Pesquisador apresenta contrapontos em relação ao enfrentamento da epidemia de dengue no Brasil
O pesquisador da Fiocruz Rivaldo Venâncio da Cunha esclarece em entrevista ao site da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) que embora a dengue seja endêmica no país, não se justifica a decretação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). Segundo Rivaldo, em resposta a matéria veiculada pela SBMT, o cenário da doença não preenche todos os critérios estabelecidos no decreto n° 7616/2011 para que seja decretada Espin.
Leia a seguir.
Do site da SBMT
Diante da atual situação da epidemia de dengue no Brasil, o Dr. Rivaldo Venâncio, professor titular aposentado da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Rio de Janeiro), ressalta a importância de considerar diferentes perspectivas no debate sobre as medidas necessárias para enfrentar a doença. Profissional com vasta experiência no campo da saúde pública, ele defende a importância da diversidade de opiniões sobre temas relevantes para a sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito ao Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, segundo ele, algumas argumentações sobre o tema podem parecer convincentes à primeira vista, mas precisam de análises mais aprofundadas.
Ao ser questionado sobre a possibilidade de declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) diante da atual epidemia de dengue, o Dr. Venâncio analisa os critérios estabelecidos pelo Decreto nº 7616, de 17 de novembro de 2011, da Presidência da República. Ele destaca que, embora a situação apresente desafios significativos, como a desorganização na rede de atenção à saúde, a epidemia não preenche todos os critérios necessários para a declaração de Espin no momento atual. “No inciso 1º do artigo 3º, são definidas as situações epidemiológicas necessárias para que seja feita declaração de ESPIN, surtos e epidemias que: 1. Apresentem risco de disseminação nacional; 2. Sejam produzidas por agentes infecciosos inesperados; 3. Representem a reintrodução de uma doença erradicada; 4. Apresentem gravidade elevada; 5. Extrapolem a capacidade de resposta da direção estadual do Sistema Único de Saúde.
Em relação ao primeiro item, o Dr. Venâncio argumenta que a dengue é causada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, presente em quase todos os municípios brasileiros, ou seja, não é o caso de uma doença que possa se disseminar. Por outro lado, ele demonstra preocupação em relação aos sorotipos circulantes, que não estão presentes de forma homogênea em todos os estados, razão pela qual podem alterar as situações locais. A seu ver, não preenche esse critério de risco de disseminação nacional. Sobre o segundo item, surtos ou epidemias que sejam produzidos por agentes infecciosos inesperados, ele assinala que de forma alguma é o caso. No que diz respeito ao terceiro item, o pesquisador lembra que a dengue vem provocando epidemias anuais no Brasil desde 1986, variando apenas as localidades nas quais o número de casos notificados é mais elevado.
No tocante ao quarto item, ele afirma que também não é o caso. “Esse item até poderia ser considerado, mas para localidades isoladas. Vejamos o caso do Distrito Federal que, aparentemente, tem sido uma das situações mais preocupantes: em 2023, foi o sexto estado em coeficiente de incidência, sendo que a partir do mês de novembro daquele ano passou a registrar clara elevação no número de casos da doença, situação que se tornou gravíssima em final de janeiro deste. Ou seja, desculpem a sinceridade, houve tempo para organizar a rede assistencial. Em algumas localidades, se observa razoável desorganização da rede de atenção de modo a fazer frente a uma doença que pode cursar de forma grave, mas cujo tratamento, na ampla maioria das vezes, se dá com água, com solução fisiológica, tratamento por demais conhecido. Não me parece que o curso clínico da doença neste momento esteja mais grave do que em outros. O que vemos é a repetição de erros, seja na organização do serviço, seja no protocolo de atendimento, erros que já estamos cometendo há anos, infelizmente”, acrescenta.
Finalmente, em relação ao quinto item, ele reconhece ter algumas dúvidas. “São Paulo, que é o estado mais rico do Brasil, decretou emergência e não ultrapassou a sua capacidade de resposta. O mesmo aconteceu com Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Quando listamos os dez estados com maior coeficiente de incidência nesses dois anos, excluindo-se o Acre, devido ao Oropouche, verificamos que 70% são os mesmos. Reconheço que há situações locais muito complexas e muito difíceis, mas não considero que o quinto item do inciso 1º do artigo 3º seja aplicado ao conjunto desses estados. Posso estar equivocado, claro, mas a meu ver nenhum dos itens preenche os critérios para declaração de uma ESPIN, hoje, 18 de março de 2024”, pontua. No entanto, segundo ele, não podemos descartá-la de forma peremptória, pois devemos avaliar diariamente a dinâmica de ocorrência da doença e reavaliar a posição. “Daqui a alguns dias, semanas ou meses, a ESPIN poderá ser necessária, sendo declarada em estreita sintonia com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), para que se possa alcançar os objetivos desejados”, completa. Além disso, o pesquisador enfatiza que a medida, por si só, não resolve os problemas e menciona a importância do trabalho conjunto de estados, municípios e instituições da sociedade civil na busca por soluções efetivas para enfrentar a situação.
Em relação à recente declaração do Dr. Wanderson Kleber Oliveira, em matéria veiculada na Newsletter da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical sobre a necessidade de ser declarada Espin para mobilizar recursos e prioridades no combate à dengue, o Dr. Venâncio expressa seu respeito pelas opiniões divergentes e diz concordar com alguns pontos levantados, mas discorda da idéia de que a Espin seria a solução milagrosa para os problemas enfrentados.
“Concordo quando ele se refere à necessidade de adoção de medidas preventivas quando ainda possível, e de medidas para mitigar determinadas situações durante a atual epidemia, reduzindo casos graves e mortes. No entanto, considero um despautério a afirmação de que as medidas de controle e mitigação aplicadas durante a pandemia se mostraram eficazes no enfrentamento da Covid-19. Jamais poderemos esquecer que boa parte das mais de 700 mil mortes causadas pela Covid-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas; da mesma forma, não podemos olvidar condutas inapropriadas de dirigentes, sobretudo do Poder Executivo Federal, promovendo aglomerações, negando a ciência e o desenvolvimento tecnológico e recomendando tratamentos ineficazes para a doença, como cloroquina e ivermectina, por exemplo. Também concordo que a incapacidade local, que demanda apoio federal, deve ser considerada. Isso tem sido feito e todas as localidades com dificuldade que têm pedido apoio ao Ministério da Saúde estão sendo atendidas e estão recebendo ajuda de técnicos de várias instituições”, declara. Ainda segundo o pesquisador, o mesmo, vale em relação aos aportes financeiros, que provavelmente são insuficientes, como insuficiente é o financiamento do SUS. No entanto, é preciso levar em consideração que estados e municípios têm gestores, e esses merecem respeito. O Ministério não pode intervir na gestão local, a não ser quando demandado para tal. Precisamos levar em consideração esses aspectos, que são fundamentais”, diz.
Ao analisar a Espin decretada durante a pandemia de Covid-19 e seu enfrentamento, o Dr. Venâncio frisa que quem superou as grandes dificuldades e reduziu o sofrimento da população não foi apenas o Ministério da Saúde ou a decretação da ESPIN, mas sim o trabalho árduo de estados e municípios, liderados pelo Conass e o Conasems. Ele menciona o envolvimento de diversos atores, como o consórcio Nordeste, os meios de comunicação, instituições como a iniciativa Todos pela Saúde, universidades e entidades como a Fundação Oswaldo Cruz e o Butantan.
“No caso da dengue, devemos sempre considerar os fatores estruturais envolvidos na proliferação do transmissor do vírus, como o secular déficit de saneamento básico, coleta de lixo urbano e fornecimento regular de água para uso doméstico, além do comportamento da população em descartar objetos que podem acumular água, problemas que não serão superados com a declaração de uma ESPIN.”, esclarece.
Ainda segundo o Dr. Venâncio, têm sido observados equívocos na fase inicial da epidemia de dengue deste ano. Por exemplo, localidades que decretaram emergência sanitária e instalaram tendas de hidratação que encerravam o atendimento às 18/19h, sem ter para onde encaminhar os pacientes que ainda precisavam de hidratação. “É inaceitável que, após quarenta anos convivendo com a mesma doença, cometamos esse tipo de erro. Infelizmente, essa situação tem sido observada”, sublinha.
Outro problema apontado é o caso de pessoas que chegam aos locais de atendimento apresentando sinais evidentes de gravidade, mas, mesmo assim, são dispensadas, muitas vezes porque o local não funciona 24 horas e não há uma rede de retaguarda estabelecida para encaminhar esses pacientes que ainda necessitam de cuidados dos profissionais de saúde e hidratação venosa. “Continuamos observando esses equívocos. Tudo isso contribui para o elevado número de mortes que, lamentavelmente, será maior do que em 2023. Estamos lidando com uma doença que pode se tornar grave, mas cujo tratamento principal, na maioria das vezes, é a solução fisiológica. Não podemos continuar contabilizando mortes por dengue neste País”, acrescenta.
Por fim, o Dr. Venâncio realça a importância da transparência e da abordagem baseada em evidências na resposta à epidemia de dengue e reitera que as informações têm sido divulgadas de maneira transparente pelo Ministério da Saúde. No entanto, criticou a idéia de serem realizadas coletivas de imprensa diárias, com abordagem excessivamente midiática, preferindo focar em ações concretas e coordenadas para enfrentar os desafios. “É bom deixar claro que as opiniões aqui expressas são pessoais, não representando, necessariamente, o pensamento das Instituições com as quais tenho vínculo empregatício (Fiocruz e UFMS). Embasei meu posicionamento em anos de experiência e conhecimento técnico, tendo vivência no campo da saúde pública, ocupando diversas posições dentro do sistema de saúde, desde gestor até pesquisador, com destaque para a atuação como Coordenador da Comissão Especial de Combate ao Dengue e de Prevenção de Reurbanização da Febre Amarela no Rio de Janeiro em 1987, nomeado pelo então Secretário de Estado de Saúde, Sérgio Arouca”, conclui o pesquisador.
* Publicado no site da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), em 18/03/2024.