Sistemas universais e cobertura universal de saúde em debate
Para pensar a universalidade na atenção à saúde, o Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) realizou, em 20/3/24, o seminário Sistemas universais e cobertura universal de saúde: o direito universal ao acesso aos serviços de saúde, reunindo especialistas de diferentes experiências internacionais e trazendo à discussão dois modelos de atenção.
Com coordenação do titular do Cris, Paulo Buss, e mediação de José Carvalho de Noronha, à frente do projeto Saúde Amanhã da Fiocruz, a sessão reuniu o professor Sundararaman Thiagarajan, adjunto da Escola Internacional de Saúde Pública Jipmer, Puducherry da Índia; a professora Carolina Tetelboin, do Departamento de Atenção à Saúde da Universidade Autônoma do México, e o professor José Ramón Repullo, emérito da Escola Nacional de Saúde do Instituto de Saúde Carlos III, na Espanha. O caso brasileiro foi apresentado pela pesquisadora Ligia Giovanella, do Centro de Estudos Estratégicos (CEE-Fiocruz).
Ao abrir o seminário, Noronha fez uma breve introdução sobre a evolução do conceito de sistemas e coberturas universais de saúde no mundo, seguida da exposição do pesquisador Leonardo Mattos que integra o projeto Saúde Amanhã. Noronha explicou que a primeira referência explícita à cobertura universal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apareceu em um dos relatórios da Assembleia Geral, em 2005, intitulado Seguro Social de Saúde: Financiamento Sustentável da Saúde, Cobertura Universal e Seguro Social de Saúde. Nele, há uma mudança no entendimento do direito à saúde e do acesso universal passando-se a utilizar o conceito de cobertura universal “indelevelmente associado à proteção do risco financeiro e à busca de mecanismos alternativos de financiamento setorial”, observou.
Segundo Noronha, ao longo dos anos, a OMS veio fixando o conceito de cobertura universal, que passa a ser adotado como grande ferramenta política, embora não tenha atingido suas respectivas metas. “Há um estreitamento do conceito de cobertura universal, apesar dos desfechos desapontadores da proposta de cobertura”, criticou.
Em sua exposição, Leonardo Mattos apontou que essa restrição em relação à cobertura universal de saúde se dá pela ambiguidade do conceito que, ao longo do tempo, sofreu muitas mudanças, inclusive, reduzindo seu escopo de cobertura a partir da “famigerada proteção financeira”, que incorpora, entre outras coisas, a preferência “por seguros obrigatórios segmentados ao invés de sistemas de saúde universais”.
Na proposta de cobertura, apontou Leonardo, há um consenso de que “para se mover em direção à cobertura universal de saúde, há de se fazerem escolhas a partir do recurso disponível. Uma visão muito economicista de cobertura que virou praticamente o senso comum, e foi propagada aos quatro ventos”, pontuou.
De acordo com o pesquisador, a estratégia para cobertura universal de saúde se mostra incapaz de reduzir iniquidades, sendo, portanto, os sistemas universais de saúde a melhor alternativa para garantir o acesso efetivo a serviços de saúde. “Os sistemas universais partem de concepções muito diferentes, pois consideram a saúde como bem comum, com acesso universal e sem discriminação com a posição socioeconômica. Apontam para um cuidado integral, o acesso efetivo como forma de ampliar a cobertura, o foco é no acesso efetivo e no cuidado integral”, definiu.
Ao final de sua exposição Leonardo convocou à comunidade internacional para uma “revisão profunda” dos conceitos, objetivos, princípios, estratégias, diretrizes e métricas relacionadas à cobertura universal de saúde. Conforme destacou, “as evidências disponíveis mostram o fracasso da abordagem de cobertura, em múltiplas dimensões, seja em relação às metas dos ODS, seja em relação à garantia do direito à saúde e à promoção da equidade de forma mais abrangente. Insistir nessa estratégia é, na prática, abdicar da construção de caminhos efetivamente transformadores”, concluiu.
Ao falar do sistema de saúde brasileiro, a pesquisadora Lígia Giovanella trouxe as principais implicações da concepção de cobertura universal para o direito à saúde no Brasil. Ela apresentou o funcionamento do Sistema Único de Saúde, desde que foi instituído pela Constituição de 1988. "A Carta Constitucional de 1988 coloca a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido por políticas sociais e econômicas dirigidas a reduzir o risco de doença e de outros agravos e garantir o acesso universal e igualitário a ações e serviços de saúde para promoção, proteção e recuperação da saúde”.
Temos no SUS a melhor estratégia de sistema público universal para alcançar a cobertura universal e garantir o direito à saúde, afirmou Ligia, ao lembrar que nosso sistema de saúde é “resultado do processo de democratização do país, após 21 anos de ditadura militar”.
A pesquisadora lembrou que nossa Constituição considera, desde a criação do SUS, que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constitui um sistema “financiado com o orçamento geral da União, dos estados e municípios e com recursos da Seguridade Social”.
Segundo Lígia, com base nos princípios da universalidade, equidade e integralidade, o SUS tem ao longo de sua criação, uma atenção à saúde com gratuidade no ato do uso, onde “não há copagamentos estabelecidos”. E, por ter como proposta a atenção integral, busca agir desde a promoção, prevenção, cura e reabilitação até os cuidados paliativos; . do primeiro nível de atenção, como a vacinação, até atendimentos mais especializados como transplantes.
Ao longo do processo democrático que instituiu o SUS, observou Lígia, a participação social se estabelece como uma característica fundamental, principalmente nos conselhos de saúde, em prol da garantia da descentralização do sistema com responsabilidades compartilhadas entre a união, os estados e os municípios.
De acordo com Lígia, em consonância com as diretrizes de descentralização e participação da sociedade, o SUS incorporou em sua estrutura institucional e decisória, instrumentos para a democratização e compartilhamento da gestão do sistema de saúde entre os distintos entes governamentais e a sociedade civil. Com “a descentralização, os municípios passaram a se responsabilizar pela atenção à saúde, houve uma potente política pública de indução para a criação de sistemas de transferência de recursos financeiros federais per capita para atenção primária, e hoje os 5.570 municípios do país oferecem Atenção Primária à Saúde (APS) para seus habitantes”.
Ao falar da expansão de serviços de APS no país, incluindo áreas remotas e desfavorecidas, a pesquisadora apontou a atenção primária como “uma das fortalezas do nosso sistema de saúde”, um modelo dirigido para a comunidade, territorializada, e que busca ser integrada à Estratégia Saúde da Família (ESF).
Entre os desafios do sistema, Lígia apontou o subfinanciamento e o desfinanciamento crônico do SUS. “Temos uma falta de financiamento promovido por uma Emenda Constitucional em 2016, que congelou os gastos em saúde por 20 anos. Assim, temos um financiamento público no Brasil baixo, em torno de 4 % do PIB e também uma baixa do financiamento público per capita”, disse.
Conforme pontuou o Brasil estabeleceu que o acesso e à atenção à saúde é direito humano, mitigando assim as desigualdades de acesso. “O desafio é superar as dificuldades, mantendo a imagem objetiva de que a saúde não é uma mercadoria, é sim um direito de todos e o dever do Estado”.
Para a pesquisadora, os sistemas universais de saúde são comprovadamente a melhor estratégia para garantir a cobertura universal de saúde. “Não há dúvidas de que sistemas públicos universais gratuitos são superiores em qualidade, eficiência e equidade”, apontou.
Ao iniciar sua apresentação, Sundararaman trouxe um panorama das mudanças em curso no sistema público e privado de inovação em saúde na Índia, incluindo a prestação de serviços médicos, produtos farmacêuticos, e dispositivos médicos.
O professor fez um recorte que parte do processo de descolonização do cuidado e lembrou o Relatório Beveridge – formulado na Inglaterra, em 1942, e que viria a estabelecer as bases do sistema nacional de saúde inglês, o National Health System (NHS) – como um importante documento de reformas no âmbito da seguridade social, no período pós-guerra mundial. “O relatório propunha um padrão de cuidado que deveria ser provido pelo Estado, mas, na prática, o que tivemos foi um desenvolvimento de algumas faculdades de medicina no setor público, e o cuidado primário e secundário bem abaixo do esperado”, considerou.
Sundararaman criticou a forma como a saúde pública na Índia foi sendo dominada pelo setor privado, lembrando que o país, ao tentar controlar a crise contra a malária, permitiu que o cuidado primário fosse dominado por programas privados, levando uma deficiência importante de dispositivos médicos. “Nos anos 90, houve um ajuste estrutural voltado ao pensamento neoliberal que aprofundou ainda mais o escopo dos programas de saúde pública, trazendo um colapso nos serviços de saúde pública”, lembrou.
De acordo com o professor, esse colapso tornou a educação profissional cada vez mais privatizada nesse período, levando consequências aos serviços de saúde pública. “Com o movimento de independência e descolonização, houve uma dificuldade de lidar com o aumento no custo de serviços de saúde”, destacou.
Segundo Sundararaman, foi graças ao movimento Missão Nacional de Saúde implementado em 2005, que a Índia passou a ter novamente um foco no fortalecimento dos sistemas de saúde públicos. “As principais ferramentas para fortalecer o sistema de saúde foram participação comunitária, gestão e inovação profissional, financiamento responsivo e alocação de recursos e inovação em recursos humanos”, pontuou.
Conforme destacou, a expansão da participação comunitária, ajudou os comitês de saneamento e monitoramento comunitário, e consequentemente mobilizou a participação da sociedade civil. Mas, a Missão Nacional de Saúde durou um pequeno período, pois entrou em vigor a prática da cobertura universal da saúde neoliberal. “Em comparação com o discurso de saúde para todos, a cobertura universal de saúde dá ênfase ao governo como fornecedor de serviços de saúde”, criticou Sundararaman, explicando que, ao colocar saúde como valor de troca, acabamos “produzindo uma economia de mercado, financiada pelo setor público, mas que essencialmente não é um seguro social, trazendo as forças do mercado para atuarem no setor de saúde, de uma forma bem diferente do que é feito por exemplo na Alemanha, no Japão, na Austrália e no Canadá”.
Para Sundararaman, quando se fala de cobertura universal, o que vemos na prática, em nível global, é o crescimento do custo da saúde e uma cobertura estagnada. Além de uma fragmentação do tratamento e do atendimento no setor saúde. “Saúde não pode ser uma mercadoria, embora tenhamos o entendimento de que existem problemas na entrega e eficiência nos serviços públicos, torná-la baseada no mercado não é a melhor opção”, defendeu.
Carolina Teté-Ombói abordou o sistema de saúde no México, principalmente, diante da profunda e grande reforma pela qual o país está passando.
Carolina explicou que o histórico do sistema de saúde do México atravessa 36 anos de liberalismo, adotando ao longo dos anos uma concepção de livre comércio com desmantelamento da indústria nacional. “Há desregulações, privatizações e uma diminuição da intervenção direta do Estado através das suas instituições, com uma mudança na concepção de investimento social e processos muito graves de congelamento de salário”, lamentou.
De acordo com a professora, esse longo período, ocasionou, por meio da política neoliberal, a perda de poder aquisitivo de aproximadamente 80% do poder de compra da população. Além disso, “o estado neoliberal mexicano também excluiu a população em situação de pobreza da Previdência Social”, sublinhou.
Para Carolina, com a implantação da chamada quarta transformação no governo Andrés Manuel López Obrador, o México pôde restaurar três décadas de desmantelo e corrupção do estado. “Com projeto de política destinado aos pobres, a quarta transformação propõe o fim do neoliberalismo, a recuperação do mercado de bem-estar, o fortalecimento do que é público e da relação do Estado com a sociedade, com recuperação de impostos das empresas, fim de deduções, e um programa para devolver aos pobres o que lhes foi roubado”, relatou.
No que tange a saúde, Carolina destacou que há atualmente uma política voltada a garantir o direito à proteção à saúde, com acesso a medicamentos gratuitos, e desenvolvimento de atenção primária em saúde integrada e integral. Mas ainda assim, são muitos os desafios, pois a quarta transformação se dá em meio a um ambiente sucateado. “Tínhamos uma série de deficiências na infraestrutura de saúde, das 3.892 unidades de saúde (52,7 %) não tinham energia elétrica, água potável ou sistema de esgoto, um total de (75 %) das unidades apresentavam danos estruturais”, pontuou.
Nesse sentido, a pesquisadora afirmou que algumas mudanças na política de saúde foram implementadas, entre elas, “a centralização do sistema de saúde pública com recuperação dos sistemas de segurança social, a criação de um programa para servidores públicos, e compra direta de medicamento pelo estado”.
Carolina informou que houve um processo de federalização dos serviços do estado em saúde com contratação e formação de pessoal de saúde, isso porque “existe um déficit de médicos e especialistas no México e uma distribuição territorial desigual”. Há, nesse sentido, de acordo com a pesquisadora, um esforço de formação para aumentar essa nova geração de estudantes, com a criação de novas universidades para atender os desafios e necessidades nacionais.
Ao apresentar o sistema de saúde espanhol, o professor José Repullo apontou os pilares que sustentam o bom desempenho desse sistema. De acordo com o professor, o investimento numa cobertura ampla e homogênea e a qualidade no sistema formação de especialistas, com uma rede própria de atenção sanitária, apesar das desigualdades territoriais, são alguns indicativos. “Há um sistema de medicina clínica com uma base muito sólida de formação de especialistas que começou ainda nos anos 80. É o que chamamos de sistema MIR, médicos internos e residentes”, explicou.
De acordo com Repullo, foi fundamental ter construído ao longo dos anos um sistema de formação com uma medicina clínica boa e universalizada, com uma base de territorialização dos centros de atenção à saúde, dos hospitais e dos centros de saúde. “Desde a Lei geral da saúde de 1986, há uma correspondência entre a população, o território e os hospitais e centros de saúde”.
Repullo explica ainda que essa territorialização foi muito importante, pois “gerou um pertencimento muito forte, cada centro de atenção à saúde tem sua população pela qual é responsável, o que, na pandemia da Covid-19, foi muito importante”.
Outro elemento fundamental do bom sistema de saúde espanhol, segundo o professor, é a administração da Seguridade Social Especializada, que criou o Instituto Nacional de Saúde, incorporando, na transição democrática espanhola, especialmente nos anos 70 e 80, médicos e enfermeiras com “um importante ímpeto reformista” e personificaram o processo de mudança sanitária de uma maneira muito importante.
À parte a trajetória virtuosa do sistema dessaúde espanhol, Repullo expôs também os principais riscos e desafios a serem enfrentados. De acordo com o professor desde a pandemia da Covid-19 há uma preocupação com a sustentabilidade do sistema nacional de saúde. “Problemas de resiliência atribuíveis a políticas de austeridade, a mudança geracional que vem afastando da coorte pioneira que foi protagonista da grande reforma sanitária dos anos 70 e 80”, pontuou.
Além disso, o professor afirmou que os cuidados primários estão em crise, com utilização crescente de seguros privados e de cuidados de saúde privados pela população. ”Um descontentamento percebido entre os profissionais e a erosão moral do seu compromisso com instituições e organizações”.
Repullo enfatizou, ao mesmo tempo, que, apesar dos problemas e desafios do futuro, o Sistema Nacional de Saúde espanhol continua a ser um modelo válido e robusto, que permite medicamentos de qualidade para toda a população, a um custo razoável e com excelentes resultados em saúde. “O SNS é um presente. É o serviço público da melhor qualidade e cria coesão social e boa cidadania. É não deixar ninguém para trás”, afirmou.