SNT, a joia da saúde pública brasileira

SNT, a joia da saúde pública brasileira

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Histórias públicas de transplantes de órgãos bem-sucedidos tendem a levar ao aumento do número de doações. O contrário, desafortunadamente, também é verdadeiro.

Fita verde, simbolizando a importância da doação de órgãos, sobre o mapa do Brasil trazendo várias reproduções do símbolo do SUS

Álvaro Pacheco e Silva Filho e Itamar Montalvão *

A infecção de ao menos seis pacientes que receberam transplantes de diferentes órgãos contaminados com o vírus HIV no Rio de Janeiro é caso de polícia, não de saúde pública. É vital, literalmente, ter isso em perspectiva porque a tragédia que se abateu sobre os transplantados e seus familiares, gravíssima por si só, extrapolou a dimensão privada e pôs em xeque o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) – uma política de saúde pública, coordenada em nível federal pelo Ministério da Saúde, que, ao longo de quase 30 anos de vigência, salvou milhares de vidas no País e se revestiu de uma aura de credibilidade que a faz ser motivo de orgulho, não de sobressalto, para todos os brasileiros.

É rotina do SNT testar cada órgão doado para várias doenças transmissíveis antes de sua oferta às equipes de transplante. Trata-se de um cuidado elementar que é rigorosamente observado pelos centros transplantadores que compõem o SNT. A um só tempo, o caso do Rio de Janeiro – um Estado que sempre se destacou como centro transplantador no País – representou um atentado contra a vida daqueles seis pacientes, mas também contra a seriedade do SNT, de resto reconhecido no mundo inteiro como referência em transplante de órgãos sob coordenação do poder público.

A negligência, para dizer o mínimo, dos responsáveis pelo laboratório PCS Saleme, contratado pela Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro para testar a sorologia de órgãos doados para transplante, não pode conspurcar a credibilidade conquistada pelos profissionais do SNT. Jamais se tratou de um erro procedimental do laboratório, mas de possíveis crimes que devem ser punidos com todo o rigor da lei. De acordo com as investigações da Polícia Civil fluminense, por pura ganância e descaso com a vida humana, funcionários do PCS Saleme teriam ignorado os protocolos de testagem e liberado para transplante os órgãos contaminados com o vírus causador da aids. Além dos possíveis crimes que possam ter cometido contra os pacientes, os principais implicados no caso, ora presos provisoriamente, ainda prestaram um enorme desserviço para os cerca de 44 mil brasileiros que atualmente aguardam por um transplante que lhes devolva a uma vida relativamente normal.

No Brasil, por razões sobre as quais não pretendemos nos deter neste artigo, o número de doadores de órgãos é muito aquém do necessário para fazer a fila de espera por um órgão avançar com mais celeridade. Equipes multidisciplinares prontas para realizar mais cirurgias não faltam, seja em hospitais da rede privada que dispõem de unidades de transplante de órgãos, seja no Sistema Único de Saúde (SUS). Ademais, o sensível processo de abordagem das famílias com vistas à doação de órgãos de seus entes queridos que foram diagnosticados com morte cerebral, processo este conduzido por profissionais altamente qualificados, é muito suscetível ao noticiário sobre o tema. Vale dizer, histórias públicas de transplantes bem-sucedidos, em geral, tendem a levar ao aumento do número de doações. O contrário, desafortunadamente, também é verdadeiro.

Por óbvio, só a conclusão das investigações a cargo tanto da Polícia Civil fluminense como da Polícia Federal, acionada pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, para investigar o caso, irá confirmar se a liberação de órgãos contaminados no Rio de Janeiro foi “apenas”, por assim dizer, um revoltante caso isolado ou se trata de um caso descoberto. Por ora, tudo indica se tratar de um episódio singular. Há boas razões para acreditar nisso. Em primeiro lugar, pela robustez e pela história de sucesso do SNT, consubstanciada em seu rigor técnico, como já sublinhamos, e na lisura ética na gestão da fila de espera. Desde 1997, quando a Lei n.º 9.434 instituiu o SNT, milhares de vidas já foram salvas graças a essa política pública de excelência sem que houvesse uma só razão objetiva a tisnar sua seriedade. A bem da verdade, o Brasil se tornou referência global em transplantes de órgãos nesse período, tornando-se o segundo país que mais realiza esse tipo de cirurgia no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Além disso, parece claro a esta altura que o descaso do laboratório PCS Saleme com os protocolos de segurança sanitária e, consequentemente, com a vida dos receptores dos órgãos supostamente testados por seus técnicos se tratou de deliberada incúria com o objetivo de auferir ganhos financeiros pela economia na aquisição e manutenção de insumos básicos para esse tipo de testagem.

O SNT é seguro, eficiente e extremamente ético. Com uma rede bem estruturada e mais campanhas do Ministério da Saúde pela doação de órgãos que informem e mobilizem a sociedade sobre a importância desse gesto de amor ao próximo, o Brasil continuará a avançar nessa seara, consolidando-se como um paradigma de excelência em transplantes de órgãos no mundo – e, mais importante ainda, salvando a vida de milhares de seus cidadãos. Converse com sua família sobre o tema. Seja um doador de órgãos.

* Álvaro Pacheco é professor titular e livre-docente de Nefrologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), médico da equipe de transplante de rim do Hospital Israelita Albert Einstein; Silva Filho e Itamar Montalvão é jornalista, mestre em comunicação, maratonista, em 2015 recebeu um transplante de rim. Artigo publicado no Estadão, em 25/10/2024.