Webinário aborda a resiliência do SUS, as contribuições da saúde digital e o uso da Ciência de Dados nas políticas públicas
O SUS resiliente, a importância da Ciência de Dados nas políticas de saúde e as contribuições da saúde digital foram temas do webinário Tecnologia, Informação e Resiliência em Saúde Pública, realizado em 1º/10/2024, com transmissão pela VideoSaúde Distribuidora. Esse foi o segundo webinário da série Transformação Digital da Saúde Pública, promovido pelo CEE-Fiocruz – o primeiro foi realizado em julho/2024, com o tema Vigilância epidemiológica digital no SUS.
O evento reuniu os pesquisadores Alessandro Jatobá, coordenador do Projeto ResiliSUS do CEE-Fiocruz; Hidelbrando Rodrigues, coordenador do Laboratório de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas de Universidade Federal do Amazonas; e Luís Velez Lapão, professor em Saúde Digital e coordenador do Laboratório de Sistemas Inteligentes de Apoio à Decisão da Universidade Nova de Lisboa, com mediação da pesquisadora Paula de Castro Nunes, também do ResiliSUS, e abertura do secretário executivo do CEE, Marco Nascimento.
Marco destacou o tema da transformação digital na saúde como fundamental para a gestão do SUS. “A questão dos dados emerge com importância incontornável, e precisamos de estratégias para que a dinâmica desses sistemas seja adequada à saúde pública e não que sirva apenas à acumulação do capital”.
Conforme lembrou, o tema da resiliência é emprestado da área da Física de Materiais, transposto para a Saúde. “É superinteressante quando essas metáforas se encaixam. No caso da Física, trata-se da propriedade de um material se deformar e conseguir retornar à forma anterior cessada a carga sobre ele. No nosso caso, tratamos de como o SUS e outros sistemas são capazes de absorver choques, tensões momentâneas sem quebrarem sob essas tensões”, explicou Marco, observando que tivemos no país uma demonstração clara e violenta desse tipo de fenômeno com a Covid-19. “Foi muito impactante vermos como o sistema se dobrou, mas, no fim das contas – não sem muitos traumas –, resistiu. Então, o uso dessa metáfora no SUS é muito bem-vinda para fortalecer o debate”.
A Ciência de Dados não é um tema acessório, mas a própria substância da saúde pública e coletiva (Marco Nascimento, CEE-Fiocruz)
Também abordada nas exposições do webinário, a Ciência de Dados, utilizada nos processos decisórios dos gestores de saúde no SUS, foi destacada pelo secretário executivo do CEE, não como “um tema acessório”, mas como “a própria substância da saúde pública e coletiva”. Citando a professora Cecília Minayo, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), ele observou que ciência, tecnologia e inovação não constituem a cereja do bolo, sendo, sim, o próprio bolo. “Não conheço definição melhor”.
A resiliência não se refere apenas às emergências de saúde pública, mas também ao cotidiano dos serviços (Paula de Castro Nunes, ResiliSUS/CEE-Fiocruz)
Mediadora do webinário, a pesquisadora Paula de Castro Nunes apresentou a resiliência como “uma habilidade fundamental” dos sistemas de saúde. “A gente entende que o SUS deve ser capaz de sustentar suas funções essenciais, com qualidade do serviço, acesso e resolutividade, e, ao mesmo tempo, se adaptar a eventos extraordinários e inesperados”, explicou. “Então, a resiliência não se refere apenas às emergências de saúde pública, mas também ao cotidiano dos serviços. Até porque, nosso serviço de saúde pública lida com eventos inesperados a todo momento, então, o sistema tem que estar preparado para fazer frente a essas circunstâncias”, disse.
Ter uma definição mais robusta [de resiliência], nos dá oportunidade de antecipar eventos de longo prazo, monitorar ameaças de curto prazo e responder de forma mais ampla a estresses agudos (Alessandro Jatobá, ResiliSUS/CEE-Fiocruz)
“A resiliência é um atributo a ser desenvolvido a partir de habilidades adaptativas, transformadoras, preventivas, contínuas e ininterruptas”, destacou Alessandro Jatobá ao iniciar sua exposição. Ele explicou que ter a definição de resiliência na saúde bem estabelecida tem sido importante para não reduzir o conceito apenas a um atributo acionado unicamente quando se tem uma crise identificada. “Ter uma definição mais robusta, nos dá oportunidade de antecipar eventos de longo prazo, monitorar ameaças de curto prazo e responder de forma mais ampla a estresses agudos”, avaliou.
O pesquisador apresentou, em sua exposição, o projeto CoRes, “um acrônimo para Coeficiente de Resiliência em Saúde”, no qual o projeto ResiliSUS vem trabalhando. Trata-se, como apontou, de uma ferramenta, “um arcabouço”, voltada a operacionalizar o conceito de uma resiliência que se desenvolve de maneira contínua e que favorece a capacidade adaptativa dos sistemas, em especial, do SUS.
Conforme explicou Jatobá, o CoRes foi proposto inicialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2015, como uma forma de construir sistemas resilientes às mudanças climáticas, mas com o surgimento da pandemia de Covid-19, passou a funcionar como um framework de construção de sistemas resilientes em geral. “O CoRes reúne indicadores que são computados e calculados, utilizando machine learning, isto é, modelos de aprendizado de máquina”, completou.
A nova versão do CoRes, disse o pesquisador, reúne dados organizados em seis dimensões – força de trabalho, liderança e governança, financiamento, oferta de serviços, acesso a medicamentos e produtos médicos essenciais e sistemas de informação de saúde – que conformam sistemas resilientes, numa estrutura de códigos importante para análise do comportamento do sistema de saúde frente aos choques cotidianos. “Além disso, o CoRes também pode ser útil para projetar o comportamento do sistema num choque muito disruptivo”, acrescentou.
Jatobá destacou, ainda, que quanto mais específico se é em relação ao que se busca, mais preciso é o CoRes, porque a ferramenta “permite que façamos diversas visualizações especificas, como por exemplo, a relação do Coeficiente de Resiliência em Saúde com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de determinada capital brasileira”, exemplificou.
O coordenador do ResiliSUS lembrou que até bem pouco tempo não havia uma definição consolidada para o termo resiliência em saúde, cujo entendimento estava restrito a resiliência psicológica, no Descritor em Ciências da Saúde (DeCS/MeSH), indexado na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). “Se buscasse por resiliência, a única definição era descrita como a capacidade das pessoas de lidar com seus traumas”, relatou. De modo a fazer frente à invisibilidade do tópico de pesquisa observada pela comunidade acadêmica da saúde coletiva, o ResiliSUS foi responsável pelo desenvolvimento e inserção no DECs, do termo resiliência de sistemas de saúde, após extensa revisão bibliográfica e a partir da experiência com aplicação do conceito.
O uso estratégico da Ciência de Dados pode impulsionar a criação de políticas públicas mais robustas e eficazes (Hildebrando Rodrigues, UFAM)
O Prof. Hidelbrando Rodrigues, coordenador do Laboratório de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas de Universidade Federal do Amazonas, falou sobre as contribuições da Ciência de Dados para a formulação de políticas públicas com foco na resiliência.
Diante do grande volume de informações geradas pela humanidade, Hidelbrando destacou que “o uso estratégico da Ciência de Dados pode impulsionar a criação de políticas públicas mais robustas e eficazes”, capazes de fornecer respostas aos desafios contemporâneos, tais como os desastres ambientais e as pandemias. E, no contexto da resiliência, ele explica que essa área do conhecimento permite “mapear as vulnerabilidades e criar modelos preditivos, contribuindo para as organizações se recuperarem de choques e pressões”, mantendo suas funções essenciais e adaptando-se às mudanças.
Embora o pesquisador pontue que a prática em analisar dados seja antiga, ele explica que a concepção mais moderna da Ciência de Dados como um campo de conhecimento é mais recente. O termo sintetiza uma mudança de paradigma marcado pela necessidade de se trabalhar com um grande volume de dados, utilizando diversas fontes. “Agora o nosso problema não é mais ter acesso aos dados. Se antes nós tínhamos dificuldades em ter acesso a dados, em coletar informações, dados para gerar informações, agora (passa a ser) o que fazer com esse volume tão grande de dados?”
Estatístico de formação, com uma trajetória que inclui mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e pós-doutorado pelo Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT) da Universidade de Aveiro (2023), Hidelbrando sublinha a importância da integração de diferentes dados para a geração de informação qualificada, que sirva de ferramenta para os tomadores de decisão no planejamento de suas ações. De acordo com o pesquisador, isso envolve “empregar bem os recursos e responder na velocidade adequada, porque não responder no tempo certo significa usar mal os recursos, que são escassos”.
As grandes mudanças ambientais que vêm ocorrendo, em sua avaliação, “necessitam de um olhar atento, para que se possa de forma eficiente agir, e na medida do possível, se antecipar”. As previsões precisam “fazer diferença para o cidadão, que paga os seus impostos e precisa ter uma saúde e uma educação de mais qualidade”, explica.
Hidelbrando citou as enchentes no Rio Grande do Sul para ilustrar a importância de ter as ferramentas adequadas para monitorar, se antecipar e mitigar os impactos ambientais: “Quanto custou aos cofres públicos o não investimento? Não fazer planejamento sai caro”, conclui. “Sabemos que as mudanças climáticas estão aí, e nós teremos que enfrentar o novo normal”. Como sublinha, o levantamento de informações qualificadas não deve ser usado para “vender soluções para tragédia”, mas para “resolver de forma eficiente problemas”.
O pesquisador mencionou, ainda, a seca que tem devastado a Amazônia. “Moro numa cidade que tem um posicionamento logístico importante para o país, grande parte da soja que é produzida no Centro-Oeste, sobe para Porto Velho (Rondônia), desce pelo Rio Madeira, e daqui é escoado para a Europa e para a Ásia, só que baixou tanto o calado _ designação dada à profundidade que se encontra o ponto mais baixo da quilha de uma embarcação, em relação à superfície da água _, que estão tendo que de uma forma rápida mexer nas estruturas, gastando milhões e milhões para que as operações não parem”.
Para finalizar, ele destacou a importância do coeficiente CoReS, desenvolvido pelo grupo liderado por Jatobá, ao qual Hidelbrando se integrou recentemente, e que permite avaliar a resiliência do sistema de saúde. “Um termômetro sensacional”, que, diante dos dados coletados, pode contribuir para a gestão da saúde.
O sistema não está preparado para responder ao normal, e essa é a grande dificuldade, quando se vai tentar responder à crise (Luís Lapão, Universidade Nova de Lisboa)
O professor e pesquisador Luís Lapão, coordenador do Laboratório de Sistemas Inteligentes de Apoio a Decisão, da Universidade Nova de Lisboa, iniciou destacando o próprio título que deu à sua apresentação – Sem transformação digital, não há saúde pública residente a crises – e apresentou os projetos desenvolvidos no laboratório que coordena. Integrante do Comitê Consultivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), com foco na informação, o professor relatou que o grupo está produzindo o documento Preparação 2.0 (Preparedness 2.0), voltado a preparar a Europa para novos eventos extremos em saúde. “Não necessariamente um vírus ou uma pandemia”, observou. “Temos trabalhado há dois anos para criar, de fato, infraestruturas, e uma das áreas a que tenho me dedicado refere-se à informação”.
O professor apontou a resiliência como a capacidade de atores, instituições e populações se prepararem e responderem a crises, manterem as funções principais no momento extremo e de se reorganizarem, se necessário. “É preciso perceber o limite, até onde posso ir, até onde o sistema de saúde pode ir e, para isso, temos que saber muito sobre esse sistema”, observou, alertando, no entanto, que o sistema vem falhando, mesmo sem haver crise. “Portanto, o sistema não está preparado para responder ao normal, e essa é a grande dificuldade, quando se vai tentar responder à crise”.
Conforme destacou, é importante compreender os sistemas de saúde em sua complexidade, o que leva à necessidade de se contar com bons sistemas de informação. “Sem um circuito de informação, não é possível gerir um sistema complexo”, afirmou. Para o professor, continuamos a “olhar para a saúde como um sistema normal e não com a complexidade que tem”.
Lapão apresentou o modelo HEPR – Health Emergency, Preparedness and Response, que orienta do projeto Preparação 2.0, abrangendo cinco áreas – proteção às comunidades; cuidado seguro e escalável – por exemplo, ampliando a quantidade de ventiladores para pacientes com Covid ; vigilância epidemiológica colaborativa; coordenação de emergências – “às vezes, temos recursos e falhamos na coordenação”; acesso a medicamentos, máscaras, alimentação adequada etc.; além de uma sexta, referente ao sistema de informação – “e é aqui que estamos, efetivamente, falhando”.
Entre os passos que vêm sendo dados para fazer frente a essa falha, o professor Lapão enfatizou o foco nos usuários de saúde como atores no sistema de vigilância, podendo também eles próprios aprender a responder em caso de emergência. E citou também, como caminho, do ponto de vista da tecnologia, a opção por sistemas de dados federados, facilitando o acesso e a coordenação desses dados.
Ele apresentou, ainda, outras “infraestruturas importantes”, que vêm sendo conformadas em seus grupos de pesquisa, como as salas de situação, utilizadas como instrumento para resposta a emergências sanitárias, resiliência e preparação, a partir de análises sistemáticas de um conjunto de dados; e os testes com cenários simulados e seus reflexos, sobretudo, na saúde, como um tremor de terra em Lisboa, já em processo de realização. “É sempre possível testar os sistemas”, apontou.
Foi também desenvolvido um modelo para análise de um cenário de onda de calor – “problema de saúde pública cada vez mais evidente neste momento de mudança climática” –, envolvendo entidades diversas como Proteção Civil, Emergência Médica, Serviço de Saúde, Meteorologia e Forças de Segurança. “É preciso que aprendam a colaborar umas com as outras; que aprendam a perceber onde estão os limites, quando e como pedir ajuda, a forma de aproveitar os recursos da comunidade”, citou, reafirmando a importância de “sistemas mais centrados nas pessoas, mais sustentáveis, do ponto de vista do funcionamento, e, sobretudo, mais resilientes”.
O professor alertou para o desafio imposto pelo advento da inteligência artificial. “Temos que saber aproveitar bem, com moderação, com cabeça, tronco e membros, e não ficarmos completamente extasiados”, recomendou. “A inteligência artificial não vai nos salvar, como já foi dito, mas vai nos ajudar muito se o soubermos fazer”. Como exemplo, Luís Lapão trouxe os chatbots aplicados à saúde. “Pensando em uma crise de saúde pública, um bom chatbot, um bom agente conversacional, seria fabuloso para garantir comunicação, para garantir lidar com as fake News. Portanto, há um caminho de investimento que tem de ser feito nessa área”.
Para Lapão, é preciso criar um roteiro para a transformação digital, com mapeamento para saber onde estamos, no que diz respeito a sistemas de informação, bases de dados e competências, entre outros atributos; definição de equipes para coordenar essa transformação, envolvendo profissionais de saúde, gestores e especialistas; preparação de um plano de investimentos; e capacitação de pessoas envolvidas.
O professor trouxe, ainda, outros exemplos voltados à transformação digital dos serviços de saúde. Um deles, o sistema de apoio à higienização das mãos em tempo real, com uso de internet das coisas (IoT); um sistema de informação em apoio à prescrição de antibióticos, evitando o mau uso do medicamento – um grande problema de saúde pública; um sistema para acompanhar idosos com problema de equilíbrio, a partir de uma plataforma possibilitando que não necessitem ir aos serviços de saúde; e o uso da Ciência de Dados na orientação de processos diversos; além, de no âmbito da Covid-19, uma plataforma para monitorar pacientes com doenças crônicas.
“Nós precisamos de sistemas de informação mais próximos das comunidades, mais próximos das pessoas, trabalhando em conjunto, encontrando os processos necessários a serem desenvolvidos, arquiteturas que permitam que os dados sejam acessíveis da forma correta sem duplicação”, pontuou.
Sobre a série ‘Transformação digital na saúde pública’
Profundas mudanças na saúde promovidas pelas novas tecnologias digitais já estão acontecendo. Os novos recursos tecnológicos alteram padrões na atenção à saúde e nos aspectos produtivos, tecnológicos e de geração de conhecimento, no contexto da Quarta Revolução Industrial.
Assim, o CEE-Fiocruz abriu espaço para esse debate, com a realização da série Transformação Digital na Saúde Pública, voltando-se à incorporação dessas inovações em prol da garantia de acesso universal à saúde e da sustentabilidade e resiliência do SUS.
A série tem a curadoria do professor Manoel Barral, da Fiocruz Bahia, e organização da pesquisadora do CEE Virgínia Fava, com coordenação executiva do secretário executivo do Centro, Marco Nascimento, e contribuição da coordenação científica do professor Carlos Gadelha.