José Gomes Temporão e Luiz Antonio Santini: Novas tecnologias na saúde e o desafio do acesso com equidade
As doenças crônicas são a principal causa de morte e adoecimento no país e estudá-las, sob os mais variados pontos de vista – epidemiológico, demográfico, de financiamento e da incorporação de novas tecnologias de diagnóstico e tratamento –, é um poderoso caminho para se lidar com os desafios mais amplos da saúde pública e do SUS. É nesse sentido que vem sendo conduzido o projeto de pesquisa Doenças Crônicas e Tecnologias em Saúde (DCTS), do CEE-Fiocruz, liderado pelos pesquisadores José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, e Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer.
Em entrevista ao blog do Centro, gravada em vídeo e reproduzida abaixo, os dois abordam os resultados das primeiras pesquisas, que tomaram o câncer como campo de estudo, voltadas à percepção de médicos oncologistas e de outros segmentos envolvidos com a atenção oncológica, quanto ao futuro das tecnologias para diagnóstico e tratamento da doença. Uma palavra orienta o trabalho do grupo de pesquisa: acesso. Tomado como “eixo central” dos estudos, explicam os pesquisadores, o acesso engloba desafios que vão da melhoria da gestão na atenção primária, à consolidação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, para encurtar o caminho rumo às inovações e reduzir a dependência tecnológica externa.
“Essa dimensão do acesso, no caso das doenças crônicas em geral e do câncer em particular, é fundamental. No Brasil, em que temos um Sistema Único de Saúde que garante acesso universal, o câncer e as doenças crônicas exigem disponibilidade de recursos, de tecnologias e também de sistemas de gestão e de comunicação, para que as pessoas possam ter esse acesso assegurado”, analisa Santini. “É preciso uma política de gestão de incorporação de tecnologias com critérios muito claros; é preciso uma política de preços e uma política de Estado, que aumente a capacidade endógena do Brasil de produzir as tecnologias estratégicas para o futuro do controle das doenças mais prevalentes em nosso país”, observa Temporão.
Leia trechos da entrevista.
De que modo os estudos na área da Oncologia nos levam a compreender melhor o universo das doenças crônicas de forma geral e de que modo, por sua vez, estudar as doenças crônicas nos ajuda a pensar a atenção à saúde, a saúde pública e o SUS?
José Gomes Temporão – O estudo das doenças crônicas é fundamental para a saúde pública por vários motivos. Primeiro porque elas são a principal causa de mortalidade e adoecimento no Brasil – a primeira causa são as doenças cardiovasculares. Com a pandemia, as doenças infectocontagiosas passaram ao segundo lugar, e o câncer, importantíssimo problema de saúde pública, vindo em seguida. Os estudos das doenças crônicas se desdobram em inúmeras dimensões: há estudos epidemiológicos – como as doenças se expressam no corpo social; estudos aplicados; estudos de pesquisa básica; demográficos; prospectivos; econômico-financeiros, quanto ao custo para o sistema de saúde; sobre prevenção e promoção da saúde; e, por fim, a dimensão que se refere à crescente incorporação de tecnologias de diagnóstico e tratamento para essas doenças. No caso de nosso projeto de pesquisa, o campo de estudo que definimos como prioritário, neste momento, foi o de tomar o câncer como problema de saúde pública e o acesso ao diagnóstico e tratamento como eixo central.
Luiz Antonio Santini – Essa dimensão do acesso, no caso das doenças crônicas em geral e do câncer em particular, é central. No Brasil, em que temos um Sistema Único de Saúde que garante acesso universal, o câncer e as doenças crônicas exigem disponibilidade de recursos, de tecnologias e também de sistemas de gestão e de comunicação, para que as pessoas possam ter esse acesso assegurado. É algo muito complexo; é preciso uma estrutura muito bem organizada. Essas doenças, em especial o câncer, escolhido por nós como foco de investigação, vêm crescendo na sociedade, pelo impacto do envelhecimento da população, da mudança de perfil epidemiológico. Os desafios colocados no Brasil são muito grandes.
A partir desse entendimento, qual foi o ponto de partida para os estudos que compõem o projeto de pesquisa que conduzem? No que consistiu cada uma das pesquisas realizadas?
Santini – Uma primeira pesquisa deu origem a toda a série, e foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores da UFRJ e do Centro de Estudos Estratégicos, com foco na Economia da Saúde, tendo por objetivo identificar a percepção da comunidade científica global sobre o desenvolvimento e a aplicação das novas tecnologias de diagnóstico e tratamento do câncer, sobretudo as baseadas na genômica e na imunologia, em um horizonte de trinta anos. Buscou-se verificar como os pesquisadores, no âmbito internacional, a partir de suas publicações científicas, percebiam as grandes inovações que vêm se apresentando – às vezes, até, com uma expectativa revolucionária nos sistemas de saúde –, no que diz respeito à sua importância e viabilidade, inclusive, econômica. Essa primeira pesquisa mostrou um cenário preocupante: havia boas expectativas quanto a essas inovações, tidas como muito promissoras no diagnóstico e tratamento do câncer, mas a questão do acesso seria extremamente desafiadora, em nível global. Não só o custo delas as tornariam praticamente inacessíveis para a maioria das pessoas, como também a disponibilidade de conhecimento e de recursos para desenvolvê-las. Com base nesses resultados, resolvemos estudar o impacto dessas inovações no sistema de saúde do Brasil, levando em conta, exatamente o compromisso do nosso sistema com cobertura universal e a integralidade. Buscamos investigar isso segundo duas óticas principalmente: primeiro, a dos médicos – para isso, reunimos, antes, representantes das sociedades médicas da área de Oncologia e fizemos uma investigação inicial com esses dirigentes – e, depois, com um grupo de pessoas e entidades envolvidas com a atenção oncológica, desde usuários até entidades representantes de pacientes. Com isso, formou-se um conjunto de pesquisas que veio nos dar um panorama do desafio que é a incorporação de inovações tecnológicas no sistema único de saúde.
A comunicação sobre esses recursos [tecnológicos] é oportunista – a mídia, inclusive, disputa as oportunidades de divulgação de pesquisas ainda em bancada –, dando a entender que seu uso está próximo, embora sequer existam ainda, em qualquer lugar do mundo (Luiz Santini)
Como os respondentes especificaram as principais dificuldades de acesso a diagnóstico e tratamento do câncer?
Temporão – O resultado é muito interessante: no caso do SUS, as três principais dificuldades apontadas pela ordem foram: baixa capacidade da atenção primária em detectar precocemente ou fazer a suspeição diagnóstica; oferta insuficiente de serviços de diagnóstico; e, em terceiro, a escassez de recursos financeiros, de profissionais e de tecnologias. Já em relação ao setor privado, o primeiro ponto que os médicos destacaram, quanto à dificuldade de acesso, foi a baixa cobertura dos planos de saúde para o tratamento. Em segundo, a baixa capacidade de detecção precoce e suspeição diagnóstica na atenção básica – o primeiro critério apontado em relação ao SUS. E o terceiro tópico apontado pelo setor privado foi a inadequação de fluxos e referências, certa desorganização do setor em prover uma continuidade do cuidado da suspeição diagnóstica ao tratamento subsequente. Quando perguntamos aos médicos como viam uma possível situação do SUS daqui a trinta anos, persistiu a dicotomia – pessimismo em relação ao SUS e otimismo, proporcionalmente, em relação ao setor privado. Já quanto à percepção deles sobre as terapias mais promissoras – para compararmos ao que os pesquisadores internacionais apontaram –, houve uma grande sintonia, os resultados foram muito homogêneos: para tratamento, indicaram terapias com anticorpos, terapia celular e edição genômica; no caso de diagnóstico, biópsia líquida, imagem molecular, vacinas terapêuticas e terapias com RNA, ou seja, um conjunto de tecnologias do futuro, muitas delas ainda não disponíveis, em fase de desenvolvimento. Houve visões muito próximas entre os pesquisadores em nível global e os médicos brasileiros.
Santini – É importante chamar atenção para um ponto observado pelos médicos tanto em relação ao setor privado quanto em relação ao SUS, apesar das diferenças de expectativas em cada um desses setores: a segmentação da oferta de serviços, a falta de uma estrutura organizada para facilitar o fluxo do paciente dentro do sistema, o que se chama em alguns lugares de navegação do paciente, isto é, como a pessoa se encaminha, a partir do momento em que tem uma suspeita ou um diagnóstico de doença que requer cuidado em curto prazo. A própria legislação brasileira define em relação ao câncer, que, feito o diagnóstico, em até sessenta dias o tratamento precisa ser iniciado – mas isso não acontece. Uma das razões é a fragmentação da oferta de serviço – esse é um elemento central. Gostaria também de chamar atenção para o aspecto das inovações em si. Muitas vezes, como foi dito pelo Temporão, cria-se expectativa em relação a uma inovação – sejam produtos, sejam tecnologias – que sequer está disponível, que está ainda em bancada, em fase de pesquisa. A comunicação sobre esses recursos é oportunista – a mídia, inclusive, disputa as oportunidades de divulgação de pesquisas nessa fase –, dando a entender que seu uso está próximo, embora sequer existam ainda. Com isso, temos no Brasil um acentuado processo de judicialização. O que significa isso? A busca de obtenção de acesso a determinado recurso ou produto, por via judicial, uma vez que não estão disponíveis no sistema de saúde, muitas vezes, por questões econômicas, ou por questões de custo-efetividade, mas, muitas vezes, porque sequer são recursos efetivos em qualquer lugar do mundo.
O modelo que rege a rota de desenvolvimento dos grandes laboratórios farmacêuticos transnacionais está baseado num tripé: grandes gastos em desenvolvimento e inovação, proteção patentária e gastos em publicidade e marketing. Isso significa que os novos produtos chegam ao mercado a um custo fora da realidade... (José Gomes Temporão)
Os potenciais benefícios das tecnologias chegarão, em algum momento, a todos, com equidade? Afinal, o advento das tecnologias aprofunda iniquidades, ou a questão está na forma de se dar acesso a elas?
Temporão – Em relação a essa questão, que é central para o nosso grupo, algumas questões estruturais chamam a atenção. Primeiro, o modelo que rege a rota de desenvolvimento dos grandes laboratórios farmacêuticos transnacionais está baseado num tripé: grandes e intensivos gastos em desenvolvimento e inovação, proteção patentária para as inovações alcançadas – isto é, uma garantia de monopólio no mercado por um período longo; e gastos em publicidade e marketing que, como mostram alguns estudos, são tão expressivos quanto nos outros dois pontos. Isso significa que esses novos produtos chegam ao mercado a um custo fora da realidade suportável pelos países em desenvolvimento e que torna difícil a incorporação pelos países mais ricos. Uma perspectiva de barreira de acesso extremamente preocupante. Digamos que esses produtos cheguem ao Brasil e sejam atestados para comercialização pela Anvisa. Isso não vai querer dizer que a população terá acesso. E tendo-se um número limitado de brasileiros com acesso e muitos demandando, como Santini colocou, teremos imediatamente uma corrida pela judicialização, já que está dito, no artigo 196 da Constituição, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Como fazer frente a isso?
Temporão – Temos uma política de incorporação de tecnologias ainda sendo estruturada – de um lado, a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS], nossa agência reguladora, ou melhor, nosso embrião de agência reguladora, que estabelece o que deve ser ou não incorporado ao SUS; de outro lado, a Agência Nacional de Saúde, que estabelece um rol de procedimentos do setor dos planos e seguros. No entanto, não há qualquer interconexão, harmonia, diálogo nesse processo, o que cria assimetrias, iniquidades. Outra dimensão dessa questão – e isso está na ordem do dia – é a grande vulnerabilidade brasileira em relação à produção de tecnologia, em geral, princípios ativos para medicamentos, testes, equipamentos. A balança comercial setorial, ou seja, a diferença entre tudo o que o Brasil exporta e importa das indústrias da saúde, mostra que importamos mais do que exportamos. Há, portanto, uma dimensão econômica. Mas há também uma dimensão relacionada ao conhecimento. O corte no orçamento de ciência e tecnologia, em pesquisas que seriam fundamentais para melhorar a capacidade nacional de respostas adequadas às demandas de saúde, também nos fragiliza. É, então, uma dupla dependência, econômica e tecnológica, em que o Brasil depende totalmente da importação e das regras estabelecidas pelos grandes produtores. A equação é complexa. É preciso uma política de gestão de incorporação de tecnologias com critérios muito claros, uma política de preços e uma política de Estado, que aumente a capacidade endógena do Brasil de produzir as tecnologias estratégicas para o controle das doenças prevalentes em nosso país.
E o (sub)financiamento do SUS, como entra nessa análise?
Santini – A população brasileira – aí incluídos os políticos, a mídia – se deu conta de que o sistema de saúde do Brasil é subfinanciado. Ainda que exista necessidade de melhoria na gestão e de meios para organizar melhor o sistema de informação – tudo isso é muito importante, faz parte do desafio de incorporação de conhecimento –, uma coisa é indiscutível e reconhecida por todos: o sistema de saúde do Brasil é subfinanciado, corre risco e é extremamente vulnerável por causa disso. Tudo o que já foi conquistado no sistema esbarra, hoje, numa questão central que é o seu subfinanciamento.
É preciso dispor de profissionais capacitados, especialistas de várias áreas, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutrólogos, com boa distribuição pelo território nacional – um desafio gigantesco (José Gomes Temporão)
Um acesso equânime às inovações tecnológicas é questão estritamente de necessidade de recursos? Se não, o que falta a uma política pública para que o acesso seja garantido? De quem ou do que depende a garantia de acesso?
Temporão – Depende de inúmeros fatores, e o Brasil tenta lidar com alguns deles. Tomando o câncer como exemplo, temos uma política nacional que estabelece regras, critérios, padrões de qualidade, o que deve haver em todos os serviços de atenção, o que um centro especializado em diagnóstico e tratamento deve oferecer. É preciso, no entanto, dispor de profissionais capacitados, especialistas de várias áreas, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutrólogos, com boa distribuição pelo território nacional – um desafio gigantesco. É preciso, também, dispor de uma rede integrada e articulada, desde a atenção básica até os demais níveis, na qual o trabalho de prevenção, promoção e detecção precoce seja realizado e, mais uma vez, que essa estrutura esteja disponível em todo o país. É necessário, para isso, haver recursos financeiros – dos quais o país não dispõe. Hoje, não se fala nem em subfinanciamento, mas em desfinanciamento, em perda real de recursos, ao longo dos últimos anos. A garantia de acesso depende também de distribuição de recursos para estados e municípios; de transparência nos gastos públicos, com acompanhamento pela sociedade. E depende, por fim, de uma macrogovernança, de um modelo de gestão que garanta que os recursos sejam utilizados da maneira mais eficiente possível. Nem todas essas dimensões estão sob a governabilidade do Ministério da Saúde, dos secretários estaduais ou municipais. Muitas dependem do Legislativo, outras, da estrutura altamente regressiva dos impostos. O gasto público em saúde no Brasil é de apenas 45% do gasto total. A outra metade é de gasto privado, das empresas e das famílias, por desembolso direto, para pagar por medicamentos e procedimentos – o que impacta aqueles de renda mais baixa.
O tratamento para doença de Hodgkin [tipo de câncer hematológico] está perfeitamente disponível no Sistema Único de Saúde, no entanto, as pessoas acabam não tendo acesso, por falta de gestão do atendimento (Luiz Santini)
Santini – Assim como não existe uma bala mágica para tratar do câncer, ou seja, uma única droga para resolver o problema, também não existe uma única medida que vá equacionar a questão do acesso. Há, no entanto, um conjunto de medidas que podem ser tomadas para ir aperfeiçoando o sistema – cuja legislação no país é até bastante razoável, embora com implementação muito deficiente. Alguns exemplos: o câncer hematológico infantil ou infanto-juvenil é a primeira causa de morte na infância no Brasil – excluindo-se os acidentes e violência –, um problema de saúde pública. O que acontece? De modo geral, a rede de atenção do Sistema Único de Saúde não está preparada para reconhecer a doença – leva-se muito tempo para fazer o diagnóstico, e, feito o diagnóstico, o sistema não está preparado para uma navegação adequada por parte do paciente. As pessoas perdem enorme tempo sendo encaminhadas de um lado para o outro, sem que o próprio médico que faz o atendimento lá na base consiga determinar o caminho que ela deve seguir. Isso nada tem a ver com disponibilidade de recursos para tratamento. O tratamento para doença de Hodgkin [tipo de câncer hematológico] está perfeitamente disponível no Sistema Único de Saúde, no entanto, as pessoas acabam não tendo acesso, por falta de gestão do atendimento. Chamo atenção para isso porque, quando se fala em complexidade, é preciso lembrar também que uma série de medidas podem ser tomadas, mas não são, por dificuldade até de conhecimento de médicos e gestores. Fizemos uma experiência no Inca, em parceria com o Instituto Desiderata, em que criamos um flash track, uma linha rápida de rastreamento, com capacitação do pessoal de atenção básica em algumas áreas do município do Rio de Janeiro, o que aumentou enormemente a qualidade do diagnóstico e reduziu o tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento. Ou seja, há medidas que podem transformar a realidade atual, apenas com uma reorganização da sistemática do atendimento.
É possível pensar no desenvolvimento de exames laboratoriais em que, com uma gota de sangue, se possa diagnosticar ou verificar propensão a determinado tipo de neoplasia (Temporão)
Quando se fala em novas tecnologias, acabamos nos remetendo ao atendimento de alta complexidade e até a uma elitização da atenção. As tecnologias, entendidas como inovação, no entanto, podem ter papel relevante também na melhoria da atenção básica, no que diz respeito a modernização de procedimentos, adequação da atenção a determinados perfis de pacientes, entre outras funções...
Temporão – Sem dúvida, algumas dessas potenciais tecnologias futuras poderão ser incorporadas ao arsenal da atenção básica. Nossa pesquisa mostra a relevância desse nível de atenção, tanto na visão dos médicos, quanto na visão do público mais geral – que identificamos em parceria com o movimento Todos Juntos contra o Câncer, em que se dialoga com pacientes, cuidadores, gestores, indústrias da saúde. Ao serem perguntados sobre o principal obstáculo ao acesso a diagnóstico e tratamento, aparece a atenção primária. Então, é preciso aumentar a capacidade de detectar precocemente as neoplasias, pela análise de fatores de risco – e é fundamental o vínculo das famílias e uma equipe de saúde da família que as acompanhe de forma permanente, identificando um tabagista, uma pessoa com sobrepeso etc. Tende-se a olhar para as tecnologias como algo inatingível, que só estará disponível em centros altamente especializados. No entanto, é possível pensar no desenvolvimento, por exemplo, de exames laboratoriais em que, com uma gota de sangue, se possa diagnosticar ou verificar propensão a determinado tipo de neoplasia. Mas é preciso destacar, ao mesmo tempo, que, se isso não for acompanhado de uma grande ênfase em políticas de promoção e prevenção da saúde, vamos continuar correndo atrás dos problemas, sem resolvê-los. Temos algumas questões estruturais, em que a Estratégia de Saúde da Família está perdendo potência para fazer frente a isso. A rotatividade de médicos é um exemplo. Os municípios estão contratando organizações sociais para realizar o serviço de saúde da família e, a toda hora, trocam-se os médicos, os enfermeiros. Repensar uma atenção primária de alta qualidade, clínica e epidemiológica é fundamental para que novas tecnologias sejam adequadamente incorporadas também.
Temos desafios de grande complexidade do ponto de vista tecnológico, mas o modelo de prática também requer inovação (Luiz Santini)
Santini – Estávamos conversando, Temporão e eu, com colegas oftalmologistas e verificamos que a identificação da primeira causa de doença genética feita no mundo – aliás, por um médico brasileiro que é nome de rua em Copacabana, Hilário de Gouveia (1843 -1923) – se deu pela observação de duas irmãs gêmeas, ambas com tumor ocular. Dou esse exemplo para enfatizar o aspecto da clínica, que Temporão mencionou. A rotatividade de médicos dificulta o conhecimento clínico específico e a correlação clínica com a questão familiar, ambiental. Retomar a atenção básica incluindo novas dimensões de epidemiologia, informação, capacitação e relação entre as equipes e a comunidade é muito importante. Outro elemento importante são as tecnologias de informação e comunicação. É impossível prescindir disso, hoje. É fundamental o desenvolvimento de tecnologias voltadas a que as pessoas tenham acesso a um sistema de informações adequado, geradas a partir de uma base de dados alimentada pelo processo de atendimento. Então, temos desafios de grande complexidade do ponto de vista tecnológico, mas o modelo de prática também requer inovação.
É possível apontar o que precisa melhorar, fazendo-se uma crítica construtiva ao SUS...
Santini – Toda essa complexidade traz uma necessidade de se repensar o SUS, mas a partir de suas conquistas. É importante destacar que nessa discussão parece estarmos falando de um sistema falido, mas é o contrário! Só podemos fazer essas discussões todas porque estamos tratando de um sistema que teve êxito. Tudo isso é resultado de um êxito, não resultado de um fracasso. Os desafios para o futuro só se colocam porque chegamos até aqui.
Qual o papel do Complexo Econômico-Industrial da Saúde na garantia de independência e soberania para disponibilizar esses recursos tecnológicos no país, bem como para se entender a saúde como motor do desenvolvimento?
Temporão – Há um certo senso comum, em termos da sociedade brasileira e da burocracia do Estado, de que saúde é gasto, de que é preciso resolver problemas de ineficiência, discutir com o Ministério do Planejamento ou da Fazenda... Quando eu era ministro, recursos para a Saúde era sempre algo muito complicado. Falta uma visão mais aprofundada sobre as dimensões que a saúde abarca. Saúde é fundamental para a melhoria das condições de vida da população, mas tem também uma dinâmica econômica própria. Há, hoje, duas indústrias que estão na fronteira do conhecimento: a indústria da guerra e a indústria da saúde. Biotecnologia, química fina, microeletrônica, inteligência artificial, novos materiais, genômica, 30% de tudo o que se investe em pesquisa e desenvolvimento no mundo estão na área da Saúde. A Saúde, no Brasil, corresponde a 10% do Produto Interno Bruto. Se eu tenho um PIB de R$ 6 trilhões, são R$ 600 bilhões, pelo menos, em tudo o que envolve saúde. É uma das áreas que mais emprega profissionais de média e alta qualificação. Portanto, vemos o SUS como fundamental para o desenvolvimento do país e, dentro do SUS, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como fundamental para garantir o acesso às tecnologias e reduzir a dependência tecnológica externa. E é possível fazer isso por meio de política de Estado de longo prazo.
Em 2020, não tínhamos acesso a respiradores, a equipamentos de proteção individual, a testes e a insumos farmacêuticos. Por quê? Porque compramos tudo de fora. É razoável ter toda essa dependência? Definitivamente, não (Temporão)
Noventa por cento dos 300 milhões de doses de vacinas aplicadas na população vêm do SUS, têm origem pública; 30% do mercado farmacêutico brasileiro são SUS; 50% do mercado de reagentes para diagnóstico e do mercado de equipamentos para diagnóstico e tratamento, também têm origem pública. Com a pandemia, novas modalidades na legislação de compras pelo Estado, como a Encomenda Tecnológica, ganham uma relevância muito grande. Foi, por exemplo, o que a Fiocruz fez para incorporar a tecnologia da vacina contra a Covid-19. São parcerias que permitem internalizar todo o processo de produção, do princípio ativo ao produto final. Já fizemos isso em medicamentos para doença mental, doenças reumatológicas, doenças crônicas, transplantes de órgãos, entre outros. Em março-abril de 2020, como diz Carlos Gadelha, o Brasil ficou de joelhos. Não tínhamos acesso a respiradores, a equipamentos de proteção individual, a testes e a insumos farmacêuticos. Por quê? Porque compramos tudo de fora, da Índia, da China, da Europa e América do Norte. É razoável ter toda essa dependência? Definitivamente, não. É por ignorar essa dimensão econômica, essa dimensão do desenvolvimento, que o Brasil, até 2007, nunca havia pensado em uma política voltada especificamente para a redução dessa dependência externa no campo das tecnologias de saúde.
É importante destacar que nessa discussão parece estarmos falando de um sistema falido, mas é o contrário! Só podemos fazer essas discussões todas porque estamos tratando de um sistema que teve êxito (Santini)
De que forma os achados dos estudos que vêm realizando podem contribuir para a melhoria da atenção ao câncer – e da atenção à saúde – no país? Quais são os próximos passos?
Santini – Nossa expectativa é contribuir para uma discussão qualificada sobre o problema do acesso, que preocupa os usuários e os profissionais. Outro objetivo é identificar como o problema impacta o serviço e como, a partir do conhecimento gerado, se podem realizar intervenções, buscando-se melhorias no processo. Temos substratos para interferir. A próxima etapa está ligada a um aprofundamento da discussão, com alguns interlocutores, no setor público e no setor privado, compartilhando conhecimento por meio de publicações em veículos científicos e outros, e levar a discussão à sociedade por mecanismos como seminários etc. Buscamos, ainda, nos mantermos alinhados com os projetos de pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, garantindo que nossa investigação contribua para o fortalecimento desses estudos.
Temporão – Estamos dando continuidade à nossa linha de pesquisa, em parceria com o Observatório do Câncer, do movimento Todos Juntos Contra o Câncer, com a realização de um estudo sobre a incidência da mortalidade e dos anos de vida perdidos por câncer, no país, entre 2010 e 2019. Nós nos inspiramos em um trabalho publicado nos EUA, que fez essa avaliação do ponto de vista do impacto global, de modo a termos uma ideia de como evoluiu a mortalidade pelos principais tipos de câncer no país nesse período. Devemos também avançar na discussão sobre o futuro das tecnologias, no que diz respeito à Medicina de Precisão, ou Medicina Personalizada, que vem a ser a customização de um tratamento médico, com base na capacidade de classificar pessoas em subpopulações com suas especificidades, do ponto de vista de resposta a tratamentos e de desenvolvimento de determinada neoplasia. É uma questão que vem ganhando muito espaço no debate, e estamos trabalhando na elaboração de um breve documento preliminar, que orientará webinários com especialistas, para aprofundarmos a discussão e tentarmos responder a seguinte pergunta: o Brasil está preparado para o desafio da incorporação da medicina de precisão, que está vanguarda do futuro do tratamento de câncer e doenças crônicas?
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