Webinário apresenta iniciativas brasileiras de uso de tecnologia digital voltada à vigilância epidemiológica
Um panorama de iniciativas brasileiras de uso de tecnologia digital voltada à vigilância epidemiológica compôs o primeiro webinário da série Transformação digital na saúde pública, realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, em 23 de julho de 2024. Integração de bases de dados, análise de cenários em tempo real e antecipação de emergências em saúde foram alguns dos aspectos abordados. A série prossegue com periodicidade bimestral e os próximos eventos podem ser acompanhados pelas redes do CEE-Fiocruz.
Sob o tema A vigilância epidemiológica digital no SUS, o primeiro webinário trouxe ao público o projeto ÆSOP, sistema de alerta para surtos com potencial pandêmico, apresentado pelo pesquisador da Fiocruz Bahia Pablo Ramos, doutor em Modelagem Computacional, vice-coordenador do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz); o sistema Infodengue, de alerta para arboviroses, criado entre 2014 e 2015 e alcançando amplitude nacional em 2021, fornecendo boletins semanais com análises de casos de dengue, zika e chikungunya, como mostrou a pesquisadora Claudia Codeço, do Programa de Computação Científica (Procc/Fiocruz); e o recém-criado Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica (Cnie), da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde (SVSA/MS), apresentado por sua coordenadora, Patricia Bartholomay Oliveira. O evento teve mediação do professor e pesquisador em Saúde Pública de Precisão Manoel Barral, da Fiocruz Bahia e CEE-Fiocruz, e abertura do secretário executivo do CEE, Marco Nascimento.
“Estamos precisando nos debruçar sobre os dilemas que a tecnologia nos traz. Esse é um tema crucial no tempo atual”, apontou Marco. “Sabemos que é um processo irreversível, que, ao mesmo tempo, nos traz muitas oportunidades de melhorar a oferta de saúde e também muitas questões, de cunho político, produtivo”, observou.
Marco citou artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, com o título Por uma saúde pública de precisão, assinado por Manoel Barral e Carlos Gadelha – secretário de Ciência, tecnologia, inovação e Complexo da Saúde, do Ministério da Saúde (Sectics/MS) e coordenador científico do CEE-Fiocruz, que trata do uso de dados digitais e seu processamento e análise voltados ao cuidado de grupos com características bem definidas, genéticas, sociais e/ou locais, de modo a oferecer um melhor cuidado à saúde. “Temos que ter, a todo momento, a clareza quanto a esse processo de absorção de tecnologias transposto para uma realidade brasileira e, sempre que possível, criando tecnologias aqui”, ressaltou.
Conforme alertou Marco, é importante que não se associe o universo da atenção primária à saúde a baixa tecnologia. Ao contrário: “A vigilância epidemiológica e a atenção primária são hoje indissociáveis de grandes bases de dados, de capacidade de processamento muito alta”, observou, lembrando que o tema em discussão relaciona-se ao subsistema de informação e conectividade no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) – um dos quatro subsistemas que compõem o Complexo, ao lado dos de base química e biotecnológica, de base mecânica eletrônica e de materiais e serviços.
Manoel Barral enfatizou que, hoje, a digitalização tem impacto sobre todas as áreas, não só na Saúde. Ele observou que, ao falarmos em saúde pública de precisão, não nos referimos apenas ao aspecto digital, uma vez que a precisão assume várias facetas, mas este é o que mais nos mobiliza, tendo em vista a enorme quantidade de dados em saúde que o Brasil produz, dadas as dimensões do nosso Sistema Único de Saúde, e que podem ser usados em benefício da população.
“Certamente, é preciso tomar bastante cuidado com aspectos de ética, de segurança, que teremos que aprofundar nas discussões", ressalvou. “Quando a OMS lançou sua Estratégia de Saúde Digital, chamou atenção quanto a serem 3 bilhões de pessoas beneficiadas por esse processo, que deve funcionar como um sistema de inclusão. Temos que ter cuidado para que uma implantação inadequada leve, na verdade, a um aumento da exclusão e que segmentos da população fiquem alheios a esses avanços”, alertou Barral.
O pesquisador mencionou também o aspecto da literacia digital – capacidade para interagir com tecnologias como computadores, smartphones, aplicativos, redes e as mensagens ali veiculadas –, a ser garantida não somente para os profissionais de saúde, como para toda a população, potencialmente beneficiária desse progresso. "Não à toa, o Ministério da Saúde, conduzido pela ministra Nísia Trindade Lima, criou a secretaria de Saúde Digital, um marco nesse nosso processo de estabelecimento da importância da ciência digital no campo da saúde, na perspectiva da saúde pública”.
Identificação de patógenos e antecipação de formas graves de doenças respiratórias
Para explicar como funciona e qual a importância do Sistema de Alerta Precoce para Surtos com Potencial Pandêmico (ÆSOP), o pesquisador Pablo Ramos, da Fiocruz Bahia, iniciou sua apresentação trazendo um histórico de pandemias que já ocorreram no mundo, destacando a de Covid-19. Como observou, foi durante a emergência sanitária do coronavírus que o mundo percebeu a importância de se desenvolverem programas de vigilância que ofereçam suporte às autoridades sanitárias em casos de surgimento de doenças com grande potencial pandêmico. Pablo lembrou que, historicamente, as doenças infecciosas causaram grandes prejuízos à humanidade e, em cenários assim, “como vimos durante a última pandemia, as ações de vigilância são fundamentais para antecipar emergências de saúde pública”.
Conheça mais sobre o projeto ÆSOP
O pesquisador explicou que muitos países, como o Brasil, apresentam condições, ambientais, comportamentais e geográficas, propícias a surtos de doenças infecciosas. O Brasil, entretanto, por seu sistema de saúde universal, apresenta vantagens em relação àqueles com sistema fragmentado, com mais dificuldade na realização de estudos. “Temos diversos sistemas no Brasil, hoje, com destaque para o Sistema de Informação e Saúde para Atenção Básica (Sisab), que reúne dados importantes da situação sanitária e de saúde da população e faz interface com a Rede Nacional de Dados em Saúde, na qual se espera que tudo se interoperacionalize e que os sistemas conversem”, destacou.
Como enfatizou Pablo, o objetivo de se contar com programas de vigilância é justamente buscar antecipar a emergência de surtos que podem se tornar epidemias ou mesmo pandemias e entender sobre as doenças e o seu espalhamento. Realizado em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o ÆSOP, relatou, vem atuando na integração das diferentes fontes de dados, incluindo dados de clima, socioeconômicos, de mobilidade e, mesmo, de venda de medicamentos em farmácias, além de monitorar redes sociais e sites de busca como o Google. (ver estudo aqui).
“Esse monitoramento permite identificar situações que fogem dos limiares esperados para aquele período e para cada região do país. Com isso, é feita uma caracterização molecular [isto é, a geração de informações a respeito das características intrínsecas de determinada espécie e de sua dinâmica populacional] que permite identificar novos vírus ou novos patógenos circulando”, explicou.
De acordo com Pablo, o ÆSOP conta com alta capacidade de identificar os patógenos responsáveis pelo aumento do volume de atendimentos e agravos no sistema de saúde, sendo possível, também, antecipar o surgimento de formas graves de doenças respiratórias. “Olhando para dados da atenção primária, geramos alertas pelo sistema ÆSOP que antecipam em algumas semanas o aumento concomitante das hospitalizações”, completou.
Para o pesquisador, essa é uma demonstração da factibilidade do uso de dados de atenção primária para a realização da vigilância de doenças respiratórias. E, embora o ÆSOP seja implementado a partir da academia, na Fiocruz, há perspectiva de implementação. “O ÆSOP é resultado de inteligência humana coletiva, um projeto que envolve uma parceria muito forte com a UFRJ”. Trata-se, como definiu, de um projeto interdisciplinar, em sintonia com o entendimento de que a vigilância em saúde também deve ser interdisciplinar.
Boletins semanais sobre arboviroses aos municípios brasileiros
Em sua exposição, a pesquisadora Claudia Codeço apresentou o sistema InfoDengue, tecnologia utilizada como alerta para monitoramento de arboviroses. “Com o InfoDengue, qualquer município brasileiro pode fazer uma análise e identificar a situação, a incidência, e o número de casos estimados de determinada arbovirose”, destacou.
Para Claudia Codeço, o InfoDengue representa um importante exemplo de fomento à inovação na vigilância de arboviroses e faz parte da produção de um conjunto de sistemas precoces de alerta – isto é, sistemas em que os dados possam dizer algo sobre o futuro próximo, a partir da situação atual de determinada transmissão de arboviroses –, pensado coletivamente para gerar indicadores úteis à tomada de decisão. “A ideia é que utilizemos os dados disponíveis, de epidemiologia, vetoriais, de clima, que estão diretamente associados à transmissão das doenças, para que possam servir de proxy (intermediários)”, explicou.
Conheça mais sobre o Infodengue
Para se contar com um sistema de alerta precoce, salientou, é preciso enfrentar desafios, que vão desde o tratamento das informações, ao monitoramento dos níveis de transmissão. É necessário fazer correções, calcular estatisticamente a situação epidemiológica do momento e monitorar os níveis do processo de transmissão epidêmico, conforme definiu.
“Quando a informação oficial chega ao sistema, está sempre ligeiramente atrasada. Isso porque, no sistema de notificação, é preciso levar em conta o tempo entre uma pessoa se infectar, ter sintoma, visitar um profissional de saúde e gerar um dado, o que demora”.
O termo que explica esse intervalo entre o início dos sintomas e o registro oficial dos casos é internacionalmente conhecido como nowcasting. “Um dos grandes desafios do InfoDengue é a necessidade de fazer correções, calcular estatisticamente a situação epidemiológica atual e monitorar os níveis do processo de transmissão epidêmico”, definiu.
O InfoDengue, destacou Codeço, é um pipeline de coleta, organização, integração e análise de dados, que gera indicadores da situação epidemiológica da dengue e outras arboviroses em nível municipal. O sistema emite quatro níveis de alerta, identificados por cores – baixa transmissão (verde), atenção (Amarelo), transmissão (laranja) e alta incidência (vermelho). “A ideia é que esse sistema possa identificar os níveis de transmissão e/ou incidência de agravos em todos os municípios brasileiros com as suas diferentes realidades”.
Claudia salientou, ainda, que a experiência ao longo dos anos mostra que sistemas de alerta precoce podem ser implementados facilmente para outros agravos – não apenas para arbroviroses ou doenças respiratórias –, mas que isso depende de uma parceria estável entre os que compõem essa rede de análise e produzem o pipeline. “É fundamental que os indicadores sejam úteis na prática. O sistema de alerta precoce é mais sensível que específico, e deve ser visto como um screaming (rastreador) de situações a serem investigadas. Quanto melhor o dado, melhor o sistema vai ser”, ressaltou.
Inteligência Epidemiológica a serviço do cuidado à saúde
À frente da Coordenação Geral de Inteligência Epidemiológica da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde (SVSA/MS), Patricia Bartolomay apresentou o recém-criado Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica (Cnies), no âmbito da SVSA, para fazer frente a demandas da Secretaria voltadas a prevenção e controle dos eventos de saúde pública; pesquisas e análises da situação da saúde; monitoramento do quadro sanitário do país; e subsídio a tomada de decisões e a formulação de políticas. Nesse sentido, ela destacou a importância da coordenação da qual está à frente e a relevância em se avançar no desenvolvimento de técnicas cada vez mais avançadas de epidemiologia.
O Cnie, explicou, foi criado com o objetivo de ampliar a capacidade de análise epidemiológica, alinhando-se à Política Nacional de vigilância em Saúde e Ambiente, e aprimorar a vigilância de modo a garantir resposta rápida e eficaz a emergências de saúde pública.
Patrícia iniciou sua exposição abordando o termo inteligência epidemiológica, que vem nomeando e direcionando as ações da Secretaria, e para isso apresentou algumas definições: “O termo tecnologia é utilizado para definir os conhecimentos que permitem fabricar objetos e modificar o meio ambiente para satisfazer as necessidades humanas; tecnologia digital consiste nas inovações da era digital, representando “uma revolução no acesso à informação e na forma com a qual interagimos e nos comunicamos”; já vigilância epidemiológica digital é o conjunto de ações que envolvem o meio digital e promovem a detecção e prevenção de doenças e agravos transmissíveis à saúde e seus fatores de risco”.
Ela diferenciou os termos inteligência epidêmica, já utilizado no Brasil e no mundo, em referência à detecção precoce de emergências em saúde, do termo inteligência epidemiológica, que amplia as abordagens e estratégias típicas da vigilância, para acrescentar análises de risco (percepção, concepção, gerenciamento e comunicação) na tomada de decisão, conforme explicou.
“A inteligência epidemiológica faz uso não só de conceitos e métodos epidemiológicos, mas também de modelos estatístico-computacionais avançados, associados a modernas ferramentas de tecnologia da informação e comunicação”, disse.
Voltado a aprimorar o monitoramento e controle de doenças “por meio de uma infraestrutura moderna e integrada”, o Cnie organiza-se em quatro eixos: detecção precoce de emergências – inicialmente, seria seu único objetivo, mas verificou-se a necessidade de ampliar o escopo do trabalho; potencialização das análises epidemiológicas; vigilância genômica; e informação para gestão. “É um projeto que envolve todos os departamentos da Secretaria”, observou Patrícia.
O trabalho do novo centro prevê a integração de bases de dados diversas da Vigilância Epidemiológica; elaboração de modelos preditivos; georreferenciamento de eventos de interesse para a saúde pública; e análises epidemiológicas qualificadas, potencializando as análises das áreas técnicas da SVSA. “O Centro trabalha sempre em parceria com alguma área técnica, para dar suporte ao que for necessário”, enfatizou a coordenadora.
Na página do Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica (CNIE) estão disponíveis diversos painéis de monitoramento voltados a temas como acidentes por animais peçonhentos, atendimentos antirrábicos, coqueluche, difteria, hepatites, meningite, sífilis, tétano acidental, tuberculose, violências e vigilância genômica, entre outros considerados relevantes na saúde pública. Foram lançados recentemente painéis sobre qualidade do ar (VigiAr) e arboviroses, e novos painéis serão gradativamente incluídos.
Conforme relatou Patrícia, o Cnie já atuou em apoio à emergência de arboviroses, na realização de projeto piloto do ÆSOP no Amazonas e em apoio às enchentes no Rio Grande do Sul, entre outras iniciativas. Neste segundo semestre, o Centro trabalhará modelos de nowcast – voltado a fornecer visão instantânea, em tempo real, da situação epidemiológica – e forecast – para antecipação de cenários. “Já foram iniciados processos voltados a casos de síndrome respiratória aguda (Srag), utilizando métodos de nowcast”, informou Patrícia, acrescentando que os estudos se estenderão para outras doenças e agravos, como dengue e Covid-19.
Assista ao webinário vigilância epidemiológica digital no SUS na íntegra.