Os novos justiceiros: lançamento do Centro Brics de P&D de Vacinas e a guerra Rússia X EUA/Otan
A pandemia de Covid-19 demonstrou o acesso injusto e desigual dos países em desenvolvimento à vacinação, especialmente na África, na Ásia e na América Latina, onde muitos países ainda estão lutando para salvaguardar suas populações. A cerimônia de lançamento virtual do Centro Brics de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de Vacinas (CPDV/ Brics) ocorreu em 22 de março de 2022. A iniciativa do Centro apoia-se em compromissos com o multilateralismo, solidariedade e igualdade e pretende garantir que as vacinas sejam um bem público global, ao se tornarem disponíveis e acessíveis a todos que precisam, propiciando uma distribuição mais equitativa das vacinas nos países em desenvolvimento.
A África do Sul propôs pela primeira vez a criação de um Centro de P&D de Vacinas durante sua presidência em 2018. Naquele mesmo ano, os líderes do Brics abraçaram a ideia ao emitir a Declaração de Joanesburgo, que menciona: “estamos comprometidos em fortalecer a cooperação em P&D de vacinas e saudamos a criação do Centro Brics de P&D de vacinas”. Em 2020, a Declaração de Moscou enfatizou o propósito de “recordamos a decisão da Declaração de Moscou de estabelecer o Centro Brics de P&D de vacinas”. Em 2021, o que era intenção começou a tomar forma, quando, na Declaração de Delhi, o Brics “saudou o progresso para o lançamento do Centro Brics de vacinas em formato virtual”. Isso porque a China havia sido o primeiro país a disponibilizar um centro nacional, em maio daquele ano, com a Sinovac Life Sciences Co. Ltd. Na Cúpula daquele ano, o presidente Cyril Ramaphosa expressou a vontade de fincar um Centro de P&D de vacinas em seu país. Além da Sinovac, fazem parte da Iniciativa o Instituto de Tecnologia de Imunobiológicos (Biomanguinhos/Fiocruz), o Instituto Smorodintsev de Pesquisa de Influenza, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR), a Sinovac Life Sciences Co. Ltda e o Conselho de Pesquisa Médica sul-africano.
Entre os objetivos específicos do recém-criado CPDV/Brics estão o de reunir competências complementares dos cinco países na promoção de intercâmbios e colaboração em P&D de vacinas, aumentar a capacidade dos países do Brics na prevenção e controle de doenças infecciosas e ajudar outros países. Para isso, espera-se que o Centro priorize a pesquisa conjunta e o desenvolvimento de vacinas, facilite o compartilhamento de informações e conhecimentos e apoie projetos colaborativos de pesquisadores e instituições de países do Brics. Estão previstos a construção de plantas produtivas e produção conjuntas, a superação de gargalos tecnológicos, a realização de testes clínicos conjuntos, o reconhecimento mútuo de normas, a realização de eventos relacionados a vacinas entre os Brics, o intercâmbio de pessoal treinado e os pesquisadores serão encorajados a lançar projetos de inovação vacinal entre os Brics.
Vocação dos países do Brics para compor um CPDV
Das nações do Brics, a Índia tem a maior capacidade de produção de imunizantes do mundo (60%), produz 44 vacinas, exporta para mais de 170 países e atende a 70% das necessidades da OMS. A China vem liderando em matéria de vacinação Cov-19 ao redor do mundo. Mais de 11 bilhões de doses de vacinas de Cov-19 foram administradas em 210 países e regiões. Desses, 7,52 bilhões de doses foram para a Ásia, 790 milhões na América do Sul e 430 milhões na África. A China prometeu implementar seus compromissos a respeito de bens públicos globais: até agora forneceu mais de 2,1 bilhões de doses de vacinas para 120 países e Organizações Internacionais por meio de subvenções, exportações, produção local e outros meios. A Rússia possui instalações significativas de pesquisa viral e está atualizando e melhorando cada vez mais sua capacidade de produção. Brasil e África do Sul têm as maiores capacidades de produção da AL e do continente africano, respectivamente. A África do Sul disponibilizará sua expertise por meio de centros de doenças infecciosas, instituições de ensino superior e aproveitará as capacidades da sua crescente indústria farmacêutica, para desenvolver e expandir a iniciativa do Centro de P&D de Vacinas do BR Brics ICS.
Durante a pandemia, a Sinovac colaborou com o Instituto Butantan para oferecer apoio ao esquema nacional de imunização no Brasil e três países do Brics já vem colaborando em testes clínicos das vacinas contra a Cov-19, o Brasil (Sinovac, Clover Biopharma, StemiRNA Therapeutics), a África do Sul (Sinovac, Xiamen University e Clover Biopharma) e a Rússia (CanSino Biological Inc. e Livzon), para citar algumas colaborações entre os países do Brics.
O lançamento do CPDV/Brics e a Iniciativa constituem um grande avanço no fortalecimento da cooperação em saúde e P&D vacinal entre os Brics. Inicialmente, o Centro funcionará de forma virtual e contará com uma rede de instituições de pesquisa e desenvolvedores de vacinas dos países do BRICS; posteriormente, será lançado um centro físico. Autoridades e representantes dos cinco países compareceram à cerimônia virtual de lançamento que foi seguida por um seminário.
Comentários de ministros da Saúde, representantes dos centros nacionais e técnicos em prol do avanço do CPDV/ Brics
Mansukh Mandaviya, ministro da Saúde da Índia e do ICMR, declarou que o projeto de P&D da OMS e os regulamentos sanitários internacionais devem ser os principais norteadores para o Centro e propôs que "os países do Brics devem trabalhar juntos para apoiar
esforços como ACT-A, Covax, Cepi, entre outros para alcançar a meta estabelecida pela OMS de vacinar 70% da população mundial com vacinas Cov-19 até meados de 2022". Acrescentou que "além das pandemias e emergências em saúde, há um amplo escopo de colaboração entre países como doenças de alta morbidade e mortalidade preveníveis com imunizantes e para doenças para as quais ainda não existem vacinas como Aids e TB.” Dr. Balram Bhargava, diretor do ICMR indiano mencionou que existem capacidade de P&D no país em virologia, epidemiologia, TB, cólera e doenças entéricas, entre outras.
O ministro da Saúde russo Mikhail Murashko reconhece que ”o potencial da comunidade de pesquisa do BRICS está no mais alto nível”, lembrou que “as primeiras vacinas Cov-19 foram desenvolvidas e testadas nos países do Brics e ressaltou a importância de continuar os esforços nesse sentido”. Apontou que “os países do Brics precisam de uma política comum acordada na área de desenvolvimento e comercialização de produtos imunobiológicos”. Ressaltou que a pandemia de Cov-19 comprovou a importância de garantir o desenvolvimento e a melhoria das ferramentas de diagnóstico para infecções novas e recorrentes e é por isso que precisamos “garantir possibilidades de detecção precoce de novos patógenos”. Para ele, “atualmente infecções conhecidas exigem mais esforços para combatê-las e melhorar as táticas preventivas. Salientou que se deve focar em primeiro lugar, na TB, HIV e gripe”, já indicando enfermidades que podem se configurar em pontos de partida para colaboração. Para ele, “existe uma tarefa ambiciosa de criar uma plataforma eficaz e universal de desenvolvimento de vacinas". ,
O controlador geral de medicamentos da Índia, Dr. S. Eswara Reddy, propôs áreas de colaboração em pesquisa, pesquisa clínica e produção. Na área de pesquisa sugeriu o desenvolvimento de novas vacinas para doenças prioritárias nos países do Brics; transferência de tecnologia para a produção local de vacinas; desenvolvimento de novas plataformas tecnológicas; modelagem de doenças; desenvolvimento de soluções inovadoras para fornecimento e distribuição de vacinas; compartilhamento de cepas padrões e isoladas para ensaios laboratoriais de vacinas. Como áreas de colaboração em testes clínicos: o compartilhamento de dados de estudos pré-clínicos e testes clínicos de novas vacinas para acelerar as aprovações regulatórias; identificação de locais onde podem ser realizados testes clínicos em diversos países; fiabilidade dos dados gerados; estabelecimento de uma plataforma multilíngue para o compartilhamento de políticas; processos e outros documentos relevantes; compartilhamento de melhores práticas a serem seguidas e revisão paralela dos dossiês. Por fim indicou áreas de colaboração na produção: aproveitar a larga capacidade de produção de vacinas da Índia que propicia baixo custo de produção; produção conjunta de vacinas, onde um país pode produzir o IFA e o outro pode produzir o produto; utilização das instalações de testagem laboratoriais existentes; configuração das instalações de produção para matérias-primas (adjuvantes) e de consumo (biorreatores com bags descartáveis).
Blade Nzimande, ministro da Educação superior e Inovação em Ciência da África do Sul, propôs que o desenvolvimento de novos diagnósticos e terapêuticas estejam alinhados com a abordagem One Health (Saúde Única) da OMS. Assinalou também a cooperação em vigilância epidemiológica, onde a África do Sul está pronta para se comprometer com recursos da sua Rede de Vigilância Genômica que continua a fazer contribuições globais para melhorar a compreensão do vírus SARS-CoV-2. Acrescentou que o CPDV/ Brics também deve aproveitar o potencial de novas tecnologias disruptivas e suas aplicações, como a Inteligência Artificial e big data, para desenvolver as capacidades dos sistemas científicos para prevenir e combater pandemias.
É possível avançar com o Centro/Brics, mesmo com a recusa da Índia e Brasil ao convite para reunião dos ministros de Relações Exteriores/Brics em Pequim, em meio à guerra Rússia X EUA/Otan?
O plano chinês de sediar um encontro em abril com a presença dos ministros das Relações Exteriores do Brics, não vingou, isso porque uma reunião presencial em momento de conflito e pandemia não pareceu apropriada à Índia e ao Brasil, que declinaram do convite. A princípio, o encontro irá acontecer em maio, de forma virtual. A reunião de ministros antecede a Cúpula de chefes de Estado prevista para junho.
Excluir o tema da guerra com a Ucrânia da agenda teria um custo político elevado. Quando o convite foi emitido, quem primeiro disse não foi a Índia; o Brasil chegou a confirmar presença do ministro Carlos França, mas a negativa indiana inviabilizou a realização do encontro, salvando o chanceler brasileiro de uma decisão equivocada de ir à China. Não houve consenso do Brics sobre a Ucrânia – o Brasil foi o único do grupo que endossou a resolução na ONU, condenando a invasão.
Mesmo não havendo sintonia absoluta entre os países-membros, nenhum dos países aderiu às sanções quando a Rússia ocupou a Crimeia e o mesmo se repete agora. O desafio do Brics na crise atual é encontrar uma posição de meio termo que não condene diretamente a Rússia, o que provocaria uma ruptura no grupo, mas também não seja de apoio declarado a Moscou, pois isso abalaria as relações com o Ocidente. A ausência de uma posição clara não enfraquece o grupo, pelo contrário: um dos principais valores agregados do Brics é o “apoio do grupo ao status regional de seus integrantes”. Ao não tomar uma posição clara, o Brics tacitamente aceita que seus membros tenham uma preferência nacional em suas regiões (autoridade regional).
Portanto, tudo leva a crer que o CPDV/Brics avançará de vento em popa. Todos os países do Brics são membros de importantes blocos de livre comércio em suas regiões – o Brasil é membro-líder do Mercosul; a Rússia está na União Econômica Eurasiana; a Índia é o principal membro da Saarc; a China é membro da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP) da Ásia-Pacífico; e a África do Sul, membro da AfCFTA. Isso significa que as instalações cobrirão 70% da população global, levando em consideração os membros dos blocos comerciais regionais. Além dos Brics, espera-se que mais parceiros participem desta Iniciativa.
* Pesquisadora do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz). Artigo publicado no blog do CEE-Fiocruz, e que integrará, a partir de 30/03/2022, a nova edição dos Cadernos Cris.
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