Não basta o SUS ser eficiente economicamente; precisa atender as necessidades da população
Carlos Ocké-Reis*
Diante de um quadro de incerteza e instabilidade, após a fase aguda da pandemia da covid-19, que originou uma crise sanitária mundial, matando aproximadamente 700 mil pessoas no Brasil, parece importante refletir sobre a necessidade de se aumentar os recursos destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Criado na Constituição Federal de 1988, o SUS sofreu desde seu nascedouro com o esvaziamento do orçamento da seguridade social e o subfinanciamento das ações e serviços públicos de saúde.
Desde então, considerando os encargos financeiros da dívida interna, o sistema tributário regressivo, o tripé da política macroeconômica – que combina regime de metas de inflação, câmbio flutuante e meta do resultado primário – e o próprio modelo de financiamento pró-cíclico do SUS, a evolução do gasto público per capita em saúde não permitiu o preenchimento dos pressupostos constitucionais em torno da universalidade, da integralidade e da igualdade.
Se comparado com outros países, o gasto público per capita em saúde é baixo no Brasil, inclusive em relação ao produto interno bruto (Gráfico 1).
Gráfico 1
A partir de 2016, após o impedimento da presidente Dilma Rousseff, essa situação se agravou, provocando, entre outros, um processo de desfinanciamento do SUS , no contexto do aumento da pobreza, da desigualdade e da consequente elevação da procura por serviços públicos de saúde – dada a tripla carga da doença (infecções, doenças crônicas e causas externas).
Neste cenário, a ‘eficiência’ aparece como panaceia administrativa, a qual, em nosso caso, acaba servindo para reforçar a ideia de que os problemas do SUS resultam da falsa dicotomia entre financiamento e gestão – quando é plausível admitir, que boa parte de seus problemas de gestão, tenham decorrido em razão de um quadro de restrição orçamentária.
Paralelamente, cabe ressaltar o fato, como dizem Berger e Offe, de que a produção dos serviços seja caracterizada por aquilo que, na produção industrial, seria designado como ‘superdimensionamento’; inevitavelmente, todos os serviços têm que ser dotados de uma maior ou menor disponibilidade preventivamente estabelecida, mas efetivamente não utilizada – caso contrário, a ‘função acauteladora’ da prestação de serviços estaria ameaçada.
Essa capacidade ociosa pode ser observada na quantidade e duração da oferta do serviço, na qualificação da força de trabalho e na instalação técnica dos seus locais de trabalho com instrumentos e aparelhos mecânicos.
Essa reserva de disponibilidade para a prestação de serviços não pode ser reduzida, exatamente porque de outra forma seria questionada a confiabilidade na prevenção dos riscos.
De modo que, caso se queira tornar o SUS de fato eficiente, além de fortalecer o Estado e ampliar o gasto público, será fundamental melhorar a qualidade de suas ações clínicas e epidemiológicas, possibilitando reduzir os gastos das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde.
Daí a importância de se introduzir a best practice na sua gestão, levando em conta, objetivamente, aspectos técnicos, administrativos e institucionais referentes ao espaço fiscal, à alocação de recursos, aos incentivos contratuais, ao meio ambiente, à tecnologia, à produtividade , e ao combate ao desperdício e à corrupção.
Em particular, entre outros, a política de saúde pode ser melhorada por meio de diversos mecanismos:
(i) atendendo as expectativas que giram em torno das novas tecnologias de comunicação e informação, para melhorar a administração das filas, especialmente à medida que poderiam reduzir desigualdades de acesso;
(ii) produzindo economias de escala e de escopo nas regiões de saúde;
(iii) exercitando o poder de compra do Estado no território nacional;
(iv) ampliando a cobertura vacinal para prevenir as doenças;
(v) fomentando inovações científicas e tecnológicas, que favoreçam a inovação de processos produtivos e organizacionais, através da diminuição dos custos;
(vi) e transformando o atual modelo assistencial (que estimula a superprodução e o hiperconsumo, respondendo às condições crônicas na lógica da atenção às condições agudas ) e priorizando a atenção primária em saúde.
Não deveríamos, em termos teóricos, descartar a priori a seguinte ideia: pode ser preciso gastar mais para se gastar bem
Entretanto, advogar a favor de tais recomendações, não deveria ser usado como pretexto para justificar cortes indiscriminados de custos e gastos, legitimando o desmonte do SUS .
Do ponto de vista econômico, visando melhorar a organização, a produção e a distribuição dos bens e serviços públicos de saúde, as medidas de eficiência podem mensurar quanto poderia ter sido produzido com os recursos existentes e a quantidade de recursos que deveria ter sido consumida para atingir determinado resultado (valores ótimos), tendo como parâmetro os valores concretos observados de recursos consumidos e de resultados obtidos.
Essa proposição pode contribuir para a avaliação e a formulação das políticas de saúde, porém, a eficiência deve ser cotejada com a eficácia e a efetividade: a rigor, a eficiência é condição necessária, mas não suficiente, para alcançar a eficácia e a efetividade das ações e serviços públicos de saúde.
Em outras palavras, não basta ser eficiente, se os indicadores e os desfechos não são atingidos, tampouco se as necessidades de saúde e de assistência médica da população não são atendidas .
À guisa de ilustração, sem menosprezar questões institucionais e regulatórias, que organizam e disciplinam o funcionamento do mercado de trabalho, a melhoria das condições salariais e ocupacionais dos profissionais de saúde e dos trabalhadores do SUS deveriam ser priorizadas, dado o impacto que essa medida pode ter na qualidade do ato médico, da assistência à saúde das equipes multiprofissionais e das ações e serviços públicos.
Desse modo, seria prudente evitar a adoção de um certo “modismo gerencial”, que apregoa que não adianta gastar mais, porque o SUS gasta mal, até porque a busca da eficiência em direção à eficácia e efetividade pode, na realidade, significar e exigir o aumento dos gastos.
Apesar desse quiproquó, qualquer avaliação de eficiência no Brasil, resguardada pelas noções de eficácia e efetividade, ou mesmo submetida ao exame de abordagens alternativas, não deveria cancelar a pedra fundamental da arquitetura do SUS, que repousa no pressuposto constitucional de que a saúde é um direito social de todos e um dever do Estado.
Esse argumento talvez fique mais claro se recorrermos à Weber, que atribuiu à racionalidade formal da gestão econômica, a possibilidade de aplicar um cálculo tecnicamente possível, advertindo, entretanto, que tal racionalidade se materializa por meio de uma ação política, guiada por certos postulados de valor, definidos histórica e socialmente .
Nesse quadro, parece razoável reivindicar que a avaliação de eficiência do SUS internalize os valores construídos pela sociedade brasileira, objetivados em suas leis e instituições.
At last but not least, no momento de crise econômica, a implementação de medidas de austeridade pode ter provocado taxas de morbidade e mortalidade infantil mais altas do que aquelas esperadas sob a proteção social do SUS .
Desse modo, para melhorar seu desempenho, dado seu retorno econômico e social, admite-se hoje flexibilizar tais restrições orçamentárias, problematizando a tese que propugna uma âncora fiscal, a partir de uma limitação numérica como aquela designada pela concepção do top-down fiscal anchor .
Essa reflexão parece oportuna, quando se constata que o nível de gastos per capita é historicamente baixo, existindo amplo espaço para novos investimentos no SUS: afinal de contas, “aumentos dos gastos per capita em saúde no Brasil devem proporcionar resultados bem mais auspiciosos do que os observados em muitos países da OCDE.
E, por isso mesmo, não deveríamos, em termos teóricos, descartar a priori a seguinte ideia: pode ser preciso gastar mais para se gastar bem.
Em todo caso, à medida que os gastos públicos em saúde aumentam, o ‘conflito’ entre equidade e eficiência pode se tornar mais complexo.
Em outras palavras, dada a tendência dos custos crescentes da assistência médica, os países procuram equilibrar o primado da equidade e as metas de eficiência, uma vez que esse trade off tem implicações de longo prazo sobre o desenho dos sistemas de saúde .
Sendo assim, as preocupações políticas com a democratização dos sistemas de saúde e ligadas a um projeto de sociedade não perderam atualidade, tampouco foram substituídas por categorias econômicas e administrativas, ou seja, a política não se tornou mera questão de gestão, um domínio reservado aos especialistas .
O debate sobre a eficiência é de relevância pública e pode auxiliar a formulação, execução e avaliação das políticas de saúde. A eficiência em algumas instâncias no SUS é prejudicada pelo desfinanciamento, de modo que eventuais ineficiências devem ser avaliadas, aferidas e superadas.
Nos planos teórico e empírico, nosso interesse em avaliar o SUS tem em mente a construção de um sistema público de saúde mais racional, eficiente e democrático .
De um lado, desfazendo a ilusão de que simplesmente a diminuição de recursos vai aumentar sua eficiência e, de outro, ampliando a percepção de que não basta ser eficiente (fazer de modo econômico), é preciso também ser eficaz e efetivo (fazer de modo resolutivo o que é necessário e ético), para garantir uma saúde pública de qualidade para as famílias brasileiras, afirmando o direito social à saúde da Constituição de 1988.
* Carlos Ocké-Reis é economista e ex-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES). Artigo publicado na Carta Capital/Observatório da Economia Contemporânea e no site Viomundo.