Mercosul: realidades diversas, desafios em comum
O desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Mercosul foi alvo de estudo conduzido pelos pesquisadores José Cassiolato, um dos coordenadores da Rede CEIS 4.0, Cecília Tomasini, da Universidad de la Republica (Udelar), no Uruguai, e Mariana Vaz, da mesma universidade. O trabalho teve como objetivo sistematizar e analisar as características e desafios potenciais do CEIS no bloco de países, com foco nos casos de Argentina e Uruguai. Os pesquisadores buscaram identificar estratégias e instrumentos de política pública desenvolvidos para fortalecer a cadeia produtiva em saúde e a provisão de serviços nos dois países. Sistematizar desafios e oportunidades.
“O Mercosul é uma institucionalidade importante politicamente para os nossos países e evoluiu nos últimos 30 anos de forma complexa”, destacou Cassiolato, observando que, no bloco, problemas de diversos setores deixaram de ser enfrentados conjuntamente, a saúde, constituindo, no entanto, uma exceção, caracterizada por uma trajetória colaborativa. “A saúde tem uma história de cooperação no Mercosul rica e importante e que tem sobrevivido às divergências desses países no plano político e institucional”, apontou. “A percepção sobre o que é saúde, como deve ser pensada e instrumentalizada na América Latina e no Mercosul, em particular, é uma das heranças positivas que temos”.
Apresentado por Cecilia Tomasini, o estudo identificou um histórico de colaboração e cooperação em CT&I em saúde na região, expresso na conformação de centros de pesquisa regionais, fóruns especializados e reuniões setoriais de ministérios, entre outras iniciativas. Ao mesmo tempo, observam os pesquisadores, isso se dá em um contexto de “perda de vigor” nos processos de integração regional, com impacto no fomento do comércio e na integração produtiva. Entre as causas, apontaram falta de aprofundamento da união aduaneira, ausência de compromisso em complementar agendas produtivas, deslocamento do comércio regional e ascensão da China e “vaivéns políticos e ideológicos dos governos” da região.
Foi observada também uma redução no comércio entre os países do bloco, com registro, em 2022, do “mínimo histórico” de 10,5% das vendas externas totais – incrementando-se, em contraposição, as exportações para outros blocos.
Cecilia trouxe dados detalhados referentes aos dois países estudados. Na Argentina, o CEIS foi considerado dinâmico na economia, representando mais de 4% do PIB e mobilizando 6% dos trabalhadores ocupados do país. Em relação ao sistema de saúde, no entanto, foi observada “alta fragmentação, superposição e falta de uma coordenação centralizada”, distribuindo-se por três setores – público, seguro social e privado –, em nível nacional, provincial e municipal, com “iniquidade na atenção, expressa na divisão por setores, e carência de um marco regulatório comum – “não há hierarquia entre os instrumentos de regulação”, explicou Cecília. Foi apontada, ainda, uma disparidade regional na distribuição de profissionais de saúde (17 médicos por mil habitantes na capital, contra dois médicos a cada mil habitantes nas províncias do norte, por exemplo).
Em relação ao financiamento, o estudo identificou uma estrutura mista e descentralizada, apoiada por mecanismos de proteção derivados do emprego e do pagamento direto pelo usuário.
No que diz respeito especificamente ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o estudo analisou aspectos dos subsistemas de base química e biotecnológica e de base mecânica, eletrônica e de materiais. Em relação ao primeiro, das dez principais empresas do país, destacou-se a participação importante do capital nacional – oito empresas – e o emprego de mão de obra qualificada com altos níveis de remuneração em relação a outros setores industriais.
Em relação ao subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais, conforme apresentou Cecilia, as empresas orientam-se mais à comercialização do que à fabricação, com predomínio de baixa e média “intensidade tecnológica”. A maioria das empresas localizam-se em Buenos Aires, orientadas ao mercado interno. Cecília assinalou o peso importante do setor público como principal comprador, representando 70% da demanda.
Foi identificado caráter deficitário em ambos os subsistemas do CEIS, em especial no que diz respeito aos produtos biológicos, que têm papel preponderante na balança comercial. “Reverter a baixa integração regional no comércio e indústria de produtos biológicos é chave para potencializar o setor”, disse Cecilia. No caso do subsistema de base química e biotecnológica, o déficit relaciona-se aos produtos químicos e biológicos, sendo a região da América Latina o principal destino das exportações; no caso subistema de base mecânica, eletrônica e de materiais, há um cenário “estruturalmente deficitário”, tendo a maioria das importações de média e alta complexidade.
Em relação ao Uruguai, os pesquisadores observaram que o sistema de saúde do país se organiza de forma bem diferente do argentino. Desde 2008, a atenção à saúde está unificada em um Sistema Nacional Integrado, com gestão do Ministério da Saúde e rede de prestadores públicos e privados, cujos aportes destinam-se ao Fundo Nacional de Saúde, com financiamento da cobertura em saúde do trabalhador e de sua família, abrangendo 70% da população.
O financiamento se dá de maneira mista, combinando componentes contributivos (sendo o principal componente o Fundo Nacional de Saúde) e não contributivos. O gasto pelo usuário em relação ao gasto total em saúde apresenta tendência decrescente, com concentração em medicamentos e exames clínicos. Foi identificada, ainda, ampla cobertura gratuita a medicamentos de alto preço, por meio de compra centralizada, que possibilita melhor negociação, e avanços na telemedicina. Por outro lado, no entanto, observou-se concentração de profissionais e infraestrutura na capital do país, em relação às zonas rurais, e superespecialização de médicos, com falta de profissionais na atenção primária.
Em termos do subsistema de base química e biotecnológica, foi observada baixa diversificação de perfis, com maioria de empresas de caráter comercial, concentração na fabricação de produtos genéricos e similares, “processo importante” de fusões e aquisições, resultante de estratégias de internalização de empresas farmacêuticas regionais, pequeno número de empresas de biotecnologia em saúde e grandes empresas multinacionais e regionais instaladas em zonas francas do país. Atraso na regulação de medicamentos biológicos e não produção de medicamentos biossimilares. As empresas de produção local têm um rol importante como provedoras do Sistema Nacional Integrado de Saúde. as multinacionais são principal provedoras do fundo nacional de recursos.
Sobre o subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais, o país mostrou-se com baixo número de empresas registradas e habilitadas pelo Ministério de Saúde Pública, poucas empresas com perfil exportador, estas com trajetória importante no país, em especial, no que diz respeito a dispositivos médicos implantáveis e cardioestimuladores, “que consolidam a inserção no mercado internacional”. Os principais destinos das exportações foram Estados Unidos, Reino Unido, Argentina e Brasil.
Na análise dos autores foram enfatizados também os desafios conformados pela pandemia de Covid-19 no âmbito de ciência, tecnologia e inovação e de autonomia sanitária, observando-se que ambos os países tiveram capacidade de mobilizar recursos tecnológicos para atender suas necessidades de saúde – a Argentina de forma mais articulada do que o país vizinho. “A evidência deixada pela pandemia de Covid-19 e os desafios comuns dos países no âmbito de CT&I e de autonomia sanitária reforça a importância de se avançar em uma integração mais significativa”, observou Cecilia.
No que diz respeito aos quatro países fundadores do Mercosul – além de Argentina, Uruguai e Brasil, o Paraguai –, constatando a diversidade em termos de indicadores epidemiológicos, socioeconômicos, demográficos entre outros, os autores assinalaram: “Realidades diversas, desafios em comum”.
O estudo concluiu, nesse sentido, que, apesar das diferenças econômicas e sanitárias e da “perda de vigor político e comercial”, existe nos países do bloco uma margem de complementaridade e negociação para a geração de um CEIS regional, que promova a diversificação produtiva. Os autores enumeraram eixos estratégicos para esse caminho: colaborações para o fortalecimento de capacidades estatais em gestão, promoção e regulação do CEIS; ampliação da atenção primária à saúde e fortalecimento do componente preventivo dos sistemas de saúde; coordenação voltada ao acesso a medicamentos de alto custo nos países; promoção de capacidades produtivas para a autonomia sanitária regional, com cooperação para a produção de biossimilares e genéricos inovadores, desenvolvimento e fortalecimento de centros regionais de biotecnologia, fomento da produção regional de IFAs estratégicos e promoção de capacidades e mercados para produtos farmacêuticos de origem vegetal – em particular da cannabis, como janela de oportunidade.
“O estudo buscou mostrar que, apesar das dificuldades, há uma resiliência nos países, quanto às atividades do Complexo Econômico-Industrial da Saúde”, destacou José Cassiolato. “Esses países têm estrutura extremamente rica, do ponto de vista científico e tecnológico, nas áreas que conformam o nosso CEIS”, considerou Cassiolato. “Essa capacitação existe e deve ser usada; diversas áreas podem ser objeto de aumento de cooperação e alcançar parcerias com entes econômicos públicos e privados. Os mercados, conjuntamente, são significativos e há uma compreensão de que, se estendermos a esses mercados estratégias comuns, todos os países podem se beneficiar”.
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