Relações federativas, medidas tributárias e o custeio dos direitos fundamentais: debate com Élida Graziane Pinto
“É preciso desatrelar os pisos de Saúde e Educação das alterações conferidas a determinados impostos”. A proposta foi apresentada, ao lado de diversas estratégias voltadas a garantir o custeio dos direitos constitucionais, pela professora e procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane Pinto. Ela foi recebida por pesquisadores do projeto Futuros do Federalismo, do CEE-Fiocruz, em encontro virtual realizado em 24/03/2022, acompanhado pelo blog do Centro e registrado em vídeo.
O encontro girou em torno de questões formuladas pelo grupo a partir do artigo Redução de IPI rebaixa custeio federativo dos direitos fundamentais, publicado por Elida, no site Conjur, em 08/03/2022. A procuradora analisou aspectos relacionados, tanto ao financiamento das políticas sociais quanto à forma de gestão do orçamento, dos gastos públicos, abordando, em especial, o impacto da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em 25%, conforme o Decreto 10.979, de 25/02/2022, e fazendo propostas ao enfrentamento de um cenário que vem penalizando estados e municípios e afetando a concretização das políticas de Saúde e Educação.
Participaram do encontro com a procuradora os pesquisadores do CEE-Fiocruz Sonia Fleury, que fez a mediação, e Assis Maffort, coordenadores do projeto, Fernando Bessa, Rosângela Vianna Alves e Telma Teles Costa. O grupo, que vem discutindo as tensões e mudanças nas relações federativas do país, compõe-se, ainda, dos pesquisadores André Bonifácio e Edjavane Rocha, da Universidade Federal da Paraíba, e Roberta Sampaio, da Universidade Federal da Bahia.
“O IPI é um dos impostos que compõem a base de cálculo do piso em Saúde e Educação nos estados e municípios. Já no nível da União, a correção desses pisos se dá apenas pela correção da inflação, por conta da Emenda 95, do teto de gastos. Então, uma redução no IPI repercute, sim, nos pisos estaduais e municipais”, explica Élida, iniciando o diálogo com os pesquisadores, a partir de indagação de Sonia Fleury a respeito do imposto, cujas alterações não precisam passar pelo Congresso Nacional.
Sonia lembrou que esse debate trava-se em ano eleitoral e em cenário no qual não foi levada à frente uma reforma tributária, mas em que, ao mesmo tempo, observam-se medidas governamentais voltadas a beneficiar certos setores, com risco de grande impacto na provisão de serviços sociais. “Podemos quantificar uma estimativa de perdas para os pisos, apenas neste ano, na casa de R$ 5 bilhões, em relação à composição da receita de impostos de estados e municípios. Pode parecer pouco, mas revela uma fragilidade”, analisa Élida.
Conforme observa a procuradora, o IPI tem regime constitucional específico – ao lado de outros impostos, como o IOF, o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação –, com função extrafiscal, regulatória, isto é, além de arrecadar, tem a finalidade de regular o mercado, contando com mais flexibilidade na alteração das alíquotas. “O Executivo tem autonomia para deliberar sobre o imposto, porque se supõe que as alterações irão atender a essa finalidade regulatória”, explica. O problema é que há aí uma inconsistência. Sendo o IPI um imposto que compõe o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e o Fundo de Participação dos Estados (FPE), aqueles estados sem capacidade de arrecadação própria, dependentes de transferências da União ficam penalizados – os municípios, então, nem se fala. Se há redução da base de cálculo, há impacto na capacidade de esses entes subnacionais executarem os serviços sociais”, pontua, destacando a dificuldade de estados e municípios “tensionarem juridicamente” esses encaminhamentos, tendo em vista decisão “míope, infeliz” do Supremo Tribunal Federal, tomada alguns anos atrás, de que não cabe aos entes subnacionais reclamarem de perda potencial de arrecadação.
Embora considere ser necessário promover-se no país uma “transição tributária”, uma “alteração profunda” da matriz tributária e nas formas de tributação – “estamos tendo dificuldade, inclusive, de sustentar as contribuições previdenciárias da forma como se encontram”, exemplifica –, Élida defende que se desatrelem os pisos de Saúde e Educação das alterações a serem conferidas a determinados impostos. “Precisamos fazer um debate mais amplo”, conclamou, dando como exemplo proposta que apresentou para a área da Educação, em artigo assinado com os professores Salomão Ximenez e André Rocaglia [da Universidade Federal do ABC e da Unifesp, respectivamente].
”Defendemos no artigo que todo gasto em Educação seja reputado despesa de capital, isto é, como investimento, para fins de se observar a regra de ouro [mecanismo instituído pelo Artigo 167 da Constituição, que estabelece que o governo só pode fazer dívidas para renovar a própria dívida, ou para cobrir despesas de capital, como investimentos em obras públicas, entre outros, e amortizações]. Dessa forma, seria possível promover operações de crédito, endividamentos, para financiar, no caso do nosso artigo, a Educação”, explica. “A Saúde precisava ter essa capacidade de interpretação, inclusive, pelo legado da pandemia, de modo a se subsidiar o piso para além de uma cesta de impostos apenas”, considera. “O Estado tem que financiar, independentemente de indicar a fonte de custeio. Teríamos que fazer a transição para um modelo que obrigue a execução do conteúdo mínimo do planejamento sanitário e do planejamento educacional. Deixar ao sabor das oscilações da matriz tributária, que também é tida como insuficiente, tende a fragilizar”.
O Estado tem que financiar [a Saúde e a Educação], independentemente de indicar a fonte de custeio. Teríamos que fazer a transição para um modelo que obrigue a execução do conteúdo mínimo do planejamento sanitário e do planejamento educacional. Deixar ao sabor das oscilações da matriz tributária, que também é tida como insuficiente, tende a fragilizar
Uma segunda proposta apresentada por Élida Graziane, voltada ao custeio dos direitos fundamentais, refere-se a uma retomada do Fundo Social do Pré-Sal, cuja composição previa 75% dos recursos destinados à Educação e 25%, à Saúde, mas que teve desvinculados R$ 200 bilhões, devido à Emenda Constitucional 109/2021 [que impõe medidas de controle do crescimento das despesas obrigatórias permanentes, no âmbito dos orçamentos fiscal e da Seguridade Social da União, estados, municípios e Distrito Federal]. “Ninguém está debatendo isso”, alerta. “Tínhamos um potencial de gestão prospectiva do financiamento da Saúde e da Educação. Há uma ação no Supremo pedindo que se aportem os recursos do Pré-Sal, mas com decisão ainda cautelar, monocrática, e a tendência do Supremo, conservador como está, é derrubar”.
Para Sonia Fleury, em paralelo à proposta de Élida de se buscar uma mudança na matriz tributária do país, repensando-se o financiamento dos serviços sociais não só com base nos impostos, seria necessário pensar em ações de mais curto prazo. “Que estratégias os diferentes atores políticos poderiam adotar, além dessa estratégia maior de transição, que é absolutamente acertada, mas que na conjuntura atual seria difícil de viabilizar politicamente?”, perguntou.
Élida propôs, então, como ação mais imediata, tomar como base para a Saúde a área da Educação e a Lei de Regulamentação do Fundeb (Lei nº 14.113, de 25/12/2020) em seu artigo 52, que estabiliza o Fundo na média de valores dos últimos três anos, para financiamento da educação básica, independentemente de haver alterações tributárias, mudanças na composição dos impostos. “É tentar trazer esse mecanismo para a Saúde, disputar esse caminho, ainda que judicialmente, via debate judicial tensionado pelos estados da federação e seus governadores”.
Quanto a um caminho “não judicializado” para se salvaguardarem as políticas de Saúde e Educação, conforme indagado pela pesquisadora Telma Costa, Élida ponderou que é preciso “um antidoto inteligente a essa tendência de véspera de processo eleitoral de redução de carga tributária”, reafirmando a pertinência de se tomar como base a Lei do Fundeb para levar à frente as devidas disputas. “É uma lei que veio de um movimento social importante e orienta-se pela equalização de efeitos. Os governadores com força política conseguem fazer no Supremo um contraponto que nós, sociedade civil, não conseguimos”, aposta Élida. “Eles podem fazer esse tensionamento pelo custeio suficiente dos serviços de saúde e buscar equivalência do artigo 52 da Lei do Fundeb para o Sistema Único de Saúde, espraiar os efeitos desse artigo”.
Para Élida, o cenário atual, com retirada dos créditos extraordinários [utilizados em situações emergenciais, como a pandemia de Covid-19] e tendência de redução do IPI favorece o caminho que propõe. “Podemos dizer: tudo bem que a União tenha autonomia para deliberar sobre o IPI, mas que isso não cause asfixia fiscal para estados e municípios, que haja um mecanismo de compensação”.
A procuradora analisou também a possibilidade de reversão do processo de desindustrialização no país, por meio da redução do IPI, conforme almejado pelo governo federal, a partir de pergunta do pesquisador Fernando Bessa. Para Élida, essa premissa “não se sustenta”, mas uma vez que leva em conta a função reguladora do IPI, não há como “suscitar nulidade” a ela. “O conservadorismo do TCU, dos tribunais superiores nos limita na possibilidade de impugnar a invalidade dos motivos falsamente alegados”, avaliou. “No curto prazo, ações cíveis originárias [aquelas que se iniciam nos tribunais], fazendo-se um debate do ponto de vista das despesas e da complementação de recursos tem mais efeito do que debater o IPI”, considerou.
O coordenador do projeto de pesquisa Futuros do federalismo, Assis Maffort, indagou se um processo de reindustrialização do país não poderia se dar a partir de iniciativas como, por exemplo, a construção de uma política de incentivo industrial, por meio de um fórum nacional, integrado por trabalhadores, centros de pesquisa, entre outros atores, “entendendo que fazer cortes lineares, como o proposto para o IPI, não gera impacto algum sobre o desenvolvimento industrial brasileiro”. Élida, apontou para a necessidade de um marco normativo robusto da política industrial, considerando, no entanto, “pouco provável” que o atual Congresso e o atual Executivo o façam. “É uma agenda para 2023, a depender do cenário eleitoral”.
Assis Maffort buscou discutir, ainda, os impactos de uma política de redução linear do IPI sobre o equilíbrio fiscal de médio e longo prazo, tanto da União quanto de estados e municípios, bem como a possibilidade de que isso acirre “a política conservadora de aumento de juros do Banco Central”.
A queda da arrecadação de IPI constrange o atingimento das metas fiscais e é um risco fiscal para os próximos três anos
Para Élida, “a queda da arrecadação de IPI constrange o atingimento das metas fiscais e é um risco fiscal para os próximos três anos”. E observa: “Já há uma demanda de financiar o Estado com operações de crédito, com quebra da regra de ouro. Como, então, abrir mão de arrecadar? Se abrimos mão, sobretudo diante de despesas obrigatórias de difícil compressão, levamos o Estado a fazer operações de crédito. Se o Estado tem necessidade de fazer operações de crédito para pagar despesas obrigatórias, há quebra da regra de ouro”, analisa, reiterando que este é o momento politicamente oportuno para fazer o tensionamento sugerido por Maffort.
A pesquisadora Rosângela Alves trouxe para o debate a movimentação que deverá se verificar no Congresso Nacional por conta das eleições, em que muitos parlamentares deverão se desincompatibilizar para concorrer a cargos executivos ou apoiar candidatos, o que poderá interferir nas estratégias de pressão no Legislativo. Para Élida, é possível trabalhar “em ambas as arenas” – o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, por meio dos governadores, começando-se o debate pelo Supremo. “Ganha-se musculatura dessa forma para o debate no Congresso depois”.
A procuradora reafirmou a força dos governadores no Supremo, constatada em dados acadêmicos, levantamentos em séries históricas longas. “Os dados apontam que os governadores, quando tensionam conflitos federativos com o governo federal, têm boa chance de serem bem recepcionados no Supremo. Em regra, o Supremo é muito sensível às demandas dos governadores”.
Na exposição de suas estratégias para garantia do custeio dos direitos sociais, Élida propôs também examinar o anexo de despesas não contingenciáveis, parágrafo segundo do artigo nono, da Lei de Responsabilidade Fiscal (que diz que “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente”). “Pegar o que é gasto em saúde e em educação e obrigar a gastar, ainda que não haja fonte de custeio”, orienta. “Essas despesas são o que, em Direito, chamamos de mínimo existencial. Não podem sofrer limitação de pagamento, limitação de empenho, são a essência da razão de ser do Estado. Pode-se tirá-las da base de cálculo do IPI, mas será necessário pagar de outra forma; não é possível descontinuar essas despesas, elas não são suprimíveis”, afirma Élida, observando que, mais cedo ou mais tarde, governadores e prefeitos terão que fazer esse debate, pressionando a União a ter, se necessário, o regime de um fundo de compensação para fazer frente a qualquer recurso suprimido.
Essas despesas [em Saúde e Educação] são o que, em Direito, chamamos de mínimo existencial. Não podem sofrer limitação de pagamento, limitação de empenho, são a essência da razão de ser do Estado. Pode-se tirá-las da base de cálculo do IPI, mas será necessário pagar de outra forma
Ainda no rol de sugestões que apresentou no diálogo com os pesquisadores, Élida Graziane orientou a se “quantificar ostensivamente” essas despesas com saúde e educação, definir quanto custa para estados municípios manterem esse mínimo existencial. “É preciso haver níveis sucessíveis de enfrentamento, fazer a costura comendo pelas beiradas é necessário. Usar o anexo de despesas não contingenciáveis, reclamar um fundo de compensação nos moldes da lei regulamentadora do Fundeb, quantificar o custo desse mínimo existencial do Estado”, resume Élida.
Qual é, em termos fiscais, o tamanho mínimo do Estado para cumprir a Constituição de 1988? Temos que falar em números
“Qual é, em termos fiscais, o tamanho mínimo do Estado para cumprir a Constituição de 1988?”, indaga, reiterando o caminho de se interpretar a política pública de saúde fortalecendo-a com a de educação. “São regimes jurídicos muito semelhantes. Defender ambas acaba criando uma simbiose muito favorável na defesa do pacto federativo. Há na Saúde e na Educação um rol de programas que não podem ser contingenciados, e, se não podem ser contingenciados, têm que ser executados de forma solidária na federação”.
Para a procuradora, se houver sucesso nesse esforço de quantificação dos gastos que não são suscetíveis a um contingenciamento, parando-se de fazer “um debate abstrato” para se falar em números, será “um avanço estruturante”.
Sonia Fleury considerou importante, para isso, o envolvimento do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), com o qual o grupo vem desenvolvendo projeto sobre tensões e inovações no federalismo durante a pandemia. “Seria importante o Conass assumir essa agenda, com apoio de uma rede de universidades, para fazer esse cálculo do tamanho mínimo do Estado constitucional”, sugeriu. “Não é trabalhoso como parece”, afirmou Élida. “Precisamos falar de números”.
Leia artigo dos integrantes do projeto Futuros do Federalismo na revista Saúde em Debate nº 46