Reino Unido: a importância do poder de compra do Estado e do programa de descarbonização

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Na apresentação do estudo Desenvolvimento do CEIS no Reino Unido, realizado no âmbito da Oficina CEIS 4.0, os pesquisadores Cecília Lustosa e Marina Szapiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Israel Marcellino, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, destacaram dois aspectos que estão na pauta do Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileiro – o uso do poder de compra do Estado e o processo de descarbonização, além de sublinharem a capacidade competitiva das farmacêuticas britânicas e de equipamentos de saúde. O grupo de pesquisadores integra a Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist), coordenada pelo professor José Cassiolato, também da UFRJ.

O estudo teve como foco a experiência do National Health Service na Inglaterra, país onde se concentram 85% da população do Reino Unido. O objetivo dos pesquisadores foi buscar, a partir dessa experiência, subsídios para melhor a capacidade de resposta do SUS, por meio do desenvolvimento do CEIS brasileiro, e da promoção de uma saúde pública sustentável e inovadora, com o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à descarbonização e ao aumento da produção local de interesse do SUS, conforme destacaram.

“O NHS é um serviço universal, como o SUS, apesar de recentemente estar começando a ser privatizado. Tem como objetivo ser o primeiro serviço de saúde nacional net zero, ou emissor de carbono líquido zero, até 2040”, explicou Cecília, observando que a descarbonização do sistema envolve esforços para redução das emissões de CO2 e de outros gases de efeito estufa. O que não for possível reduzir deverá ser compensado.

Criado em 1948, no pós-guerra, o NHS é referência para o Brasil e outros países, por seus efeitos benéficos para o bem-estar e qualidade de vida do Reino Unido. Hoje o sistema atende 58 milhões de usuários, número quase seis vezes maior do que a parcela da população atendida pelos serviços privados – 12 milhões usuários. Depois da pandemia da Covid-19 e do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, em janeiro de 2020, o sistema passou por grandes mudanças, que tiveram como linhas condutoras:  o plano de longo prazo de desenvolvimento do NHS e o Health Care Act, um novo marco legal aprovado pelo parlamento inglês em 2022. Atualmente, o gasto do governo inglês com o NHS é de cerca de 10% do PIB.

O NHS é um sistema complexo, presente em todo o país, explicaram os pesquisadores, abarcando a área de assistência social e de saúde. Como resultado de seu processo de evolução ao longo do século XX, sua estrutura organizacional, de gestão e de governança é caracterizada pela descentralização, com instâncias de gestão regional e influência de autoridades locais. Junto a isso, assinalou Israel, “é interessante notar a inclusão de novos instrumentos de organização e operacionalização, principalmente no que se refere ao sistema de compras, no sentido de conjugar elementos de gestão descentralizada com elementos centralizados”.

Como explicou o pesquisador, o NHS não é o único elemento do ambiente institucional mais amplo do sistema de saúde britânico. Ele citou quatro outros – o National Institute for Health and Care Excellence (Nice), ou Instituto Nacional para Excelência em Saúde e Cuidado –, que estabelece padrões de qualidade e metas para prestação dos serviços e tecnologias inovadoras do NHS, com diálogo direto com as industrias do CEIS; o NHS Digital, ponta de lança do processo de digitalização do sistema; o NHS Supply Chain, que gerencia e centraliza parte significativa do poder de compra do NHS, possibilitando aquisição em escala e evitando superposição de esforços; e o National Institute for Health and Care Research (NIHR), o Instituto Nacional de Pesquisa, Saúde e Cuidado, principal instituição na área de pesquisa, desenvolvimento e inovação em saúde, que tem parcerias com outras instituições de pesquisa, universidades, empresas privadas e organizações governamentais. “Para se ter uma noção de sua importância, nos dados mais recentes, em 2022, foi investido 1,3 bilhões de libras em P&D”.

Nesse contexto grandioso e complexo em que se estrutura a saúde inglesa, Israel observou que há desafios a serem enfrentados, tais como: o envelhecimento da população; as desigualdades no acesso à saúde, tanto territoriais, como sociais, devido à imigração; problemas estruturais, principalmente na fila de espera de atendimentos provocados pela Covid, e uma pressão no orçamento, que “já vem acompanhando a história do NHS há algumas décadas”.

O pesquisador apontou, ainda, um processo de crise em relação à força de trabalho no sistema, devido à dificuldade de conseguir determinados profissionais e que hoje se constitui foco de atenção. Além disso, “há questões ligadas à sustentabilidade ambiental, tanto por problema de emissões, como geração de resíduos sólidos no lixo hospitalar”, assinalou.

Em relação à importância econômica e social do CEIS no Reino Unido, Israel explicou que se trata de um dos maiores empregadores da economia inglesa, e até mesmo da economia europeia. “São mais de 3 milhões de pessoas trabalhando diretamente, boa parte delas no NHS”. O dispêndio entre público e privado também é elevado, continuou o pesquisador – “282 bilhões de libras, e gastos com P&D de 5 bilhões, incluindo aqueles do setor público e os da indústria farmacêutica”.

A estrutura produtiva do CEIS é marcada pela presença de atores competitivos nos subsistemas de base química e biotecnológica e, em menor escala, no subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais. “A GSK e a AstraZeneca são as big pharma sediadas na Inglaterra, com presença importante de empresas de outros países”, disse Israel, assinalando que, diferentemente da lógica observada no Sul, a interação entre essas empresas, principalmente dentro da Europa, é diferente, em especial, no que diz respeito a questões de P&D. Embora sem a forte pujança do segmento farmacêutico, observa-se, também, alguns nichos na área de máquinas e equipamentos com competitividade, acrescentou Israel.

Outro ponto importante destacado no estudo refere-se ao poder de compra público estrategicamente direcionado à inovação – sendo a saúde a área na qual o governo britânico mais o utiliza. “Dados do National Audit Office [auditoria independente, com foco no gestor público] de 2024 apontam que 80% das compras públicas em saúde são feitas de forma centralizada, via NHS Supply, que disponibiliza uma lista de tecnologias estratégicas para o NHS, no âmbito do programa Strategy Opportunities for Medical Technology Products (Oportunidades estratégicas para produtos de tecnologia médica)”. Israel ressaltou que essa lógica de uso do poder de compra, por meio do NHS Supply Chain, pelo DHSC (o Ministério da Saúde britânico), é complementada com ações de outras instituições.

O estudo mostrou que esse arcabouço evoluiu em um período relativamente recente, em consonância com o desenvolvimento da política de inovação britânica, cuja versão atual é marcada pelo aprendizado que as instituições tiveram com as experiências de combate à pandemia de Covid-19.

Foram identificados quatro grandes focos estratégicos na política do DHSC, que têm conexão direta, tanto com o plano de desenvolvimento do NHS de longo prazo, como com a estratégia de inovação do Reino Unido. O primeiro está ligado à ideia de um reconhecimento, não só formal, como politicamente pactuado, do papel do Estado junto, tanto à indústria farmacêutica, mas principalmente à indústria de equipamentos médicos, no sentido de assegurar a continuidade, a segurança e a resiliência do abastecimento desses insumos.

Outro foco de ação é aprofundar a competitividade, no sentido da inovação e dinâmica tecnológica, em áreas em que o Reino Unido já tem liderança, para manter essa liderança, frente à concorrência de chineses, indianos e de outros.

O terceiro foco dessa política refere-se ao uso de dados por meio de tecnologias de informação e comunicação para suporte ao planejamento e desenvolvimento de produtos e serviços. Por fim, um quarto foco, em alguns nichos estratégicos de mercado, convergem com desafios do NHS, principalmente, o fortalecimento da atenção primária e a realização de diagnósticos, para reduzir a pressão sobre o sistema de saúde e enfrentar os desafios mencionados anteriormente.

A regulação, de acordo com os pesquisadores, tem papel atuante, ajudando a definir parâmetros e trajetórias tecnológicas a serem priorizadas. “O Nice é importante, no sentido de sinalizar caminhos e estabelecer metas, e a área de P&D é, também, muito bem conectada a isso”, analisou.

Cecília Lustosa abordou a política de descarbonização do NHS, que conta com um arcabouço já conformado, conforme explicou, tendo em vista a Lei das Mudanças Climáticas de 2008, com metas de redução de carbono em etapas até 2050. A pegada de carbono dos serviços de saúde, segundo a pesquisadora, é de 4.4% das emissões de gases de efeito estufa e 6,4% das emissões totais da Inglaterra. “O Reino Unido está totalmente alinhado com o último acordo climático, o Acordo de Paris”, informou Cecília, citando o programa Greener NHS, de 2020, que estabelece as metas de zerar as emissões líquidas de carbono até 2040, para as emissões que podem ser controladas diretamente pelo NHS (serviços de saúde e auxiliares), e 2045, para as emissões indiretas (em que o NHS pode influenciar, mas não controlar). Esse programa vincula descarbonização à política de inovação, à política de saúde e à política de compras, destacou.

Cecilia assinalou que a indústria farmacêutica e de equipamentos médicos, de grande relevância no CEIS, são responsáveis por 30% das emissões de gases de efeito de estufa, e o NHS não pode controlar essas emissões diretamente. Se a cadeia de suprimentos for levada em conta, o índice chega a 62%.

Para perseguir a meta de zerar as emissões, há todo um arcabouço legal voltado ao NHS, com dois instrumentos principais: o Net Zero Innovation Guide, um guia feito por um pool de universidades voltado a pesquisadores inovadores; e uma plataforma para compras, em que os fornecedores têm que registrar suas emissões, de modo a verificar se há ou não progresso na redução das emissões. No caso de não haver progresso, os fornecedores deixam de atuar no NHS. Há ainda ações, como suporte às micro e pequenas empresas e o Net Zero Supply Roadmap, que orienta os fornecedores.

Não há um financiamento direto para a descarbonização, explicou Cecília. Os recursos são oriundos de um programa nacional voltado a esse fim. “As partes devem elaborar um planejamento de longo prazo, para que cada ação tenha um financiamento adequado”.

Marina concluiu a apresentação destacando a importância do poder de compra do Estado e do programa de descarbonização, dois vetores do CEIS do Reino Unido, que poderiam servir de inspiração para o debate sobre o desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil. “Como lições para o SUS, observamos que, apesar dos desafios, o sistema do Reino Unido se desenvolve a partir de um planejamento estratégico, no qual são utilizadas políticas sistêmicas que buscam dar conta das características do país”.

Outro ponto destacado pelo grupo de pesquisadores é a articulação, coordenação e integração de políticas implícitas e explícitas. “O programa de descarbonização tem articulação com a política de compras. A política de compras é um eixo central do desenvolvimento do CEIS daquela região”, explicou Marina.

Foi observada, ainda, a institucionalização e a legitimação do uso do instrumento de compras públicas para produtos de menor e de maior complexidade tecnológica e uma articulação desse instrumento com políticas de desenvolvimento produtivo e inovativo.

No caso do programa de descarbonização, Marina sublinhou também a importância da reflexão, estabelecendo metas relacionadas a capacitação, sustentabilidade, com vista ao carbono zero, e promoção de pesquisa e inovação.

 

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