Paulo Amarante e Robert Whitaker: um olhar crítico sobre a patologização do sofrimento psíquico
Um embate entre política de saúde e política de mercado, pela defesa do uso saudável dos medicamentos e contra a patologização do sofrimento humano, pautou as análises do sanitarista Paulo Amarante e do jornalista estadunidense Robert Whitaker, em vídeos para o blog do CEE-Fiocruz, durante o 7º Seminário A epidemia das drogas psiquiátricas, realizado em 9 e 10/11/2023, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e com transmissão on-line. Idealizado por Paulo Amarante e pelo psicólogo Fernando Freitas, o seminário se realiza desde 2017 para discutir as causas e riscos do modelo medicalizante da Psiquiatria, bem como apontar alternativas a essa abordagem. Robert Whitaker, autor de três livros sobre o tema e criador da rede Mad in The World, como parte de um projeto político social que busca ampliar a reflexão crítica sobre a Psiquiatria, esteve presente já na primeira edição do seminário.
Paulo Amarante: ‘É preciso combater os mitos da psiquiatria e a patologização do sofrimento’
Robert Whitaker: O mundo está ampliando seu olhar crítico sobre as drogas psiquiátricas
Um dos pioneiros na luta antimanicomial no Brasil, Paulo Amarante, pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), ressalta que é preciso enfrentar o modelo de mercado que tem dominado a prática psiquiátrica, “controlada e financiada pela indústria farmacêutica com o objetivo transformar a experiência humana em doença, em um processo reduzido, explicativo, causal e etiológico”, conforme define.
“Remédio tarja preta não dá para ser consumido como se fosse bala”, defende Paulo, em fala contundente contra o uso cada vez maior de psicoativos pela Psiquiatria, a despeito de “efeitos colaterais gravíssimos”. Inspirado pelo trabalho do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), crítico da psiquiatria tradicional que revolucionou, a partir da década de 1960, o tratamento de pessoas com transtornos mentais nas cidades italianas de Trieste e Gorizia, Paulo sempre lutou por uma mudança radical na psiquiatria. “Esse seminário marca a importância, na agenda brasileira [da saúde], do debate sobre a questão da medicalização e da patologização”, diz, alertando que a psiquiatria vem “transformando a experiência humana em algo patológico” e atribuindo as manifestações de sofrimento psíquico a alterações bioquímicas. Um exemplo é a explicação da depressão como problema de recaptação de serotonina.
“A psiquiatria que está dominando atualmente é uma psiquiatria restrita, pobre, que só pensa em termos de bioquímica, inclusive se autodenominando equivocadamente de biológica”, analisa, observando que a Biologia não pode ser entendida apenas pela interação de elementos químicos. “Ela é complexa, é a interação da vida, é a simultaneidade de eventos”. A experiência psíquica, diz, deve ser abordada em toda a sua complexidade. “Para pensarmos o humano, temos que pensar a Filosofia, a cultura, as Ciências Sociais e a Psiquiatria”, diz o pesquisador.
Paulo ressalta que o seminário não pretende se postar contra os medicamentos, mas levar a pensar na forma como essas substâncias de se situam em uma política de saúde e mostrar a necessidade de se enfrentar o modelo de mercado observado na Psiquiatria”, ampliando o espectro de doenças e o número de pessoas que supostamente têm transtorno, e atribuindo ao uso de medicamento a cura para todos os males.
O sanitarista chama atenção para o uso do termo antipsicótico pela indústria farmacêutica, em analogia ao termo antibiótico, “como um medicamento que, de fato, fosse curar uma doença pontualmente”, quando o que se tem são “pessoas tomando um antipsicótico ou antidepressivo, a vida inteira, sem conseguir retirar”.
Na avaliação do pesquisador, é preciso discutir outras formas de tratamento e de relação das pessoas com a sociedade, que levem em consideração os diversos contextos que envolvem os transtornos mentais e apontem caminhos inovadores. O seminário e outras iniciativas como o podcast Enloucast, parceria do Laps/Ensp com o CEE, lançado durante o evento, vão nesse caminho. “Estamos ampliando esse debate, porque tanto usuários, quanto familiares e profissionais da saúde acreditam nesses mitos criados pela indústria farmacêutica de que a doença psiquiátrica é um distúrbio neuroquímico”, alerta, destacando a psicoterapia e a arte-cultura como caminhos possíveis para ressignificar a vida, construir uma identidade, ampliar o sentimento de pertencimento, cooperação e coletividade. “Cuidar de si é cuidar dos outros, e cuidar dos outros é cuidar de mim”.
Um olhar otimista sobre a desmedicalização do sofrimento psíquico
Com duas exposições durante no seminário, Robert Whitaker buscou situar, na primeira – Visão global da luta contra a medicalização –, em 9/11, a origem da abordagem medicalizante que vem orientando a Psiquiatria ao longo das décadas, apontando o lançamento da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM III), em 1980, como disparador de uma narrativa com foco na doença, que seria “exportada para o mundo todo”. Já na conferência Experiências contemporâneas de desmedicalização e alternativas ao modelo biomédico, proferida em 10/11, o jornalista trouxe as “iniciativas de resistência” ao modelo medicalizado, que, conforme observou, vem ganhando força nos últimos dez anos.
Responsável pela criação da rede Mad in the World, que teve como embrião o site Mad in America (do qual derivou o Mad in Brasil, um dos primeiros afiliados, trazido ao país por iniciativa de Paulo Amarante e Fernando Freitas), e já conta com o envolvimento de 15 países, ele se diz otimista. “Essa é uma evidência de que muita gente, em muitas partes do mundo, quer mudar a forma de pensar sobre esse tema”, considera no vídeo. Para Robert o debate “mudou muitíssimo” nos últimos anos. “Até dez anos atrás, muito pouca gente falava de modo crítico sobre as drogas psiquiátricas. Hoje, mais gente no mundo está dizendo que essa forma de cuidar das questões psiquiátricas não está se mostrando eficiente. A saúde mental piora”, considera.
Robert convida a discutir se a ascensão das drogas psiquiátricas “trata-se de um caso de ciência ou de marketing, para vender uma história que trouxe lucros a determinado grupo de pessoas”. Em sua primeira exposição, refere-se lançamento do DSM III, que diferentemente das edições anteriores, vai apontar que o foco do sofrimento mental está no indivíduo, em um desequilíbrio químico no cérebro. “É uma mudança inacreditável de conceito”, critica Robert, observando que esse pensamento passará a ser imposto a nós sustentado em descobertas científicas”.
De modo a resgatar uma credibilidade que a Psiquiatria vinha perdendo, relatou Robert, a indústria farmacêutica e a Associação Americana de Psiquiatria (APA) trataram de promover um rebrand [reposição de marca]. “A forma de fazer isso foi vestir os psiquiatras com jalecos brancos, a serem vistos como médicos que curam as doenças do cérebro, da mesma forma que fazem os médicos que tratam de doenças infecciosas e que têm grande prestígio na sociedade. E disseram: ‘Vamos reconceituar isso como problema permanente’”.
Robert destaca o papel do Brasil na luta contra a medicalização e a patologização do sofrimento, levada à frente com suporte de instituições como a Fiocruz. “Não temos algo assim nos Estados Unidos”, diz. “O país em que a rebelião contra o modelo medicalizado está mais forte é o Brasil, e o que acontece aqui é muito importante para ampliar a luta contra essa filosofia danosa que nos foi imposta”.
Conforme defende o jornalista, é preciso olhar de outra forma para o que se passa com as pessoas, entendendo que os transtornos não estão somente em sua cabeça, mas nos espaços entre a pessoa e a sociedade. “Há, portanto, que se melhorar esse espaço entre a pessoa e a sociedade. E não se trata de curar. Até dez anos atrás, essa era a ideia”.
O jornalista faz um alerta especial quanto à medicalização em crianças e jovens. “Nos Estados Unidos, 30% dos alunos quem vão para a universidade estão tomando medicamentos psiquiátricos. E, após quatro anos, o índice aumenta para 50%! Quer dizer, há um pensamento de que nossos jovens estão doentes. É um horror! Temos que mudar isso”.
Assista a íntegra em inglês da fala do Robert Whitaker no
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2º dia - tarde em inglês