Os 'mentaleiros', a reforma psiquiátrica, a diversidade e a democracia
Ao publicar o artigo abaixo, do psiquiatra e sanitarista Paulo Amarante, o CEE-Fiocruz presta uma homenagem ao psicólogo e pesquisador Fernando Freitas, lamentando sua morte, em 30/1/2023. Defensor da luta antimanicomial e crítico da medicalização do sofrimento psíquico, Fernando Freitas integrava o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, da Ensp/Fiocruz foi também presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e era coeditor, com Paulo Amarante, do site Mad in Brasil. O CEE-Fiocruz solidariza-se com familiares e amigos, neste momento de tristeza.
Por Paulo Amarante *
Neste momento de retomada da reforma psiquiátrica antimanicomial no Brasil, está se lutando para anular e revogar as iniciativas de desmonte de tudo o que foi feito em mais de 40 anos de processo de defesa e realização de direitos, autonomia, emancipação, despatologização e tratamento em liberdade das pessoas identificadas como “usuárias” de serviços de saúde mental ou portadoras de uma experiência de sofrimento mental. Porém, mais que isso, se luta para avançar ainda mais na medida em que foi possível identificar os alvos e objetivos dos setores fascistas, conservadores, reacionários. A partir de seus ataques medicalizantes, invasivos, antidemocráticos, proibicionistas, racistas, colonialistas, patriarcais e tantos outros, se faz necessário e importante reconhecer a relevância, a originalidade e a ousadia dos ditos mentaleiros (expressão ao mesmo tempo afetiva e pejorativa com a qual alguns companheiros e companheiras se referiam aos ativistas de reforma psiquiátrica antimanicomial).
Hoje, no alvorecer dos novos tempos no Brasil, existe grande expectativa quanto ao protagonismo social no sentido de participação dos sujeitos coletivos no processo de reconstrução e inovação no campo das políticas de saúde mental e reforma psiquiátrica. E no sentido de avançar ainda mais, é preciso perceber que não basta escutar a sociedade para saber suas opiniões, seus projetos e tendências, mas, sim, envolvê-la no fazer, permanentemente, o novo cenário. Não é “fazer para” mas “fazer com”! Esse parece ser o grande desafio.
No início do processo, o recém-criado Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) protagonizou, no final dos anos 70, a primeira greve nacional no período da ditadura (antecedendo a histórica greve dos metalúrgicos do ABC), que foi a primeira greve no serviço público, uma prática proibida pelo governo autoritário. Mas a greve foi feita, durou meses e desencadeou a greve dos residentes de medicina.
Por ocasião da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que era contrária à reforma psiquiátrica e aos princípios antimanicomiais, se posicionou contra à realização da conferência. No entanto, como era decisão do ministério realizá-la, tentou forjar uma espécie de congresso de psiquiatria, com convidados conferencistas, sem o processo participativo que viria a caracterizar a importância do controle social no SUS. O MSTM não aceitou o golpe e, literalmente, virou a mesa! Assumiu a coordenação e realizou a histórica conferência que, além de tudo, possibilitou uma assembleia nacional de ativistas de todo o país, donde surgiu a proposta de um encontro nacional em Bauru, em dezembro daquele mesmo ano.
Assim, no Encontro Nacional do MTSM em Bauru, a partir de uma análise de conjuntura e uma profunda autocrítica, o movimento produziu rupturas radicais em sua composição, sua finalidade e suas estratégias. Passou a ser denominado movimento Por Uma Sociedade sem Manicômios, o que se refletiu na participação de usuários, familiares, militantes de movimentos de direitos humanos, e passou a vislumbrar uma sociedade sem violências, sem exclusão. A concepção de manicômio passou a significar, claramente, não apenas o prédio do hospício ou de outras instituições de reclusão e repressão, mas as práticas e mentalidades sociais de opressão, de ausência de solidariedade, empatia e reconhecimento da diferença e da diversidade. Ainda neste encontro, foi instituído o Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio), criado de baixo para cima, que se tornou uma data comemorada nacionalmente com eventos plurais, iniciativas e atos políticos, culturais, acadêmicos. Depois, se transformaria na Semana da Luta Antimanicomial e, posteriormente, no mês. Maio é o Mês da Luta Antimanicomial!
Diferentemente de muitos dias ou datas comemorativas, o dia da luta antimanicomial foi se tornando uma referência ética e política que passaria a significar “todo dia é dia de luta antimanicomial, de reforma psiquiátrica, de cuidado solidário e em liberdade”! Em 1993 ocorreu o primeiro Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ao qual se seguiram muitos outros. Poucos eventos no país, especialmente pelo fato de serem autônomos, organizados não pelo Estado, mas por movimentos sociais, tiveram (e têm) tanta regularidade e importância quanto estes encontros. O primeiro em Salvador, o segundo em Belo Horizonte, o terceiro em Porto Alegre e assim por diante, em todas as partes do país, com participantes indo por conta própria ou por meio de iniciativas coletivas de arrecadação de fundos. Um dos processos mais participativos, coletivos e solidários de que tivemos notícia em nosso país. Nunca me esqueci da visão de assistir ao desembarque de usuários, familiares e técnicos da rede descendo do ônibus numa praça em Porto Alegre, provenientes de Belém do Pará.
No que diz respeito às conferências de saúde mental, como dissemos, na primeira (governo Sarney, 1987), o movimento teve de intervir na organização oficial para que fosse realizada como um processo instituinte e não como um congresso de especialistas! Na segunda (governo Collor/Itamar, 1992) e na terceira (governo FHC, 2001), o movimento exerceu um protagonismo ímpar, atuando de formar potente em todos os níveis do processo. Mas, após a terceira edição, as conferências não estavam mais sendo convocadas, paradoxalmente, já que vivíamos no período de um governo democrático popular. Foi preciso uma ampla mobilização, que culminou com a histórica Marcha dos Usuários e Familiares em Brasília, para que a quarta conferência fosse convocada: no último mês do último ano do último mandato de Lula!
Em 2014 a Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental) lançou a campanha pela convocação da quinta conferência, que não foi acatada pelo Ministério da Saúde… E aí veio o golpe de 2016 e o movimento foi surpreendido com a nomeação de um coordenador nacional de saúde mental absolutamente defensor do modelo manicomial! O diretor de um dos maiores manicômios no Brasil, talvez o maior manicômio privado de todo mundo: a casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi que chegou a ter 2500 vagas financiadas pelo poder público! O movimento não aceitou a nomeação e ocupou a coordenação nacional de saúde mental, um acontecimento que ficou conhecido como o “Fora Valencius” (em referência ao nome do coordenador nomeado), assim como o movimento “fica Tyka”, em apoio ao ex-coordenador exonerado. Foram vários meses de ocupação por parte de usuários, familiares, simpatizantes, num processo que mobilizou a imprensa e a opinião pública.
Na sequência vieram gestões absurdamente conservadoras vinculadas aos interesses privados, aos interesses da mercantilização da indústria da doença e da loucura! Surgiram portarias ilegais e ilegítimas que revogavam os avanços alcançados, construídos coletivamente, de forma participativa e democrática, ao longo de décadas de luta pelo SUS e pela reforma psiquiátrica. Após o golpe no governo Dilma e o estrago da gestão Temer seria possível acontecer algo pior? Do tipo “pior não pode ficar”? Engano, entramos na era Bolsonaro e, para agravar a situação, veio a pandemia de Covid-19!
Mas o Movimento Antimanicomial não esmoreceu, não abriu mão de seus espaços, não retrocedeu em suas práticas e resistiu duramente a todo o retrocesso e tentativas de retrocesso. Ao contrário, cresceu em suas várias formas de luta antimanicomial, antiproibicionista, anticolonialista, antirracista e antipatriarcal e em outras frentes de defesa dos direitos, da liberdade e da democracia. Cresceram iniciativas como a da Plataforma Brasileira sobre Política de Drogas, como os Intercambiantes e a Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas), ao mesmo tempo em que se fortaleceram a Abrasme e os vários movimentos antimanicomiais existentes no país.
Assim, está configurada a oportunidade histórica de avançar no processo civilizatório. A partir do cuidado em liberdade e respeito aos direitos humanos. Democracia, diálogo e construção de consensos na diversidade.
* Publicado no Outra Saúde, em 30/1/2023. Paulo Amarante é psiquiatra, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental, Doutor Honoris Causa da Universidade das Mães da Praça de Maio e pesquisador da Fiocruz. Autor de diversos livros sobre o assunto.