Renda básica pode ser uma saída para a superação da desigualdade
Para superar a desigualdade e alcançar um estado de bem-estar social é preciso associar renda básica e renda máxima, “financiada pelos 20% mais ricos” da sociedade. A renda básica dá garantias de existência material e oferece condição para o exercício da liberdade, independentemente de se estar trabalhando. Já, a renda máxima limita a acumulação. A avaliação é do professor Daniel Raventós, doutor em Ciências Econômicas e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona, em entrevista ao IHU On-Line. Para Raventós, a correlação de forças nos mecanismos de poder “entre bancos e o restante da população” expressa a “atual configuração política dos mercados”, que explica por que os ricos estão cada vez mais ricos, antes e durante a crise econômica, e a maior parte da população está cada vez mais pobre. “As grandes fortunas têm a possibilidade de interferir à vontade nas condições materiais de existência da imensa maioria. E essa possibilidade, que muitas vezes se torna realidade, atenta contra a liberdade da maioria não rica”, destaca o economista espanhol.
Confira a entrevista.
Em suas reflexões recentes, o senhor defende o emprego de “renda básica incondicional” e de “renda máxima”. Gostaria que detalhasse esses dois conceitos.
A associação Basic Income Earth Network entende por renda básica uma alocação pública monetária incondicional para toda a população. Incondicional é uma característica essencial. Os subsídios que conhecemos para pobres, para pessoas que não chegam a um determinado nível de renda e/ou pessoas desocupadas são condicionais.
Renda máxima
A renda máxima significa que a partir de determinada quantidade não se pode ganhar mais, ou seja, 100% da taxa impositiva. A ideia é velha e pode se encontrar na concepção mais que milenar da liberdade republicana. Republicanamente as grandes fortunas são incompatíveis com a liberdade da grande maioria. As grandes fortunas têm a possibilidade de interferir à vontade nas condições materiais de existência da imensa maioria. E essa possibilidade, que muitas vezes se torna realidade, atenta contra a liberdade da maioria não rica.
É nisso precisamente que a neutralidade republicana se diferencia da liberal – a qual se conforma com que o Estado não tome partido por uma concepção determinada de vida digna em detrimento de outras que possam existir –, pois exige acabar com a capacidade dos grandes poderes privados de impor ao conjunto da sociedade sua concepção privada de vida digna e de disputar no Estado essa prerrogativa.
Discutir uma renda máxima não necessariamente é empreender regimes socialistas, correto? Por quê?
Um regime socialista é algo muito mais amplo que a proposta de renda básica. Por quê? Porque um regime socialista, seja lá o que queiramos dizer com isso, supõe muito mais medidas que uma simples renda básica.
A instauração de uma renda básica por si só é capaz de reduzir as desigualdades? Que outro conjunto de medidas de política econômica e social deve ser adotado junto com a renda básica?
Depende de como se financie. As diferenças entre as propostas de renda básica de direita e esquerda são muitas. Porém uma das mais importantes é como se financia. Dito de outra maneira, quem ganha e quem perde, que parte da população sairá beneficiada com uma renda básica e que parte não. Para a esquerda, o financiamento da renda básica significa uma reforma fiscal que suponha uma redistribuição da renda dos decis mais altos ao restante da população. A direita pretende outros objetivos, não precisamente uma redistribuição da renda dos mais ricos aos demais.
Sobre outras medidas que devem ser levadas em consideração, dependerá das opiniões políticas. Há pessoas que talvez tenham em comum a defesa da renda básica, porém as opiniões políticas são opostas ou muito diferentes. Conheço pessoas que defendem a renda básica com as quais não tenho nenhuma comunhão de ideia, política ou socialmente. E talvez existam pessoas que discordem da renda básica, mas por outro lado posso ter com elas mais afinidade em outros aspectos políticos e econômicos.
No meu caso, defendo que a renda básica deve ser acompanhada da defesa do Estado de bem-estar social, com a imposição de uma renda máxima, que citei anteriormente, um controle público da política monetária, uma redução da jornada de trabalho... Entre outras medidas, para garantir a existência material de toda a população, condição republicana para ser livre.
Na teoria econômica ortodoxa, a expansão da moeda traz consigo a inflação. Do mesmo modo, se diz que a tributação afasta investimentos. Em que medida a proposta de rendas mínimas e máximas podem fazer frente à ojeriza liberal às políticas de distribuição de renda?
Não entro na discussão das barbaridades da teoria econômica ortodoxa. Para especificar, uma renda básica não supõe necessariamente a criação de massa monetária. Depende de como se financia. Na proposta de financiamento que defendo, já há alguns anos, com meus amigos e colegas Jordi Arcaron e Lluís Torrens, não propomos criação de dinheiro adicional, mas sim uma reforma fiscal e uma grande redistribuição da renda dos 20% mais ricos ao resto da população.
Em que medida as avaliações morais emperram o debate sobre as desigualdades e, especialmente, o debate acerca da instituição de renda básica? Como fazer frente a essa perspectiva?
Qualquer barbaridade sobre a mais grave das injustiças, sempre há filósofos moralistas e políticos dispostos a justificá-la. Aconteceu com o fascismo, o nazismo, o stalinismo, o escravismo... As grandes desigualdades? Também. Vejamos como o argumento costuma funcionar:
Se há pessoas muito ricas é, fundamentalmente, porque merecem devido ao seu esforço, inventividade ou originalidade. Há algumas pessoas, segundo esse argumento habitual, que por sua iniciativa, ou por sua engenhosidade, criatividade ou contribuição inovadora fazem grandes contribuições à sociedade. Contribuições que mudam a vida de muitas pessoas, que facilitam a existência de produtos que melhoram a sociedade. Essas pessoas, precisamente por suas inovações, contribuições ou o que seja, devem receber rendas distanciadas da média. É justo, é razoável, corresponde a seu mérito, continua a argumentação. A ideia do homem (ou mulher) fazer por si mesmo se torna cada vez mais potente conforme as economias ricas aumentam a extrema desigualdade.
“Eu tenho porque mereci”
Gina Rinehart é uma empresária de mineradoras da Austrália. Segundo sua opinião, toda sua fortuna é merecida, e quem não via assim era um invejoso. E dá conselhos: “se tem inveja de quem tem mais dinheiro, não fique sentado se queixando. Faça algo para ganhar mais dinheiro: gaste menos dinheiro em bebida, cigarros ou escolha passar mais tempo trabalhando, crie seu próprio êxito”. Como recordava o prestigioso ambientalista inglês George Monbiot: “recordar suas raízes é o que Rinehart não sabe fazer. Ela se esqueceu de acrescentar que se quer se tornar uma milionária, no seu caso bilionária, ajuda herdar uma mina de minério de ferro e uma fortuna do pai, e cavalgar sobre o crescimento espetacular das commodities. Se tivesse passado a vida toda na cama atirando dardos contra a parede, seguiria sendo estupidamente rica”. E mais adiante: “As listas de pessoas ricas estão repletas de gente que ou herdou sua fortuna ou a fez graças a atividades rentistas: por outros meios que não foram inovação e esforço produtivo. São um catálogo de especuladores, barões imobiliários, duques, monopolistas de tecnologia da informação, usurários, donos de banco, xeques do petróleo, magnatas da mineração, oligarcas, executivos-chefes remunerados de forma absolutamente desproporcional a qualquer valor que gerem”. Há quem não pense o mesmo. The Economist, em uma reportagem do ano de 2011, dizia: “Para chegar a ser ricos, por regra geral, tiveram que fazer algo extraordinário”.
Linda McQuaig e Neil Brooks documentam, em "Trouble With Billionaires" (Editora One World, 2013. Em português: "O problema dos bilionários" , tradução livre)que “os empreendedores constituem uma parte muito pequena do grupo de maiores salários, menos de 4%, segundo algumas estimativas. A atual elite dos super-ricos está composta, em sua maioria, por executivos de empresas de finanças, que representam em torno de 60% do 0,1% mais rico (advogados e promotores imobiliários representam outros 10%)”. E essa colossal riqueza se deve, mais do que à inovação ou às contribuições à sociedade, à “busca de rendas” ou mais exatamente ao que na economia se conhece como rentismo parasitário. A “busca de renda” não produz riqueza e é um mecanismo pelo qual a renda muda de mãos. Pode-se realizar a troca das rendas mediante leis, facilidades concedidas pelos governos etc. Os ricos capturaram muitas rendas da maioria da população graças às legislações que conseguiram impor, ainda que não de forma única, mediante os muitíssimos lobistas que atuam próximo dos legisladores.
O fato de um banco dedicar 1,2 bilhão ao ano e 1.700 pessoas para pressionar, nos escritórios da União Europeia, em Bruxelas, em defesa dos seus interesses, não deveria fazer ninguém duvidar de que há um mecanismo muito potente de pressão para que os mercados se regulem em seu benefício. Um poder muito mais potente do que os pensionistas, por exemplo, que vão retirar sua pensão ao final do mês em qualquer agência bancária, podem ter. A atual configuração política dos mercados explica perfeitamente que os ricos estão cada vez mais ricos, antes e durante a crise econômica, junto ao fato de que a maior parte da população está cada vez mais pobre.
E a renda básica deve fazer frente aos argumentos morais deste tipo: “as desigualdades existem porque há pessoas que merecem estar no topo e há gente que não merece outra coisa senão ser pobre”.
Outra ideia muito presente em nosso tempo é do empreendedorismo de si. Podemos considerar que essa ideia amplia a desigualdade e rompe com laços cooperativos, dos quais poderia emergir a constituição de uma renda básica?
A possibilidade de empreender pequenos negócios ou iniciativas econômicas seriam maiores com uma renda básica. É o que mostrou o experimento piloto na Namíbia.
As novas tecnologias e a chamada Revolução 4.0 têm impactado o mundo do trabalho. Em que medida a instituição de uma renda básica poderia amenizar esses impactos?
Distintos estudos asseguram que a robotização pode afetar muitos postos de trabalho, com uma ressalva a respeito de outras épocas: não é uma ameaça somente para os trabalhos de baixa qualificação, mas também para alguns de alta qualificação.
Essa situação, que em parte já está se vivendo, é uma das razões pelas quais novas pessoas apoiam a proposta de renda básica nos últimos anos. A robotização pode ser algo realmente bom para a imensa maioria da população se seus benefícios se repartirem entre todos. Isto é, se o incremento da produtividade que representará a robotização se converter em menos horas de trabalho. Claro que uma renda básica pode ser uma das grandes medidas que permitam distribuir entre toda a população as vantagens da robotização. Porém também pode suceder que esses benefícios somente sejam agenciados pelos proprietários das grandes empresas. Que se incline em um ou outro sentido dependerá (ou deveria depender, sejamos realistas) da vontade da grande maioria.
Robôs e programas de computadores extremamente sofisticados têm eliminado postos de trabalho. A tributação do trabalho de robôs pode ser uma alternativa para viabilizar o financiamento de uma renda básica universal? Quais os desafios para se empregar isso? Como o senhor observa as transformações do capitalismo do século XXI? E como podemos relacionar essas transformações aos avanços tecnológicos? Em tempos de intensificação e transformações do liberalismo, como repensar o papel e o espaço do Estado?
Não acredito que a tributação do trabalho robótico vá muito longe. O que acredito que tem mais justificativa é a tributação equitativa.
Para financiar uma renda básica, como mostram Jordi Arcarons e Lluís Torrens, deve ser feita uma reforma fiscal. De forma que, por definição, a renda básica é distribuída para toda a população, porém os 20% mais ricos devem pagar mais do que pagam agora em imposto direto. Por isso insistimos muitas vezes que a renda básica, toda a população recebe, porém nem toda a população ganha. Em nossa proposta, os 20% mais ricos perdem, e os outros 80% ganham. E isso é possível de financiar, inquestionavelmente. Porém financiar uma renda básica que beneficie a grande maioria da população é uma opção política e social. Daí que muitas pessoas podem despistar que haja propostas de renda básica de esquerda e de direita como se estivessem defendendo a mesma coisa. Não são a mesma coisa. As diferenças mais importantes entre as propostas de renda básica de direita e de esquerda são as seguintes.
Financiamento da Renda Básica
Em resumo, se discute quem ganha e quem perde. Que parte da população sai beneficiada com uma renda básica e que parte não. Para a esquerda, o financiamento da renda básica significa uma reforma fiscal que suponha uma redistribuição da renda dos decis mais altos ao restante da população. A direita pretende outros objetivos, não precisamente uma redistribuição da renda dos mais ricos aos demais.
Além disso, existem as medidas de política econômica que adicionalmente se propõem junto à renda básica. A esquerda assume a defesa do saneamento e da educação pública, e em geral, do Estado de Bem-Estar Social (ou o que sobra do mesmo em alguns lugares) “em troca” da renda básica – seria o caso, por exemplo, de Charles Murray, o economista que defende a renda básica nas páginas do Wall Street Journal: o título de um dos seus últimos livros, de 2016, é suficientemente explícito, “In Our Hands: A Plan to Replace Welfare State” – perseguindo seus clássicos objetivos de “diminuição” do Estado – exceto a polícia, o exército e os tribunais de justiça, significativamente – e de redução da pressão fiscal aos ricos. A esquerda (ao menos a republicana) não concebe a liberdade de forma independente das condições materiais de existência.
O aumento do poder de negociação dos trabalhadores e das mulheres que receberiam a renda básica, segundo defende a esquerda, não é admitido como bom ou desejável pela direita. Adicionalmente, a direita prefere quantidades pequenas de renda básica para pessoas abaixo do limiar da pobreza, para “incentivar” o trabalho remunerado. Sobre a cada vez maior porcentagem de “trabalhos de merda”, a direita é insensível, visto que justifica que sempre foi preciso desenvolver trabalhos desagradáveis e pouco interessantes para tornar o crescimento econômico possível.
Neutralidade do Estado
Para a direita, a neutralidade significa o Estado não intervindo nas negociações e disputas dos distintos agentes e setores sociais. Para a esquerda (ao menos a partidária da liberdade republicana) significa que deve intervir ativamente para impedir que os grandes poderes privados, como as multinacionais gigantes, imponham sua vontade privada aos Estados e ataquem a liberdade da maioria não rica. O Estado deveria intervir então com uma defesa da renda máxima, por exemplo.
Um Estado republicano deve intervir ativamente para que a neutralidade seja um fato, e não um lema superficial de “equidistância entre os projetos de vida digna”. Republicanamente, este último se pressupõe, mas quando grandes poderes dispõem da capacidade de impor à sociedade a sua concepção privada de bem como bens públicos, como quando a constituição oligopólica dos mercados permite o sequestro do Estado por parte dos imensos impérios privados, a neutralidade significa intervenção ativa, não tolerância passiva e que ganhe o mais forte.
O enfraquecimento do Estado, via liberalismo, afasta ainda mais a possibilidade de instituição de renda mínima? Por quê?
Enfraquecimento do Estado? Cuidado. Mais forças policiais, tribunais de justiça, exércitos fortes... não, o Estado é tão ou mais forte que nas últimas décadas.
Outra coisa é a parte do gasto público em benefício da maioria não rica. Aqui é onde os grandes poderes privados conseguiram vitórias indiscutíveis nos últimos anos: empresas e serviços públicos privatizados. Para benefício dos ricos e em detrimento do resto. É parte da “luta de classes desde cima” à qual, não faz muitos anos, se referia Warren Buffett. A renda básica (uma renda em benefício da maioria não rica da população, claro) somente será possível de ser implantada junto ao enfraquecimento e à revogação dessas realidades que acabo de mencionar.
Deseja acrescentar algo?
Somente o seguinte. Dentro de poucos anos, a renda básica pode chegar a ser algo que nos pareça tão normal ou natural como hoje nos parecem as férias pagas, o direito à sindicalização, o sufrágio universal, a proibição do trabalho infantil, a proibição da tortura... Talvez.
Porém também, se seguir a tendência dos últimos anos, podemos desembocar em uma sociedade em que impere o trabalho semiescravo (ou, para não enganar, falemos diretamente: escravo), com condições sociais cada vez piores para a maioria da população não rica, com o império das multinacionais e a mais servil submissão dos governos. Depende de nós.
Publicado no IHU Online.