‘Saúde tem cura’: SUS é protagonista do documentário produzido em parceria com a Fiocruz e o Cebes

‘Saúde tem cura’: SUS é protagonista do documentário produzido em parceria com a Fiocruz e o Cebes

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Este filme tem muitos começos. Aprendi em casa
com a dra. Sarah Tender, minha mãe, a importância da saúde pública. Pediatra e psicanalista iniciou a carreira no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos, o IAPM, e se aposentou no posto de assistência médica da Avenida Venezuela, do Inamps (...). No final dos anos 70,  já adulto e ligado aos movimentos de redemocratização do Brasil, acompanhei a luta dos médicos sanitaristas pela construção de uma saúde pública gratuita, universal e de qualidade (...). Em 2011, quando um problema na medula me jogou em uma cadeira de rodas, aprendi com Paulo Niemeyer, Fernando Portela e Arno Von Ristow que medicina é arte (...). A pandemia de 2020 nos pegou de surpresa e aprendi a lição definitiva do protagonismo de todos os setores da saúde na luta pela vida. A todos eles, eu dedico este filme”.
(Silvio Tendler, março 2022).

O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é o protagonista do documentário Saúde tem Cura, lançado em 8/6/22, com direção do cineasta Silvio Tendler e disponível para acesso gratuito no canal do YouTube de sua produtora, Caliban. Em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o longa-metragem foi produzido durante a pandemia de Covid-19, quando a importância das políticas públicas de saúde, e do SUS em especial, ganhou espaço e reconhecimento. 

Com mais de uma hora e meia de duração, Saúde tem Cura aborda a força e as fragilidades do SUS, destacado como o único sistema de saúde do mundo que atende a mais de 190 milhões de pessoas gratuitamente. Entrevistas com usuários, profissionais da área da Saúde, representantes da sociedade civil e sanitaristas que lideraram o movimento da Reforma Sanitária Brasileira, desde os anos 1970, são entremeadas com a apresentação de fatos históricos e dados estatísticos, para apresentar o cenário da saúde no país antes da criação do SUS e compor o processo de criação do sistema, sua construção e as bases que o fundaram. 

O documentário enfatiza a luta para que a proposta do SUS integrasse a Constituição de 1988 e aponta que, hoje, 80% dos brasileiros usam exclusivamente o sistema público de saúde. Nos depoimentos e dados que reúne, o filme deixa claro seu posicionamento em defesa do SUS e denuncia tanto seu subfinanciamento crônico quanto seu desfinanciamento, que impedem sua plena concretização nos moldes constitucionais.

“Que todo cidadão possa ter acesso e direito, independente de qualquer coisa, a todos os bens que o Estado pode prover”, enfatiza um dos áudios do sanitarista Sergio Arouca (1941-2003) – um dos líderes do movimento sanitarista, que mudou o tratamento da saúde pública no Brasil – que pontuam o filme. Estão reunidos também depoimentos gravados com outros sanitaristas que já nos deixaram, como Hésio Cordeiro Hésio (1942-2020), que dirigiu o Inamps e, ao lado de Arouca, teve atuação destacada na 8ª Conferência Nacional de Saúde, na qual foram lançadas as bases do SUS, em 1986; Eleuterio Rodrigues Neto (1946-2013), ex-secretário geral do Ministério da Saúde; e Antonio Antonio Ivo de Carvalho (1950-2021), ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública e idealizador e primeiro coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz). 

“Creio que a construção do sistema unificado e a construção e aplicação de uma Reforma Sanitária deve ter descentralização, democratização e participação de todos os segmentos da população”, destaca Hésio Cordeiro, em trecho registrado no documentário, gravado durante a 8ª Conferência. “Foi se fortalecendo a consciência de que caberia a ideia de um sistema único de formação para saúde pública. Não único no sentido de ser homogêneo, mas no sentido de atender às diversidades regionais e culturais”, descreve Antonio Ivo, que, conforme lembrou o filme, como jovem médico, destacara a importância de se formarem quadros especializados para um sistema público de saúde. 

“Mostramos que a saúde deveria ser um direito de todos, deveria ser um dever do Estado, uma saúde com equidade no acesso, universal, gratuita, de qualidade, abrangente, pegando todos os que compõem a assistência, da promoção até a saúde mais sofisticada”, relata o ex-presidente da Fiocruz, Paulo Buss, coordenador do Centro Relações Internacionais (Cris/Fiocruz).

Para médica e sanitarista Lucia Souto, presidente do Cebes, a ideia de a saúde ser “indissociável” da democracia era a força do momento político que se vivia na época. “A luta por uma saúde pública que pudesse ser acessível, coletiva, vista como direito e não como mercadoria”, destaca Lucia, referindo-se à 8ª Conferência, que, como mostra o documentário, foi a primeira totalmente aberta a população e reuniu cinco mil pessoas. 

“De um lado, os formuladores de política pública de saúde, contagiando grande parte da juventude universitária e profissionais de saúde, e, do outro lado, os secretários municipais já pondo em prática os primeiros passos concretos para organizar a Atenção Primária”, recorda-se o sanitarista Nelson Rodrigues dos Santos. 

Para o professor Jairnilson Paim, houve naquele momento uma construção de alianças para garantir a saúde como direito na nova Carta. “Os militantes do Cebes, do Conselho Federal de Medicina, as associações de Enfermagem, Psicologia, Nutrição tiveram uma habilidade política muito intensa no processo constituinte”, lembra. 

De acordo com a cientista política Sonia Fleury, hoje pesquisadora do CEE-Fiocruz, essa habilidade não foi combinada. “Não houve pacto, houve enfrentamento. É muito claro que avançamos nos direitos sociais, mas não avançamos na estrutura tributária. Portanto, essa mesma Constituição que garantiu direitos extremamente avançados na ordem social, desvinculando da condição de trabalho e vinculando a condição de cidadania, não garantiu recursos necessários para se ter uma política universal e distributiva”, analisa. 

 

O SUS três décadas depois

Em seu depoimento, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, destaca o “papel crucial da ciência” e a expertise da Fiocruz na produção de insumos farmacêuticos para o acesso da população a tecnologias, vacinas e medicamentos pelo SUS, em momentos importantes da história sanitária brasileira, e, mais recentemente, durante a pandemia de Covid-19. “Desde o inicio das negociações, nós já tínhamos a perspectiva de ter a vacina produzida cem por cento na Fiocruz. Foram nove meses entre a transferência de tecnologia e a produção do IFA totalmente nacional. Uma verdadeira epopeia”, sublinha. 

Ex-presidentes da Fiocruz, Akira Homma e Paulo Gadelha também foram ouvidos no documentário. Akira Homma toma como foco o Programa Nacional de Imunizações (PNI), um dos mais importantes do mundo, para enfatizar a importância do SUS. “Lá estão disponíveis todas as vacinas e o calendário básico de vacinação, sem custos para toda população que desejar se vacinar”. Paulo Gadelha aborda a conexão entre saúde e desenvolvimento, “que está na matriz original da Fiocruz, podendo trabalhar problemas pontuais e relevantes como a pandemia, mas trabalhar também qual nação queremos e qual relação se estabelece entre o campo da produção da ciência, a saúde e o desenvolvimento”.

Soberania e investimento na inovação em saúde e a entrada do Brasil na quarta revolução tecnológica são destacados no depoimento do economista e pesquisador Carlos Gadelha, coordenador do CEE-Fiocruz. “As patentes de Inteligência Artificial estão na mão de cinco países. Daqui a pouco, não conseguiremos fazer atenção básica utilizando nossa própria base de dados, se não tivermos capacidade tecnológica para lidar com isso. Essa dimensão é da saúde, e saúde é desenvolvimento! E mais do que isso, saúde deve se tornar uma das grandes apostas para sairmos da crise, num padrão de desenvolvimento que alie equidade, direito, dinamismo econômico e soberania nacional”, avalia o economista.

Mauricio Zuma, diretor de Biomanguinhos, unidade da Fiocruz responsável pelo desenvolvimento tecnológico e pela produção de vacinas, destaca a atuação do instituto nas três principais áreas da saúde pública – prevenção, diagnóstico e tratamento, conforme enumera. “Bio-Manguinhos é, hoje, ao lado do Instituto Butantan, o principal produtor de vacinas para o Ministério da Saúde. Juntos, os dois institutos são responsáveis por 60% a 70% das vacinas do Programa Nacional de Imunizações”, observa, acrescentando que Bio-Manguinhos vem investindo em capacitação interna para dar respostas rápidas às demandas do país e fazer frente à dependência internacional. “Isso é muito importante e faz Bio-Manguinhos cada vez maior”, diz.

Para o professor José Noronha, do Icict/Fiocruz, é possível pensar em uma reforma do serviço público que abrigue as parcerias público-privadas, sempre sob o controle do Estado, no que diz respeito à produção de fármacos e equipamentos, por exemplo.”A própria Fundação Oswaldo Cruz tem parceria para desenvolvimento de antirretrovirais, vacinas, em que há uma combinação virtuosa, desde que se garanta o controle do serviço público”, defende.

Já o ex-ministro da Saúde (2007-2011) José Gomes Temporão, também pesquisador do CEE-Fiocruz, enfatiza a importância do processo político para fortalecer o SUS e “convencer a população” de que ter um sistema universal é o melhor. “Melhor de todas as formas, seja na segurança, na garantia, no impacto ou nas condições equitativas de acesso”, considera.

“O SUS contribuiu muito para redução da desigualdade social no Brasil”, destaca o médico Dráuzio Varella, sobre a contribuição do sistema que, segundo ele, apesar dos problemas, ainda é “o maior sistema de saúde pública do mundo”. 

Para o professor de Epidemiologia da UFRJ Roberto Medronho apesar do subfinanciamento “o SUS é uma das propostas mais generosas e mais fraternas do mundo”. Já a médica e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo afirma que se pudesse resumir o SUS, diria que é o sistema justo, apesar “da concentração de renda absolutamente iníqua”. Para ela, “o SUS é a nossa arma mais poderosa, mais preciosa, e tem que ser defendido a qualquer custo”. 

Confira estatísticas e depoimentos sobre o SUS, e a lista de entrevistados no documentário.