A economia a serviço da vida – por Carlos Gadelha
O artigo abaixo, do coordenador do CEE-Fiocruz, Carlos Gadelha, foi publicado no jornal O Globo on-line, em 7/2/2022. No texto, Gadelha defende que economia e saúde estão intrinsecamente ligadas. “Vida pode gerar renda, emprego, investimento”, escreve o pesquisador.
Nem economia, nem vida, nem Estado. A relação entre economia e sociedade tem sido tratada de modo muito limitado no debate nacional e internacional. Na Fiocruz, em um programa de pesquisa desenvolvido há duas décadas, refutamos a polarização binária entre economia e vida que, na pandemia da Covid-19, mostra a sua face perversa. Simultaneamente, vivemos em um País que não cresce, que possui um Estado desestruturado e em que a violência social se manifesta contra pobres, pretos e excluídos dos mínimos direitos de cidadania, como revela a barbárie cometida contra o imigrante negro e pobre congolês.
Na saúde, enquanto ficam evidentes para o mundo os frutos das tecnologias das vacinas, vemos a transmissão nos transportes públicos, as casas abarrotadas em espaços sem condições mínimas de saúde, a fome de 20 milhões de pessoas e o desemprego e subemprego que atingem mais de 30 milhões de pessoas. A expectativa de vida varia em mais de 20 anos dependendo das condições sociais. A Constituição e os direitos elementares à vida são rasgados a cada dia.
Em meio a este drama nacional e global, é possível superar a falsa dicotomia entre economia e vida social e planetária. Com a Covid-19 atualizamos as análises do déficit comercial em saúde, que avisamos, há décadas, deixaria o SUS de joelhos frente a qualquer emergência de saúde pública. Em 2021 batemos o recorde histórico da dependência de importações no Complexo da Saúde, atingindo US$ 20 bilhões. Recorde na economia e na ameaça à vida! A saúde passa a liderar o déficit comercial do país se somarmos os produtos eletrônicos. É como se um orçamento inteiro do Ministério da Saúde fosse gasto com importações sem gerar um emprego, uma renda, um incentivo para um empreendimento local e ainda sob a chantagem da disputa mercantilista global pelos produtos da saúde que sempre deixam a vida “a ver navios”. Foram 630 mil mortes pela Covid-19, mas não podemos deixar de olhar os 625 mil novos casos de câncer por ano, de pessoas desassistidas, no contexto de uma tragédia sanitária em meio a uma pandemia.
Tendo a vida social e no planeta como finalidade última da economia, a Saúde oferece a possibilidade de uma saída estrutural em torno de um novo projeto de desenvolvimento. A saúde está para o século XXI como estiveram aço, o petróleo e o automóvel para o século XX, permitindo um desenvolvimento que atenda às pessoas e que seja sustentável. Está na hora de mudar o triste paradigma dominante. Vida pode gerar renda, emprego, investimento e um novo padrão que, em vez de ser capturado por interesses espúrios de um protecionismo sem resultados, sustente um pacto político, social e democrático em defesa da economia nacional, das pessoas e do planeta. É possível fazer. A experiência da Fiocruz oferece evidências de que a mesma ousadia adotada para encomendar uma vacina que não existia pode ser ampliada para a superação da cisão entre economia e sociedade; uma prova em forma de doses, de vacina e de compromisso com a economia, a inovação e a vida!
* Economista, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho.
Página do artigo de Carlos Gadelha em O Globo on-line (Reprodução)