Seguridade social como via para concretizar os direitos fundamentais
No Estado democrático de direito, instituído pela Constituição de 88, não se pretende apenas uma isonomia formal, relativa aos direitos civis e políticos do Estado Liberal, mas a concretização da igualdade substancial, aquela que almeja o mesmo direito à saúde, à educação e a renda, destaca o professor de Direito Tributário da UniSinos Marciano Buffon. Nesse contexto, “a seguridade social ocupa um espaço de proeminência, na medida em que a efetivação da proteção social àqueles que (mais) dela necessitam, constitui um caminho lógico e racional para consecução dos objetivos constitucionalmente postos”.
Por Patricia Fachin (IHU On-Line) *
No momento em que o Congresso Nacional discute a reforma da previdência, Marciano Buffon, professor de Direito Tributário da Unisinos, defende a necessidade de se “discutir a criação de regimes previdenciários diversos, levando-se em consideração as imensas desigualdades existentes no território nacional, bem como as atuais e futuras relações de trabalho que vêm sendo constituídas”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele explica que o Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 88, propõe “uma evolução na busca da igualdade, na medida em que não se pretende apenas uma isonomia formal, relativa aos direitos civis e políticos do clássico Estado Liberal, mas, sim, a concretização da igualdade substancial, aquela que almeja, no limite de suas possibilidades, o mesmo direito à saúde, à educação e às rendas”. Nesse contexto, explica, “a seguridade social ocupa um espaço de proeminência, na medida em que a efetivação da proteção social àqueles que (mais) dela necessitam, constitui um caminho lógico e racional para consecução dos objetivos constitucionalmente postos”.
A seguridade social, que precisa ser contemplada na reforma da Previdência, menciona, “cumpre esse papel de assegurar a concretização de direitos fundamentais sociais, sobretudo a proteção à velhice, à infância, à maternidade e nas situações de desamparo do cidadão em face da ausência de renda, seja pelo desemprego involuntário ou em virtude de doença e incapacidades”.
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Marciano Buffon é doutor em Direito com ênfase em Direito do Estado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e mestre em Direito Público. Ele esteve recentemente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ministrando a palestra Reforma da Previdência e o princípio da solidariedade. Análise à luz do pacto constitucional e do direito fundamental à aposentadoria. O professor lançou recentemente o livro intitulado “Tributação, desigualdade e mudanças climáticas: como o capitalismo evitará seu colapso” (Curitiba: Brazil Publishing, 2019).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o modelo de Estado que temos no Brasil atualmente e por que a previdência social e a seguridade são inerentes e imprescindíveis a esse modelo?
Marciano Buffon – A Constituição de 1988 instituiu no Brasil um Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito constitui-se em um aprofundamento do Estado Social que agregou, em seu seio, o plus democrático, dando, em tese, o poder ao povo de participar das decisões, de modo indireto, via representantes escolhidos por votação. Nesse tipo de Estado, há uma evolução na busca da igualdade, na medida em que não se pretende apenas uma isonomia formal, relativa aos direitos civis e políticos do clássico Estado Liberal, mas, sim, a concretização da igualdade substancial, aquela que almeja, no limite de suas possibilidades, o mesmo direito à saúde, à educação e às rendas, estes, direitos-meio para consecução da efetiva liberdade — direito-fim. Ou seja, não basta que todos aqueles que estejam em situação equivalente sejam tratados de forma igual. Faz-se necessário que o tratamento jurídico desigual, aplicável aos desiguais, tenha como norte a redução das desigualdades fáticas (sociais e econômicas).
Faz-se necessário que o tratamento jurídico desigual, aplicável aos desiguais, tenha como norte a redução das desigualdades fáticas (sociais e econômicas)
Essa opção por uma nova concepção de Estado resta evidente na Constituição brasileira, sendo que bastaria examinar o disposto nos artigos 1º e 3º, incisos I e III para concluir nesse sentido. Não é por acaso que o “caput” desse dispositivo menciona que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” o exposto em seus incisos, a partir dos quais se vislumbra a necessidade de, pelo menos, buscar o equilíbrio social mediante a redução das desigualdades.
Neste contexto, a seguridade social ocupa um espaço de proeminência, na medida em que a efetivação da proteção social àqueles que (mais) dela necessitam, constitui um caminho lógico e racional para consecução dos objetivos constitucionalmente postos.
Qual é a peculiaridade do modelo de seguridade social instituído no Brasil a partir da Constituição de 88?
A peculiaridade reside em dois aspectos, ao meu ver. Primeiro, por se tratar de um conjunto de normas inseridas no plano constitucional que servem de direcionamento e vinculam a todos os poderes, no sentido de adotar políticas públicas que sejam aptas a assegurar sua máxima eficácia. A Constituição, neste ponto, chega a ser didática e pedagógica, pois diz em seu preâmbulo que somos nós (art. 1º), o que objetivamos enquanto nação (arts. 3º e 4º) e como chegar a isso, no capítulo concernente aos direitos fundamentais. A seguridade social, portanto, cumpre esse papel de assegurar a concretização de direitos fundamentais sociais, sobretudo a proteção à velhice, à infância, à maternidade e nas situações de desamparo do cidadão em face da ausência de renda, seja pelo desemprego involuntário ou em virtude de doença e incapacidades. O outro aspecto decorre justamente do primeiro, pois assegura o acesso de uma forma universal, razão pela qual claramente o princípio que a fundamenta é o da solidariedade.
Pode nos explicar em que consiste o princípio da solidariedade aplicado à seguridade social e ao sistema previdenciário brasileiro?
O financiamento da seguridade social, no âmbito do Estado brasileiro, dá-se por diversas fontes, independentemente da contrapartida estatal. Noutras palavras, aqueles que pagam os tributos cujos recursos são carreados para seguridade, não são aqueles que dela necessitam. Isso ocorre porque, no Estado Democrático de Direito a tributação obedece ao princípio da capacidade contributiva e o recolhimento de impostos e contribuições sociais deve ser realizado de uma maneira proporcional àquela. Neste formato estatal — ora vigente — a adoção de políticas fiscais e de seguridade em observância a tais princípios tendem a fazer frente a um dos problemas mais marcantes da atualidade: a desigualdade. Vale lembrar que o Brasil hoje ocupa a 9ª posição entre os países mais desiguais do mundo em renda (índice de Gini).
O Brasil hoje ocupa a 9ª posição entre os países mais desiguais do mundo em renda
Considerando a realidade brasileira hoje, com seu contingente populacional, é preciso reformular o atual modelo de seguridade social? Sim, não, e por quê?
É difícil sustentar posição acerca da imutabilidade do sistema previdenciário de qualquer país. Entre eles, obviamente o Brasil. Temos, sim, que pensar em alternativas, sobretudo, a partir do advento do que se convencionou denominar economia do conhecimento, com todas suas consequências no âmbito do trabalho, bem como pelo fenômeno da longevidade. Trata-se de um grande desafio ante as intrínsecas dificuldades de conceber-se algo no atual contexto político, econômico e social vivenciado pelo Brasil e por muitos outros países.
Muitos especialistas afirmam que seria preciso uma reforma da previdência, mas não exatamente como ela está sendo elaborada. O senhor concorda com essa análise e que reparos seriam necessários na previdência considerando as atuais características do mercado de trabalho?
Embora não me considere um especialista em Previdência, parece-me importante discutir a criação de regimes previdenciários diversos, levando-se em consideração as imensas desigualdades existentes no território nacional, bem como as atuais e futuras relações de trabalho que vêm sendo constituídas. Inclusive, isso parece ser o senso comum, pois uma coisa é eu (advogado e professor universitário) aposentar-me depois dos 65 anos, pois trata-se de atividades as quais — em regra — podem ser exercidas tranquilamente até lá. Outra situação bem distinta é submeter trabalhadores que exercem atividades fisicamente extenuantes e muitas inclusive quase incapacitantes até a referida idade. Tratar os desiguais igualmente também é rematada desigualdade e injustiça, já bradava Rui Barbosa inspirado em Aristóteles.
Tratar os desiguais igualmente também é rematada desigualdade e injustiça, já bradava Rui Barbosa inspirado em Aristóteles
Quais são os problemas jurídicos e constitucionais envolvidos na atual proposta de reforma da Previdência?
Uma vez que a reforma vem sendo perpetrada por uma Proposta de Emenda Constitucional, só se poderia entendê-la “inconstitucional”, caso apontássemos direitos fundamentais que estariam sendo violados. Talvez, pudéssemos falar em afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, no caso do Benefício de Prestação Continuada, caso ao final prevaleça a ideia de reduzi-lo para menos de um salário mínimo, bem como a questão da igualdade antes mencionada.
Na sua palestra no IHU sobre a reforma da Previdência, o senhor mencionou que o que mais o preocupa é a PEC paralela que, entre outras coisas, extingue a imunidade das instituições de educação. Pode explicar em que consiste essa PEC e quais serão as implicações se ela for aprovada?
Tramita no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC – Paralela) que modifica o artigo 150 inciso VI alínea “c”, bem como o artigo 195 § 6º da Constituição, que extinguiria a imunidade das instituições de educação e assistência social. Notadamente, isso implicaria — entre outros — o recolhimento da contribuição previdenciária sobre a folha de salários (20% atualmente). Seria um substancial incremento de custos nas atividades respectivas, inviabilizando a sobrevivência de muitas instituições. Vale lembrar que esse “benefício” não é dado sem quaisquer contrapartidas. As instituições de educação, por exemplo, concedem milhares de bolsas a alunos carentes (mais de 700 mil no Brasil e muito significativamente no RS). Essas bolsas deixariam de existir, impossibilitando milhares de jovens de realizar o acalentado sonho de concluir um curso superior em uma Universidade séria e qualificada.
De quem o Estado cobrará tributos que sejam suficientes para fazer frente ao atual gasto público, que hoje já resulta imenso déficit, não obstante a carga fiscal atual seja próxima a 35% do PIB?
Deseja acrescentar algo?
Preocupa-me sobremaneira a atual possibilidade de ampla terceirização das atividades, pois embora reduzam custos trabalhistas, isso tem como consequência direta a redução drástica na arrecadação de contribuições previdenciárias destinadas à seguridade social. Num primeiro momento isso parece positivo, pois reduz o custo com o trabalho no Brasil. Porém, como o Estado Brasileiro fará frente a essa redução de arrecadação de contribuições sociais e também de impostos? De quem o Estado cobrará tributos que sejam suficientes para fazer frente ao atual gasto público, que hoje já resulta imenso déficit, não obstante a carga fiscal atual seja próxima a 35% do Produto Interno Bruto? Algo que necessita ser pensado, também.
* Entrevista publicada no site IHU On-Line, em 25 Setembro 2019.