Pesquisadores debatem resiliência do SUS diante da tragédia no Rio Grande do Sul
Após as operações de resgate no Rio Grande do Sul e dos primeiros socorros aos desabrigados, a preocupação das autoridades se volta ao surgimento de diversas doenças causadas pela enchente, como leptospirose, diarreias, dengue, hepatite e tétano. Essa realidade aumentará as demandas sobre o sistema público de saúde na região. Para discutir a resiliência do SUS diante de eventos desse porte e do cenário que temos pela frente, delineado pelas mudanças climáticas, o blog do CEE-Fiocruz conversou com a equipe de pesquisadores do projeto integrado Tecnologia, Informação e Resiliência em Saúde Pública (ResiliSUS), liderado pelo pesquisador Alessandro Jatobá. Ouviu também o geógrafo Christovam Barcellos, pesquisador do Observatório de Clima e Saúde e professor do Icict/Fiocruz, sobre a situação da saúde pública após as enchentes.
“Os abrigos são locais de aglomeração e transmissão de doenças, principalmente respiratórias. A temperatura no Rio Grande do Sul como um todo está caindo, há pessoas mal agasalhadas, com frio”, diz Christovam Barcellos. Outra fonte de doenças é a água contaminada com matéria orgânica em suspensão vinda dos esgotos ou pela decomposição de animais mortos. “Muitas cidades, não só da região metropolitana de Porto Alegre, perderam o sistema de abastecimento de água. Então, as pessoas podem começar a improvisar algumas fontes de água que são perigosas. Vem aí, provavelmente, um surto de hepatite, de gastroenterite em geral, rotavírus, vários tipos de diarreia”, alerta o pesquisador.
Para a ampliação e a manutenção da assistência à saúde do estado, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou, no final de maio (21), a liberação de R$ 202,2 milhões, de um total de R$1,7 bilhão já destinado como recursos a emergências. E garantiu 1,2 milhão de doses das vacinas contra tétano, difteria, hepatites A e B, coqueluche, meningite, rotavírus, sarampo, caxumba, rubéola, raiva e picadas de animais. Os imunizantes estão disponíveis também nos abrigos, além das unidades de saúde em funcionamento.
Resiliência em saúde pública, segundo Jatobá, envolve a capacidade do SUS de responder a situações emergenciais como essa, mas vai além. “O que estamos tentando disseminar sobre o conceito de resiliência é como desenvolver a habilidade para que o nosso sistema de saúde, o SUS, seja capaz de sustentar suas funções essenciais, trabalhando em um nível de qualidade de serviço adequado, de acesso e de resolutividade, ao mesmo tempo em que se adapta a um evento extraordinário e inesperado”, explica. Pode ser desde um desastre de grande proporção, como esse que aconteceu agora no Rio Grande do Sul, uma crise sanitária como foi a pandemia de Covid, até outros acontecimentos de menor intensidade que ocorrem no dia a dia, em qualquer serviço de saúde. A capacidade adaptativa, transformadora do SUS, na avaliação do pesquisador, deve ser fomentada todo o tempo. Para isso “o sistema precisa manter-se desenvolvendo um conjunto de habilidades continuamente”, pontua Jatobá.
Outra integrante do grupo ResiliSUS, a pesquisadora Paula Castro Nunes, lembra que a ideia de resiliência na saúde começou a ganhar mais visibilidade a partir do desenvolvimento da Agenda 2030 da ONU, sendo muito associada aos desastres em decorrência das mudanças climáticas. Mais recentemente com a pandemia da Covid-19, o conceito de resiliência de sistema de saúde passou a expressar a necessidade de ele manter suas funções essenciais e ir se adaptando. Ela explica que o sistema de saúde está sob permanentes crises e choques, seja de financiamento, de falta de pessoal ou outros, que acabam causado variações nos resultados, na resolutividade e na qualidade dos serviços oferecidos. “Quando não se têm habilidades para lidar com isso no dia a dia, fica ainda mais difícil nos grandes eventos”, sublinha Paula.
Nesse sentido, Paulo Victor de Carvalho, também integrante dessa equipe, ressalta a importância de se reforçarem as funções essenciais do SUS, como a vigilância, que envolve o monitoramento e produção de evidências sobre as ameaças às condições de saúde, para enfrentar as doenças que estão vindo a reboque das enchentes. Ele citou como exemplo, a leptospirose. Conforme dados divulgados pelo governo do Rio Grande do Sul, até o dia 20 de maio, a Secretaria de Saúde (SES) havia identificado 304 casos não confirmados da doença e outros nove já confirmados. Há ainda a possibilidade de surgimento de focos de dengue, conforme alerta Christovam Barcellos, devido à grande quantidade de água empoçada.
Outro aspecto importante que merece um cuidado especial é a manutenção dos serviços da atenção primária nos abrigos. “É preciso garantir a assistência nesses locais”, explica Paulo, lembrando que o SUS ao direcionar equipes para os abrigos precisa fazer uma série de adaptações para tornar o atendimento minimamente adequado.
Diante de um desastre de grande proporção como esse do Rio Grande do Sul, diz o pesquisador, “somos obrigados a agir rapidamente, em um primeiro momento, sem ter uma ideia precisa da situação, para resgatar e salvar as pessoas”. Esse trabalho é multisetorial, articulando Defesa Civil e Força Nacional do SUS, por exemplo. Depois de algum tempo, passa a ser viável uma melhor compreensão da realidade, possibilitando ao SUS organizar suas ações. “Muitas pessoas foram desalojadas de suas casas, tiveram contato com água contaminada, estão tendo que se alimentar precariamente e lidar com doenças”, continua o pesquisador.
Em relação à importância de ser reforçar a resiliência do SUS, Jatobá alerta que “É importante direcionar recursos para as respostas imediatas, mas é preciso fortalecer outras capacidades do sistema”. Assim como Paulo Víctor, ele sublinha a importância de se investir, por exemplo, no monitoramento das ameaças de curto prazo, para que o sistema seja capaz de se antecipar ao que vai acontecer. “E, principalmente, aprender com as experiências passadas.”, sublinha. Ao lembrar dos hospitais de campanha montados durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, Paulo observa que “além de oferecer mais leitos, é preciso estabelecer os meios para que a estrutura do sistema de saúde consiga direcionar as pessoas até eles”.
A resiliência do SUS não deve estar associada apenas às demandas que surgem em função de grandes eventos, como as enchentes do Sul do país . Os serviços essenciais precisam ser mantidos. Essa é outra lição observada pela equipe e reforçada a partir da vivência da Covid-19. “Há pessoas, por exemplo, com diabete, hipertensão ou em tratamento de câncer. Não dá para interromper o atendimento delas”, ressalta Paula, lembrando ainda, que no momento atual, há cirurgias urgentes já marcadas, que precisam ser realizadas, ou aquelas urgenciadas em função do próprio desastre.
Nova área de investigação
Os estudos sobre resiliência aplicada à gestão do sistema de saúde integram uma área nova de investigação dentro da saúde coletiva no Brasil. O grupo de pesquisa ResiliSUS recentemente registrou o termo no Descritor em Ciências da Saúde (DeCS/MeSH), indexado na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e acaba de publicar, pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o livro A Resiliência na Saúde Pública.
O conceito reforça o objetivo do SUS de garantir a todos a qualidade do cuidado e envolve a capacidade de adaptação que o sistema tem que ter não apenas diante de grandes desastres. “Numa unidade de saúde, praticamente todos os dias, acontecem fatos que exigem adaptações como, por exemplo, um tiroteio próximo a unidade de saúde, um médico que falta ou um agente comunitário que precisa lidar com uma situação extrema na comunidade”, pontua Paula. Essas mudanças exigem formas diferentes de se pensar o sistema de saúde para melhor operacionalizar as adaptações necessárias.
Os estudos sobre resiliência em sistemas de saúde em outros países não são uma novidade. “Na literatura internacional, a resiliência em sistemas de saúde já foi conceituada. Há linhas de pesquisa específicas em alguns países, voltadas para o tema”, diz Paulo Víctor, um dos primeiros pesquisadores dedicados a estudar o assunto no Brasil. O entendimento do conceito de resiliência nos sistemas de saúde, no entanto, passou por uma mudança de paradigma após a pandemia da Covid-19. “O paradigma vigente, até a pandemia era o da segurança. Pensava-se (que tínhamos) sistemas seguros de saúde”, recorda-se Jatobá.
A Covid-19 abalou esse conceito de segurança. “Antes acreditava-se em elementos pra fortalecer a capacidade institucional e postulados. Se acontecer isso, fazemos aquilo”, recorda-se Paulo, citando o que aconteceu nos Estados Unidos, um país em que a capacidade hospitalar instalada não conseguiu se materializar em uma resposta efetiva, ao longo do tempo. “Apesar da grande disponibilidade de hospitais, leitos, dinheiro, foi um dos lugares que pior enfrentou a Covid”, observa o pesquisador.
A vivência da pandemia, na avaliação do ResiliSUS, mostrou a necessidade de se pensar a resiliência sob um novo prisma, como um objetivo do processo de gestão dos sistemas de saúde. “ Na Covid, ouvimos dizer que o SUS foi um sistema resiliente, na medida em que movimentou recursos para construir hospitais de campanha, para comprar vacina etc. Isso mostra, de fato, potencial para a resiliência”, explica Paulo. No entanto, no Rio de Janeiro, por exemplo, ele se recorda que, nessa época, cirurgias eletivas tiveram que ser adiadas. “Daí a importância de se pensar como operacionalizar a resiliência”, pontua.
Em sua avaliação, a discussão em torno das consequências da Covid, das mudanças climáticas, com o surgimento de eventos como o do Rio Grande do Sul, assim como do advento de novas doenças e futuras pandemias, reforça, ainda mais, a necessidade de adaptações das cidades e, também, dos sistemas de saúde. “Teremos que nos preparar para situações desconhecidas. Às vezes, a necessidade de adaptar é ditada pela falta de condições, como, por exemplo, ter uma capacidade (do sistema de saúde) menor do que a demanda, ter filas para alguns procedimentos”, explica Paulo.
Uma situação nova requer novas maneiras de agir, defende o grupo de pesquisadores. Diante da necessidade de se fazer um ajuste aqui e outro ali, o gestor precisa pensar sempre nas adaptações e aprender com elas. “Se a adaptação é boa, ela pode ser desenvolvida e utilizada no futuro, se é ruim, não deve ser replicada.”, diz Paulo, enfatizando que os resultados ruins não devem ser ignorados pela gestão ao investir na melhoria da capacidade de adaptação do SUS.
“No Brasil, a resiliência ainda não é uma cultura dentro do sistema de saúde”, observa Paula, esclarecendo que um dos objetivos do ResiliSUS é contribuir para “criar essa cultura da resiliência na gestão em saúde para tornar o SUS mais preparado para lidar tanto com desastres de grandes proporções, como com todas as pequenas situações nas unidades de saúde que exigem modificações e adaptações”.
O desenvolvimento do conceito de Resiliência de Sistemas de Saúde pelos pesquisadores foi resultado de anos de pesquisa. Atualmente, o grupo se dedica a desenvolver métodos para análise e gestão da resiliência no SUS. “Estamos focados na epistemologia da resiliência e sua aplicação. Isso envolve teorias aplicáveis, práticas, métodos e ferramentas de gestão para tornar a resiliência um atributo que o SUS possa gerenciar”, diz Jatobá.
No nível macro da gestão, o grupo tem estudado os indicadores e formas de prever o potencial do SUS para um desempenho resiliente. No nível micro, os pesquisadores têm se dedicado a estudar o funcionamento das unidades de saúde e de serviços. “Sabemos que para o sistema ser resiliente temos que ter uma certa estabilidade nas funções essenciais em um nível aceitável de serviços”, explica Paulo. No entanto, em sua avaliação, no Brasil, observa-se uma grande variabilidade nesses indicadores e funções, como, por exemplo, mostra o número de óbitos infantis.
Coeficiente de resiliência
“Para avaliar a performance do sistema de saúde, o grupo desenvolveu um coeficiente de resiliência em saúde - o CoReS, que mostra que o sistema é mais resiliente à medida que consegue desenvolver habilidades no cotidiano de serviços. Os pesquisadores analisaram, durante muito tempo, a atenção primária sob a ótica da resiliência, observando, por exemplo, como que as equipes de saúde da família se adaptam aos elementos do contexto dos territórios em que estão inseridas. Outro aspecto estudado é a regulação. “Estudamos a rede, como é feita a organização das filas para os procedimentos que têm maior demanda e menos capacidade e como os gestores se adaptam a isso”, diz Jatobá.
Para o pesquisador, não é surpresa o SUS ter demonstrado resiliência na pandemia e estar demonstrando potencial para isso no Rio Grande do Sul, afinal “o SUS tem sua gênese voltada para a resiliência”. Sua estrutura descentralizada, com viés democrático, como observa Paulo, promove a resiliência.
A intersetorialidade é outro aspecto da gênese do SUS, sublinhado por Jatobá, que permite que o sistema se articule com diversos setores da sociedade. São características como essas - estrutura descentralizada, articulação intersetorial -, que, não avaliação dos pesquisadores, podem ser fortalecidas para, em um próximo evento da magnitude do último no Sul, tenham sido incorporados de maneira mais consciente, reforçando a resiliência do SUS. “Estamos vendo como é importante que o SUS seja capaz de agir com outros setores da sociedade. As mudanças climáticas, assim como a instabilidade política, as guerras, as crises socioeconômicas, a migração, e a transição demográfica demostram ainda mais a necessidade de se reforçar esse aspecto intersetorial dos sistemas públicos universais de saúde”, conclui.
Acesse o artigo 'A resiliência do Sistema Único de Saúde não está (somente) nas respostas aos desastres' , publicado na Revista de Saúde Pública da USP.