Desafios e propostas rumo à soberania nacional e à garantia de direitos
Acesso, direitos, soberania nacional e participação da sociedade na definição de suas necessidades foram alguns dos conceitos que pautaram as falas dos integrantes da mesa Panorama atual das políticas de assistência farmacêutica, de vigilância em saúde e de ciência, tecnologia e inovação em saúde, realizada durante o 9º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica, em 15/9/2022. Participaram da mesa Norberto Rech Bonetti, professor do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de Santa Catarina; Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz; Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz); e Maria Conceição Silva, conselheira no segmento de usuários do Conselho Nacional de Saúde.
Norberto Rech Bonnetti abordou o cenário da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), aprovada em 2004, pela Resolução nº 338, e que, conforme mencionou, foi a primeira política formulada no âmbito do controle social do sistema público de saúde. Ele destacou o aspecto norteador da PNAF, definidora de outras políticas setoriais de saúde. “A política de medicamentos não define a assistência farmacêutica, e sim o contrário”, observou. “É uma política que permeia outras, mas não é definida por elas”.
O professor lembrou que a formulação da PNAF foi possível por conta “de uma determinada estrutura de governo e as forças políticas do momento”, que levaram à criação da Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos e de seu Departamento de Assistência Farmacêutica, do qual foi coordenador. Para Norberto Rech, a Secretaria foi “uma grande porta para fora e, ao mesmo tempo, um grande lócus de articulação entre produção de medicamentos, desenvolvimento tecnológico, informação, vigilância sanitária e vigilância em saúde”.
Conforme destacou, a PNAF “permeou” iniciativas como a Política de Desenvolvimento Produtivo – lançada em 2008, reunindo medidas voltadas ao fortalecimento da economia do país, buscando aumentar a produtividade e competitividade da indústria brasileira, com reflexos positivos para a sociedade; a potencialização, em 2009, do Complexo Econômico-Industrial da Saúde como instrumento estratégico da política industrial; o uso do poder de compra do Estado para aquisição de insumos e tecnologia, como observado em 2014; e a formalização, em 2018, da Política Nacional de Vigilância em Saúde. “Houve, então permeações importantes que levaram a políticas públicas setoriais nas quais o olhar da Saúde foi considerado”.
Norberto Rech, no entanto, chamou atenção para algumas “agendas inconclusas”, como as salvaguardas dos acordos internacionais sobre patentes, dos quais o Brasil é signatário. “Não é possível que continuemos com grandes vulnerabilidades no Sistema Único de Saúde e não adotemos licenças compulsórias para produtos cujo acesso é negado à população e cuja legitimidade está definida internacionalmente”, considerou, defendendo também a revogação da Emenda Constitucional 95, de 2016, que congela os gastos em saúde por vinte anos e que “quebrou o contrato com a sociedade brasileira de financiamento do SUS”. Em um país em “absoluta transição demográfica”, alertou, com mais pessoas envelhecendo e mais custos para o SUS, a perspectiva é chegarmos a 2036 com cerca de 50% do financiamento que tínhamos em 2016. “Este é um ponto importante que deve estar presente no processo de mobilização social”.
O conceito de saúde única, no contexto da vigilância em saúde foi abordado por Rivaldo Venâncio, que lembrou que a saúde humana está relacionada à saúde animal e à saúde ambiental. “A vigilância em saúde precisa ser olhada como um todo nessa interseção. Para além do vírus, da bactéria, de qualquer micro-organismo causador das doenças, existe um ambiente que influencia o processo saúde-doença”, destacou, apontando que cerca de 60% das doenças infecciosas e zoonoses, assim como a emergência de novos patógenos, têm origem, de alguma forma, na saúde animal. “Pela concepção de saúde única, vamos entender que, para termos uma saúde humana adequada, é importante olharmos para a saúde animal e para a saúde do ambiente. Conservação do meio ambiente, coleta de resíduos sólidos, fornecimento de água, emprego, desemprego, tudo tem a ver com vigilância”.
Rivaldo destacou que a vigilância em saúde tem como sustentáculo uma rede nacional de laboratórios, “um dos grandes patrimônios que o país construiu nas últimas cinco décadas e que tem sido negligenciada”. Conforme contabilizou, a Fiocruz tem espalhados em todo o território nacional cerca de 60 laboratórios de referência, responsáveis pelo diagnóstico de aproximadamente 150 enfermidades transmissíveis, que mostraram “sua potencialidade durante a pandemia de Covid-19”.
O pesquisador trouxe versos do compositor Paulinho da Viola – “quando penso no futuro, não esqueço meu passado” – para abordar os próximos passos no enfrentamento das emergências sanitárias, no que diz respeito à vigilância para detecção precoce de cenários e preparação de respostas. “É importante olharmos para as emergências sanitárias que já vivenciamos”, convidou, citando HIV/Aids, cólera, tracoma, urbanização da leishmaniose visceral, febre amarela silvestre, dengue, zika e chicungunya, entre outras. “Temos que olhar onde acertamos e erramos em cada uma dessas emergências para termos uma vigilância mais firme, mas consolidada e sem cometer os mesmos erros no futuro”.
Carlos Gadelha abriu sua exposição mencionando a Carta da Fiocruz aos Candidatos à presidência e à Sociedade, que “alia desenvolvimento sustentável, equidade, saúde e democracia”, e defendeu “o fortalecimento do SUS inserido em um novo padrão de desenvolvimento de reconstrução da economia nacional”.
Conforme afirmou o pesquisador, “quem não tem ciência, tecnologia, inovação, capacidade produtiva, industrial e de serviços não tem SUS e não tem acesso universal”. Para Gadelha, esses elementos devem ser vistos de forma integrada para se construir um país pautado, ao mesmo tempo, pela equidade e pelo dinamismo econômico. “Precisamos crescer, gerar renda e tirar a população da fome e da miséria”.
A crise de abastecimento que se configurou durante a pandemia de Covid-19 é, para Gadelha, uma crise de acesso e de distribuição, mas fundamentalmente de capacidade econômica e industrial de produção no país. “Aprendemos com a Covid o alto preço de não termos uma economia nacional forte no campo da saúde”.
O pesquisador destacou a pertinência de uma visão de política pública que integra base produtiva, de inovação e acesso e que norteou a atuação da Fiocruz e do Instituto Butantan na produção de vacinas contra a Covid-19. “Podemos chamar esses arranjos de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), de encomenda tecnológica, de processo de transferência de tecnologia, o nome não importa. Fiocruz e Butantan, seguindo a lógica que articula acesso universal e base tecnológica e produtiva nacional, foram responsáveis por termos salvo de 200 mil a 300 mil vidas, com a produção nacional de vacinas. Não se pode fazer avaliação de política pública sem olhar para isso”.
Para Gadelha, o uso do poder de compra do Estado no modelo das PDPs ou das encomendas tecnológicas leva o mercado nacional a ser tratado com respeito. “Em vez de o SUS ser apenas um mercado consumidor de produtos, monta-se um arranjo institucional em que, para chegarem ao SUS, é preciso que tragam tecnologia, desenvolvimento, renda e emprego para o país. Esse é o modelo inovador adotado. Podemos ver os problemas que houve até aqui e avançar, mas não destruir o que foi construído”.
O pesquisador citou o economista Celso Furtado, para quem o processo de inovação é também processo de mudança social, voltado a atender necessidades humanas. “Estamos alertando mais uma vez que, no contexto da quarta revolução tecnológica, teremos uma sociedade ultratecnificada, ultrainformatizada, ultraconectada, com a população sendo totalmente alijada”, disse, lembrando que a big tech Google está investindo pesadamente em atenção básica. “Se a vacina era bem público, hoje envolve grandes competidores. Não há mais área livre desse sistema econômico e produtivo. E a gente só combate, só orienta o investimento com um Estado forte, com servidores fortes, qualificados para acompanhar o novo”, defendeu. “O mundo da economia e o mundo da ciência e tecnologia e o mundo das transformações políticas, sociais e ambientais estão conectados. A política social tem que ser o capítulo 1 de um projeto de desenvolvimento”.
Afirmando que a saúde pode ser “claramente um vetor de desenvolvimento para o país, gerador de equidade, democracia e dinamismo na inovação, na ciência e na tecnologia”, Gadelha apresentou o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como um mega sistema econômico e produtivo, que gera 10% do PIB, 9 milhões de empregos diretos, 25 milhões de empregos indiretos, participação na pesquisa em torno de 35% e, assim, com potencial de levar o país à quarta revolução tecnológica. Ele mostrou também, ao mesmo tempo, a “situação dramática de nosso déficit comercial”, apontando que, só no período de pandemia, as importações aumentaram 5 bilhões de dólares. “Isso é a cara da dependência tecnológica”.
No campo das vacinas, observou, a concentração da produção mostrou-se associada a forte concentração do acesso. “No auge da pandemia, vimos países com mais de 70% da população com a primeira dose e países como o Haiti, com 0,3%. Felizmente, o Brasil faz parte do mundo da produção – embora tenha que avançar para o mundo da inovação, para reduzir, quiçá eliminar, a defasagem do acesso”.
Para Maria Conceição Silva, conselheira do CNS, falar de política pública de saúde é rememorar a 8ª Conferência, realizada em 1986, sob o lema Democracia é saúde e saúde é democracia – que “reflete bem o momento que estamos vivendo” –, a primeira conferência aberta à participação popular. “O controle social joga um papel decisivo no avanço da democracia e também na construção das políticas de participação social”, considerou. “É fundamental que políticas sociais sejam definidas pelas necessidades de saúde da população e dos segmentos sociais mais vulneráveis e carentes”.
Maria Conceição lembrou que a participação social está prevista na Lei 8.142/90 (Lei Orgânica da Saúde), pela qual os conselhos e conferências de Saúde são instâncias permanentes que integram o SUS, permitindo que o povo fale e expresse seus interesses, acompanhando e fiscalizando as ações do Estado. “A democracia participativa nos conselhos de saúde permite que o povo fale em seu próprio nome”, disse, destacando o papel do controle social nas políticas públicas de saúde e de ciência, tecnologia e assistência farmacêutica. “A sociedade avaliando e entendendo a situação de saúde desde o seu território, para definição dessas políticas”, considerou.
Leia sobre a mesa de abertura do 9º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica,
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Leia a íntegra da 'Carta do Rio de Janeiro'