Por uma atenção primária que dê à população universalidade no acesso ao sistema de saúde
“É preciso acumular forças para emplacar o Sistema Único de Saúde e a Atenção Primária do futuro e isso implica emplacar o SUS constitucional na agenda de todos os governos”, destacou o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Nésio Fernandes, ao participar do seminário A Estratégia Saúde da Família na garantia do direito à saúde e defesa do SUS, realizado de forma remota, em 14/4/2023, pela TV Abrasco.
Sob a coordenação da pesquisadora Ligia Giovanella, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e do CEE-Fiocruz, que coordena a Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde (Rede APS), o debate buscou associar-se aos preparativos da 17ª Conferência Nacional de Saúde, na proposição da retomada da prioridade da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo de atenção integral, resolutiva, territorial e comunitária, para a garantia do direito universal à saúde.
Voltado a discutir as novas diretrizes para a política nacional de atenção básica, o seminário contou também com a participação do assessor técnico do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), Fernando Cupertino; do professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Luiz Augusto Facchini, integrante da Rede APS; e do vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais e Saúde (Conasems), Charles Tocantins, também presidente do Cosems do Pará.
Na mesa de abertura, estavam a presidente da Abrasco, Rosana Onocko, e Altamira Simões, representando do Conselho Nacional de Saúde, integrante da Comissão Intersetorial de Atenção Básica em Saúde e representante da rede nacional Lai Lai Apejo para população negra e DST/Aids.
Rosana Onocko chamou atenção para importância da superação das restrições do modelo de financiamento Previne Brasil, instituído no governo anterior à atenção primária brasileira, particularmente, para a questão da ESF. “O modelo de APS brasileiro é multiprofissional e original, mas foi desfinanciado”, lembrou.
Conforme observou Onocko, estudos mostram que nosso modelo é avançado e tem apresentado resultados. “Inúmeros trabalhos publicados no Brasil mostram a potência e o aumento de resolutividade, inclusive, do ponto de vista de custo-benefício e do que foi acrescentado aos núcleos de apoio à saúde da família, os Nasfs”.
Altamira Simões iniciou sua fala destacando a necessidade de colocar as pessoas na centralidade das discussões, “uma das principais estratégias do fortalecimento da atenção primária, do SUS e da possibilidade de acesso”. Ela compartilhou o quanto foi “representativo participar do seminário, como mulher preta, que vivencia e conta a própria história”. Para Altamira, não há estratégia de fortalecimento do SUS sem a “racialização” do debate.
“Com racismo não há democracia”, afirmou, lembrando que existem pesquisadores e pesquisadoras pretas, com outras formas de estudos, que podem contribuir para o fortalecimento do SUS e precisam participar do debate, não como objeto de estudo, mas como protagonistas das discussões. “Precisamos construir o SUS a partir dos princípios reais que o constituíram, com equidade, integralidade e universalidade e para isso precisamos ter um olhar que não seja tão rígido e tradicional, no entendimento que não invalide outros saberes e outras e outras formas de pesquisa”, avaliou.
Para a Altamira, conseguiremos fortalecer o SUS se ampliarmos o diálogo, os olhares, e valorizarmos os saberes dos territórios. “Chamar para dentro dos espaços as comunidades tradicionais, os povos de terreiro, ribeirinhos, os povos do campo, das florestas e os quilombos urbanos, porque somos nós que acessamos esses espaços”, propôs.
Em sua exposição, Nésio Fernandes destacou a importância consolidar nosso sistema de saúde como, de fato, uma das iniciativas mais avançadas do projeto de civilização de país. Ele fez referência à ministra da Saúde, Nísia Trindade, que vem desempenhando papel importante como primeira mulher sanitarista à frente da liderança da pasta.
Para ele, é preciso acumular forças para emplacar o SUS e a APS do futuro, e isso implica “emplacar o SUS constitucional na agenda de todos os governos”. A postura que a ministra tem adotado nesse ciclo, observou, aponta para a perspectiva de uma grande oportunidade de participação coletiva, de debate transversal.
De modo a pensar a APS do futuro, Nésio destacou a importância da dimensão do território e daquilo que se consegue reconhecer com “profundidade, com capilaridade no âmbito do Sistema Único de Saúde, que é capaz de garantir direito ao povo brasileiro e a qualquer cidadão do mundo”.
Conforme considerou o pesquisador, não é possível construir uma atenção primária diferente para o pobre, para a classe média e para os ricos.“Não podemos defender um discurso de uma APS integral e ampliada, e, na prática, termos uma operacionalização de serviços de saúde com as características daquilo que o Banco Mundial oferecia nos anos 90, como um modelo de APS para os países em desenvolvimento”.
Nésio criticou, ainda, uma atenção primária vinculada a questões específicas de grandes indicadores, de pactuações e de objetivos nacionais e internacionais. “Precisamos ter uma atenção primária que dê, de fato, a população, a universalidade de acesso ao sistema de saúde”.
Em relação aos desafios da APS, o secretário também destacou a importância da abordagem comunitária no territórioe o papel do médico para além dos consultórios. “Nossos médicos precisam sair do consultório e garantir qualidade de cuidado maior na atenção domiciliar”, apontou. “São muitos os desafios”, completou, pontuando ações que ainda têm baixa intensidade no sistema, como incorporação tecnológica, inovação em serviço, sustentabilidade e financiamento da infraestrutura de cuidado, desmobilização do cuidado multiprofissional, baixa cobertura de saúde bucal, além de uma fragilidade de estratégias de educação permanente.
“São necessárias estratégias nacionais de formação robusta, com mais saúde, e reformulação do programa Mais Médicos”, destacou Nésio, explicando que essas ações garantirão que “o serviço hoje oferecido na atenção primária possa se perpetuar em ciclos históricos de governo e em um grande sistema de saúde escolar, capaz de oportunizar espaço de vivência e criar uma trilha educacional estruturada, organizada, vinculada às especificidades e necessidades do sistema de saúde”.
Nésio considerou, ainda, a necessidade de se repensar o desafio de que nossas redes de atenção são também redes de vigilância em saúde. Conforme relatou, recentemente constatou-se, a partir de cruzamento de dados, o tempo que um médico fica vinculado a uma mesma equipe de Saúde da Família no Brasil é de, na média dos últimos dez anos, seis meses. “Como se implementam ciclos de melhorias?”, indagou. “Hoje são 10 mil, 11 mil médicos titulados em Medicina de Família e Comunidade. Temos que chegar a 100 mil, que possam atender, especialmente, na rede pública”.
Ele propôs, ainda, que se resgate o a centralidade da APS na saúde pública, fazendo com que os trabalhadores do SUS consigam se enxergar como sujeitos diretos da produção de cuidado e de dados, que possibilitem mais profundidade na análise da situação de saúde. “É possível vencer. Nós precisamos vencer esses desafios e nos reposicionar diante de todas essas questões”, considerou.
Charles Tocantins, trouxe em sua exposição a importância da universalização para o Sistema Único de Saúde, que, em sua visão, foi resgatada pela Estratégia Saúde da Família. “A ESF definiu a necessidade de se ter equipe por área territorial, relativa a determinado número de famílias e assistência, promoção e prevenção e foi um passo muito grande”.
Algumas regiões, de acordo com o Charles, ainda sofrem com a falta de cobertura, como a região Norte. Há dificuldade ainda de fixação dos profissionais das equipes de saúde da família. “A experiência mais exitosa foi a do Mais Médicos, o único momento em que a cobertura atingiu os mais pobres do Brasil”, lembrou, defendendo a volta imediata do programa, para que “tenhamos médicos fixados de maneira emergencial nas equipes”.
A valorização dos profissionais de Enfermagem “que têm segurado praticamente sozinhos os grandes programas de saúde pública do país”, foi também lembrada por Charles, que propõe capacitar essa equipe e dar “uma nova dimensão aos agentes comunitários de saúde”.
Para concluir, ele destacou que pensar a APS do futuro é pensar a partir de uma agenda de curto prazo que englobe maior financiamento desse nível de atenção, redimensionamento dos profissionais médicos nos territórios, definição do número de profissionais que das estratégias para fortalecer e ampliar o escopo da atenção básica.
Fernando Cupertino fez referência à apresentação de Nésio, ao destacar que o objetivo do sistema de saúde e, sobretudo, os cuidados na atenção primária, devem ser por todos e para todos. Para que isso aconteça, pontuou, é preciso que devolvamos a confiança para o paciente. “A atenção primária não deve estar isolada do restante do sistema, mas articulada com os outros níveis de atenção”, disse.
De acordo com Cupertino, o paciente mora na atenção primária. “Às vezes, ele sai, faz uma atenção especializada, hospitaliza-se, opera-se, mas retorna à sua casa, que é a atenção primária”.
Nesse sentido, acredita, de fato, a atenção primária deve ser a coordenadora do cuidado, sendo necessário, no entanto, “cumprir uma série de pressupostos e vencer uma série de barreiras”.
Cupertino também reforçou a importância do papel do agente comunitário de saúde e a necessidade de aumentar cobertura da saúde da família, com efetividade e qualidade.
“Não podemos continuar desviando os enfermeiros que integram as equipes de saúde da família das suas tarefas primordiais para fazerem funções meramente administrativas, por deficiência de financiamento e porque muitas vezes não há não há um profissional disponível”, observou.
Para Luiz Augusto Facchini, pensar uma atenção primária à saúde é pensar numa APS pública. “Não desejamos uma atenção terceirizada, privatizada, distante daquilo que é a responsabilidade pública e a capacidade pública de efetivar esse serviço. E, ao ser pública, precisa ser universal integral, resolutiva, de base territorial e comunitária e integrada numa rede regionalizada do Sistema Único de Saúde”.
De acordo com Facchini, devemos ter uma Estratégia Saúde da Família consolidada, com equipes multiprofissionais completas, capacidade resolutiva e desempenho dos profissionais acima daquilo que conseguimos hoje. “Que seja capaz de ter seus resultados admiráveis novamente reconhecidos pela população, por estudos nacionais, por estudos internacionais. Essas melhorias contínuas no acesso e na qualidade da atenção primária terão capacidade de promover a universalidade, a integralidade e a equidade, essa é a questão fundamental”, explicou.
“Quando incluímos aqueles que estão fora do sistema, avançamos na universalidade e na integralidade. Esses são elementos fundamentais e que precisam ser feitos evidentemente em pactuação tripartite”, observou.
Facchini destacou, ainda, a necessidade de garantir a universalização sob a perspectiva de trabalho das equipes, com “uma força de trabalho de alto nível, especialmente, vinculada a atenção primária à saúde”.
O aspecto educacional também foi abordado. “É preciso valorizar a universalização, também, da educação permanente e da capacidade avaliativa desse sistema”.
Para ele, a abrangência e a capacidade técnico-científica do SUS tornará o padrão do setor público referência de qualidade em saúde para o país. “O momento é de reconstrução, apósa imensa destruição que ocorreu no país, mas é também momento de construir estruturas e estratégias que ficaram intocadas ou se tornaram incipientes no Sistema Único de Saúde”, concluiu.