“A mulher se torna mãe somente de um filho nascido”: pesquisadoras explicam por que PL do aborto é retrocesso nos direitos das mulheres
Por Danielle Monteiro*
Com regime de urgência recentemente aprovado, o Projeto de Lei 1904/24 tem sido alvo de críticas e gerado uma série de discussões. A medida estabelece o prazo máximo de 22 semanas de gestação para abortos legais, inclusive em casos de estupro, e aumenta de dez para 20 anos a pena máxima para quem fizer o procedimento, equiparando, assim, a interrupção da gravidez ao crime de homicídio.
No último dia 15, em suas redes sociais, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, defendeu que o Estado deve “garantir” às vítimas de estupro as condições para fazer o procedimento, como previsto em lei, e alertou que o PL é injustificável e desumano. No ano passado, a ministra revogou portaria do Governo Bolsonaro que impunha obstáculos ao aborto legal.
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Em entrevista ao Informe ENSP, as pesquisadoras da Escola e coordenadoras da pesquisa Nascer no Brasil, Maria do Carmo Leal e Silvana Granado, explicam por que o PL representa um retrocesso na legislação que versa sobre o tema.
Confira abaixo.
Pessoas a favor do PL contestam a necessidade de interrupção da gravidez após 22 semanas. Por outro lado, estudos apontam diversas dificuldades no acesso ao aborto legal, que fazem com que o tempo limite para a realização do procedimento seja ultrapassado. Como as senhoras enxergam o Projeto de Lei 1904/24? E quais as principais barreiras no acesso ao aborto previsto em lei, enfrentadas por mulheres e, principalmente, por meninas e adolescentes vítimas de violência sexual?
Maria do Carmo Leal e Silvana Granado: Como uma enorme perversidade contra as mulheres, um retrocesso de uma legislação já tão retrógada. O atraso na efetivação do aborto legal se dá por inúmeras questões, entre elas, a demora em identificar a gravidez, a falta de equipe de apoio nos serviços de saúde e a mais importante, segundo publicação de O Globo de 15/06/2024: no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), consultado em abril, havia apenas 158 serviços que realizavam a interrupção legal da gravidez, distribuídos em somente 1,9% das 5.570 cidades brasileiras. No entanto, o fato de ter o cadastro não implica, necessariamente, em dispor de profissionais voltados ao atendimento desse procedimento. Assim, a mulher/menina precisa viajar por conta própria em busca de hospital que, de fato, realize o aborto previsto em lei. São muitos os casos relatados pela imprensa diariamente nos jornais de circulação. Assim, pode-se concluir que esse direito não está garantido às mulheres brasileiras.
O que o Projeto de Lei 1904/24 representa para os direitos das mulheres no Brasil?
Maria do Carmo Leal e Silvana Granado: Temos um código penal de 1940, que já está obsoleto há muitos anos. Um país que registra quase 75.000 estupros por ano, em sua grande maioria crianças de baixa renda e negras, precisa rever sua legislação para ampliar a proteção às vítimas e punir os estupradores.
O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo princípio da dignidade humana reconhece o valor intrínseco de cada indivíduo e estabelece que todas as pessoas devem ser tratadas com respeito, igualdade e liberdade. Este é o princípio que está sendo violado no abuso sexual, na gravidez consequente a um estupro e na obrigação de levar adiante esta gravidez.
Quando é necessária a interrupção de uma gestação tardia, legalmente prevista em qualquer idade gestacional, sabe-se que há barreiras de acesso aos serviços de saúde para o exercício desse direito. As meninas são, majoritariamente, afetadas por isso porque, por vezes, a identificação da prática da violência sexual não é fácil, constitui-se em tabu e, quando ocorre em uma criança, ela sequer reconhece que está grávida.
O Brasil falha novamente ao não promover a ampla oferta aos diferentes métodos contraceptivos às adolescentes e não ter política de educação sexual nas escolas. E mais da metade dos partos ocorrem sem que a mulher tivesse intenção de engravidar, segundo os dados da pesquisa Nascer no Brasil. Portanto, é preciso avançar com as políticas de contracepção e não punir mulheres que interrompem uma gravidez não desejada, muito especialmente nos casos previstos em lei: quando há risco de vida para a mulher; quando a gravidez é decorrente de estupro e quando o feto é anencéfalo.
Obrigar uma menina a levar adiante uma gravidez decorrente de um estrupo é ampliar o trauma causado pelo estuprador, podendo trazer mais impactos à sua saúde mental, contribuir com evasão escolar, reduzindo a chance de constituir uma carreira profissional, e mesmo expô-la ao risco de morrer.
De acordo com dados preliminares referentes a 2022 da Nascer no Brasil II: pesquisa nacional sobre aborto, parto e nascimento, o número de mortes maternas de mulheres negras é o dobro em comparação com o de mulheres brancas, sendo que as de cor preta se hospitalizam mais por aborto do que as pardas e brancas. Vale também lembrar que o Brasil assumiu, junto às Nações Unidas, um compromisso de redução de mortes maternas até 2030. Que impacto a aprovação do PL 1904 pode ter na incidência de mortes maternas no país e no alcance dessa meta?
Maria do Carmo Leal e Silvana Granado: Mulheres negras e pobres são marginalizadas e maiores vítimas de aborto, morbidade materna grave e morte materna, sendo o aborto a quarta causa de morte materna no Brasil. Historicamente o Coeficiente de Mortalidade Materna é o melhor indicador para caracterizar o nível de desigualdade e discriminação de gênero entre os países. Países com mortalidade materna baixa são, simultaneamente, países que cultivam os valores de justiça social, equidade e tem os melhores índices de felicidade.
O Brasil assumiu, junto às Nações Unidas, um compromisso de reduzir o Coeficiente de Mortalidade Materna para 30/100.000 nascidos vivos, quase a metade dos valores atuais desse indicador no país, mas o PL 1904/24 ajuda o país a se distanciar ainda mais do alcance dessa meta, porque significa mais discriminação, vulnerabilidade e sofrimento psíquico e social para as mulheres e suas famílias.
Se o PL for aprovado, meninas e mulheres vítimas de estupro que interromperem a gravidez após 22 semanas de gestação terão pena maior que a de seus estupradores. Que relação essa medida tem com o machismo estrutural que atravessa os diversos campos da sociedade brasileira? E por que, no Brasil, ao contrário do que ocorre em alguns outros países, a legislação sobre interrupção da gravidez se torna cada vez mais rígida?
Maria do Carmo Leal e Silvana Granado: Vivemos em um país machista e misógino, cujos direitos das mulheres são discutidos e definidos por uma maioria masculina, conservadora e hipócrita. O que não foge à regra no PL 1904/24, projeto de lei que equipara o aborto ao crime de homicídio, mesmo em situações previstas na legislação atual. O PL 1904/24 poderá ser votado diretamente em plenário na Câmara dos Deputados, sem a necessidade de passar por comissões parlamentares. Com regime de urgência aprovado, atinge, majoritariamente, crianças vítimas de violência sexual.
Antes de buscar punição, seria necessário oferecer hospitais de referência em todas as macrorregiões de saúde dos estados e, quando não houvesse condições, a transferência da mulher/menina para o hospital adequado deveria ser feita por meio do SUS, reafirmando o direito dessa cidadã. Um terço das mulheres que conseguiram realizar o aborto legal precisaram sair de suas cidades em busca do atendimento.
E, mais que tudo, é necessário que a escola ofereça, em seu currículo escolar, para meninas e meninos, informação qualificada sobre a educação e saúde sexual e reprodutiva, orientando sobre o direito à experimentação sexual de forma protegida, evitando a maternidade/paternidade não planejada.
O país vive um momento de incompreensíveis prioridades na área da saúde. Diante de tantas carências e precários indicadores de saúde da população brasileira, recentemente o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução em que proibia os médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal, necessário para o aborto em idades gestacionais mais avançadas, o que demandou uma atuação imediata do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para suspensão da medida, por ser anticonstitucional.
Por último, o nome do movimento “Menina não é mãe, estuprador não é pai” merece uma correção porque o estupro não gera mãe, nem filho, gera uma gestante e um feto. A mulher se torna mãe somente de um filho nascido.
* Entrevista publicada no Informe ENSP em 19/06/2024