unidos e Japão, e 10% no resto do mundo. E o resto do mundo é muita coisa.
Pesquisa do CEE-Fiocruz, de âmbito mundial, que identificou a percepção de especialistas em Oncologia sobre as possibilidades futuras de diagnóstico e tratamento de câncer apontou nove tecnologias com grandes perspectivas de aplicação, como terapias celulares, biópsia líquida e ferramentas de alteração de genes...
O discurso da falta de acesso, normalmente, vincula-se a essas grandes tecnologias. Mas no nosso caso, a falta de acesso é ainda, como falei, ao que já existe – toda essa estrutura que temos e que a organização do sistema não facilita por conta daquele modelo de cálculo de base populacional. De qualquer maneira, o progresso técnico-científico hoje é também uma enorme barreira. O grande desafio global.
O objetivo dessas tecnologias é livrar o paciente do câncer? Por que o senhor diz que não se deve falar em cura da doença?
No caso do câncer, assim como das doenças crônico-degenerativas, a ideia de cura não é adequada. Ela nos remete a uma ideia de eliminação de um problema. A pessoa tem uma verminose, toma um remédio e cura; tem uma infecção bacteriana, toma um antibiótico e cura. Com o câncer, não é assim, com o diabetes não é assim, com a hipertensão arterial não é assim. Para essas doenças, não se fala em cura, fala-se em controle. E isso é uma mudança de paradigma. Na maioria dos casos, o que se busca conseguir é uma sobrevida com qualidade para a pessoa. Quem teve um câncer nunca está livre de outro. É uma afirmação talvez dura, mas não é uma questão de opinião, e sim de como se dá o mecanismo de multiplicação das células. Quando ocorre em órgão que temos a possibilidade de extirpar, aumenta-se muito a possibilidade de a doença não voltar. Mas aquele gatilho que provocou mudança daquela célula pode estar em outro lugar. E pode não se manifestar nunca mais também. A ideia de cura do câncer, pelo menos até o ponto em que está a ciência, não se consegue estabelecer. Não é o caso de se criar situação de desesperança, mas de destacar a importância de se trabalhar com a possibilidade de controle da doença, que se estende para o resto da vida. Essas novas drogas apresentadas como cura são, até agora, todas paliativas. Produzem efeitos de reversão evolução da doença, mas ainda com muitos efeitos colaterais indesejáveis. Quando se fala em cura, autoriza-se que se pague qualquer preço por isso. A ideia de cura é muitas vezes prejudicial, não só pelos efeitos socioeconômicos, como pelos pessoais, familiares. A pessoa espera estar curada e se sente frustrada quando precisa continuar com alguns procedimentos pela sua qualidade de vida. Uma pessoa que se submete a uma cirurgia de câncer de mama em fase precoce, bem sucedida, precisa ter um acompanhamento, fazer talvez alguma complementação hormonal ou quimioterapia , tudo isso estará relacionado à qualidade de vida no futuro. Muitas vezes, a ideia de pessoa curada vai deixando de lado esses cuidados. Por outro lado, o sistema tem que garantir essa continuidade da atenção também. E aí entra não só o sistema público, como o sistema privado. Os planos de saúde têm que oferecer essa atenção, e não oferecem. Tudo se dá de forma pontual. E, no caso do câncer, essa abordagem pontual é insuficiente.
Como devemos olhar para o caso recente de um paciente com câncer terminal, que teve seu caso revertido por uma terapia genética inédita na América Latina aplicada por equipe de médicos da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto?
É uma nova terapia, que estimula que as próprias células de defesa do organismo atuem enfrentando o crescimento desordenado das células e evitando a multiplicação celular. Isso vem sendo pesquisado há muito tempo. Foi o primeiro caso no Brasil. É possível replicar para aquele tipo de câncer, linfoma, e para aquele tipo de linfoma. E não se sabe até quando. Não se pode generalizar. Esse não é um olhar pessimista, mas um olhar sobre o estado da arte: é assim que as coisas estão.
Quando se fala em tecnologias como genômica, proteômica e imuno-oncologia, isso está em um horizonte distante?
A genômica trata do gene, a proteômica trata de um pedaço do gene. Essa foi uma descoberta importante dos anos 2000. Os pesquisadores [Douglas Hannahan e Robert Weinberg] descobriram que não existia um único mecanismo de descontrole da multiplicação celular, mas vários. Eles descreveram e comprovaram em laboratório. Então, do ponto de vista do acesso, é preciso garantir acesso geral ao sistema, àquilo que é básico – cirurgia, radioterapia e quimioterapia –, e também a essas inovações – que devem vir por dentro do sistema de saúde! Por isso, é preciso haver mecanismos de regulação, como o Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS]. Os órgãos de pesquisa e desenvolvimento têm que estar muito articulados com a estrutura do Ministério da Saúde, para garantir o acesso – e garantir com efetividade. E para que não se criem situações como o surgimento de uma droga qualquer que leva o usuário a entrar na Justiça para ter acesso. Hoje, no acesso pela via judicial, existem coisas que não têm a menor importância para o tratamento, e, até pelo contrário, podem ser prejudiciais.
E do que depende, então, a garantia ampla de acesso? Estamos falando de vontade política e de recursos financeiros? Há outros desafios?
Os desafios maiores estão ligados ao desenvolvimento técnico-científico, à produção de novas tecnologias; os desafios específicos são de localização e financiamento. Em termos de estrutura, o Brasil tem, hoje, comparativamente a outros países, estrutura muito boa para tratamento oncológico. Apesar de ter déficit, em radioterapia, há um programa em andamento para expansão, ligado às mais de 300 unidades de tratamento. É uma rede importante, que dá conta, se for bem organizada.
É uma questão de fortalecimento do que existe...
Sim. E que está andando para trás, corremos o risco de perder. O Inca veio perdendo a importância como articulador da rede que mencionei, devido à gestão do Ministério da Saúde. Ao longo dos anos, não é algo deste governo, o ministério veio deixando de lado a compreensão do papel de um instituto nacional na coordenação de uma política dessa magnitude. Para o Ministério da Saúde, o câncer é uma doença como outra qualquer. E o Inca, uma instituição como outra qualquer. E nenhuma das duas coisas é verdadeira.
De que forma a questão dos medicamentos, com seu alto custo, relaciona-se a essa universalização de acesso?
A indústria farmacêutica tem papel extremamente importante no desenvolvimento e produção de novas drogas e tecnologias para o tratamento do câncer. O problema é que o modelo que tem para disponibilizar os medicamentos é absolutamente inviável. Não dá para incorporar ao custo final do medicamento um preço ao consumidor que é impagável. É uma contradição absoluta: produz-se algo que o consumidor não pode consumir. Há inúmeras possibilidades de isso se resolver. [Leia aqui o artigo Futuro do tratamento do câncer chegou! O Brasil vai ficar no passado?, de Jorge Bermudez e Luiz Santini]
O senhor destaca o papel da Comunicação como fundamental na abordagem do câncer. De que forma isso deve se dar?
A Comunicação é um fator fundamental na abordagem. Há três públicos a que ela deve se dirigir. Primeiro, o público em geral, para se tirar o estigma que envolve o câncer e para as pessoas saberem que têm possibilidades de se prevenir, de se cuidar, se tomarem as vacinas de hepatite B, de HPV, se fizerem os exames de detecção precoce recomendados. Embora o câncer esteja em sua origem necessariamente ligado ao gene, o fator ambiental é muito importante. Aquilo só se desenvolve porque há um desequilíbrio qualquer. Assim, a comunicação pode ajudar a romper esse estigma.
Essa comunicação seria de quem para quem? Governo? Mídia?
Quem tiver voz de alguma forma deve utilizar, divulgando a melhor informação existente. Toda vez que a mídia, influenciada por conhecimento ou por pagamento – não importa – dissemina a ideia de uma pílula milagrosa, não está contribuindo. Está veiculando informação inadequada para o problema – pode ser que seja adequada para a indústria, mas não para o problema. Veja a campanha antivacina que efeito teve. Isso é comunicação! O outro público é o profissional de saúde. Quando fui diretor do Inca criei uma revista chamada Rede Câncer, voltada aos gestores e profissionais de saúde, que é veiculada até hoje. Era uma revista de divulgação, não uma publicação científica, para disseminar informação, fazer com que as pessoas conhecessem o problema do câncer. A maioria dos gestores e profissionais tinham e têm ainda pouco conhecimento de câncer, tinham os mesmos medos e preconceitos que população em geral. Sobretudo para os gestores, o câncer se apresentava como problema gravíssimo que não sabiam como enfrentar – e não sabem, ainda. E, por fim, uma terceira ação de comunicação é o que estamos fazendo aqui, nesta entrevista: geração de informação de qualidade, de conhecimento, para que a sociedade e o sistema de saúde possam se orientar. A comunicação é um elemento estratégico da gestão da atenção ao câncer.
Leia aqui o artigo Futuro do tratamento do câncer chegou! O Brasil vai ficar no passado?, de Jorge Bermudez e Luiz Santini