Memórias, olhares e relatos resgatam em livro a história do Sistema Único de Saúde
A construção do Sistema Único de Saúde (SUS) é um processo. E, como tal, continua em curso. Esse entendimento é considerado fundamental pelo médico e sanitarista Luiz Antonio Santini, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, autor, com o historiador Clóvis Bulcão, do livro SUS: uma biobrafia – Lutas e conquistas da sociedade brasileira (Record, 2024), com lançamento marcado para o dia 11 de março, no Rio de Janeiro, e 18 de março, em São Paulo. Um dos articuladores da construção do SUS, nos anos 1970/1980, Santini aponta que o livro buscou suprir uma lacuna por ele identificada – “apesar de haver muito material sobre o assunto” –, na forma de se apresentar essa história, a partir do olhar de quem testemunhou o processo desde o início.
“Fiquei muitos anos pensando em fazer o livro, mas não me julgava com expertise suficiente para isso, sem torná-lo aborrecido, muito cronológico, ou com explicações excessivas”, conta Santini, em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. “Meu interesse não era a explicação, mas a narração”, diz o autor, que atuou em defesa do direito à saúde ao lado dos sanitaristas Sergio Arouca (1941-2003) e Hésio Cordeiro (1942-2020), entre outros nomes responsáveis pelo texto que formou as bases para a elaboração do capítulo da Seguridade Social, na Constituição de 1988, que, no artigo 196, afirma a saúde como direito de todos e dever do Estado.
O impulso definitivo para que o livro, em suas 350 páginas e dez capítulos, finalmente ganhasse forma e chegasse aos leitores foi a pandemia de Covid 19. Como escreve Clóvis Bulcão, no capítulo introdutório da obra, a pandemia deixara à mostra para Santini o papel do SUS no enfrentamento dos problemas sanitários apresentados por algo totalmente desconhecido pela ciência; e que, “passado o tsunami, o sistema enfrentaria uma situação de terra arrasada”. Temendo “a destruição de uma conquista civilizatória da sociedade”, a ideia foi dar a saber à população o que o SUS representa. “Conhecer a história do SUS é uma forma de engajamento político e, também, de luta pelo seu aperfeiçoamento”, resume Clóvis Bulcão, ao final do texto.
O encontro entre Santini e Bulcão se deu pelas mãos do jornalista Walter Zoss, com quem Santini trabalha desde 2003, quando se conheceram no Instituto Nacional do Câncer (Inca). Walter, ao lado da também jornalista Cristina Ruas, foi responsável por colher e gravar por videoconferência depoimentos de Santini, organizados por blocos temáticos, desencadeados por fotos do arquivo pessoal do sanitarista. “O processo de germinação, gestação e elaboração do livro foi longo, por vezes engraçado e outras vezes curiosamente sofrido. Nessa trajetória de mais de duas décadas, fui ouvinte, interlocutor, palpiteiro, incentivador e, por fim, também colaborador para que o projeto pudesse ser finalmente materializado nas páginas que aqui estão”, relata Walter Zoss na apresentação do livro, destacando, ainda, a visão “crítica, aguçada e atual” de Santini, sobre o desenvolvimento do SUS.
Para Santini, que integrou o Partido Sanitário – movimento suprapartidário de jovens médicos, como Arouca e Hesio, que buscavam mudar a face da saúde pública do país –, o livro ajuda a compreender a construção do Sistema Único de Saúde “como um processo”, sustentado por uma proposta de transformação política do país. “O movimento da Reforma Sanitária está longe de ser sectário, foi um movimento que reuniu integrantes da luta pela democracia, pelo direito à saúde. Esses são os valores que sustentaram a proposta”, entende Santini. “Não se tratou de questão político-partidária, por exemplo. Por isso, quando falamos de um Partido Sanitário, estamos falando de uma coalisão em torno de questões centrais, uma delas, a questão democrática, e dentro disso, a questão dos direitos sociais, das desigualdades, do acesso”, analisa.
Foi no contato com Santini que Clovis Bulcão, por sua vez, passou a perceber que “a construção do atual sistema de saúde do Brasil era muito mais rica do que se supunha”, conforme destaca ao blog do CEE. Ao longo dos encontros com o sanitarista, o historiador foi se dando conta de que “esse era um dos episódios mais ricos, e talvez menos óbvios, da nossa História”, como relata. “O SUS nasceu na luta pela democracia nos anos 80”, entende o historiador. “Poucas pessoas conhecem a dura realidade do então sistema de saúde do Brasil que excluía aproximadamente 40 milhões de brasileiros. Eram os indigentes”, observa. “Hoje, ninguém deixa de ser atendido ao entrar em um hospital. Antes do SUS só quem tinha vínculo formal de trabalho era atendido. Infelizmente, no Brasil de hoje a defesa da democracia voltou a ser pauta”.
Ao frisar o entendimento da construção do SUS como um processo, reafirmando-se que se trata de algo em curso, defende Santini, conferimos um olhar diferente para os problemas e desafios enfrentados hoje pelo sistema. “Se há, às vezes, novos problemas é porque as condições da realidade também se modificaram”, considera. “Nos anos 1980, estávamos falando de uma população ainda predominantemente rural, de uma expectativa de vida abaixo de 50 anos, de uma taxa de mortalidade infantil muito elevada, de mais da metade da população excluída do acesso ao sistema de saúde, uma realidade totalmente diferente”, aponta. “Já algumas discussões que levamos à frente hoje, sobre tecnologia, ciência, não faria tanto sentido anos atrás”.
O contato com os relatos de Santini levou os autores a buscarem depoimentos de alguns nomes envolvidos em todo o histórico de conformação da Reforma Sanitária Brasileira – entre eles, pesquisadores da Fiocruz –, o que resultou em cerca de trinta entrevistas realizadas, em três vertentes: educação médica nos anos 60 70; transformações na gestão do sistema de saúde, em especial, no que diz respeito às mudanças na previdência social; e estudos sobre sistemas de saúde. As entrevistas foram utilizadas no decorrer do texto, à medida que suas exposições se relacionavam com os temas em análise, de modo a trazer o debate à tona.
“Esse é o ponto central”, afirma Santini. “O livro mostra as contradições, não pelo meu olhar, mas pela narração das pessoas envolvidas. Essas contradições estão presentes. E mostram também que, apesar de haver divergências, de não haver unanimidade nas posições, nas ações, no pensamento sobre como esse processo se deu, havia uma clareza da importância do que estava sendo construído. A causa era a mesma. É importante que as pessoas tenham essa consciência”, observa. “Meu objetivo com o livro é trazer uma reflexão sobre esse passado, sem qualquer tipo de saudosismo, e fortalecer esse entendimento de que se trata de um processo”, diz. “É preciso reconhecer o que foi feito antes, para tornar socialmente e politicamente viável o que viria”.
Santini vê com otimismo o desenrolar desse processo. “O que foi construído no Brasil representa uma mudança extraordinária. Fizemos muito e há muito por fazer. Esse muito por fazer é, para mim, razão de otimismo, não um obstáculo. Não se trata de otimismo delirante, mas baseado em uma experiência. Imaginar que, nos anos 70, em plena ditadura, conseguimos interferir no Estado de forma a mudar a abordagem, o pensamento e a estratégia”, constata.
Ele aponta a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, como “a culminância de uma prática política”. Após o sucesso da conferência, o Partido Sanitário teria pela frente o desafio de aprovar o SUS na Assembleia Nacional Constituinte e incluir na nova Constituição a saúde como direito de todos e dever do Estado. Santini lembra que, no entanto, a continuidade do que foi decidido na Oitava “requereu capacidade grande de articulação, negociação”. Essa articulação, recorda-se, ficou a cargo da Comissão Nacional da Reforma Sanitária, cuja criação foi formalizada na época pelo Ministério da Saúde, com papel negociador, junto à Constituinte. “A comissão foi responsável por fazer a grande articulação para que as deliberações da 8ª Conferência se tornassem realidade no país, seus estados, regiões, municípios”, conta. “A conferência aprovou, por exemplo, a estatização da saúde e a estatização da indústria farmacêutica. Nós, do Partido Sanitário, não éramos a favor disso, mas perdemos nas votações. O que permitiu tornar efetivas as deliberações da conferência foi a Comissão Nacional da Reforma Sanitária, que negociou algumas das teses malucas da Oitava”, recorda-se.
Santini destaca a contribuição de Sergio Arouca, quanto à centralidade que conferiu à “questão democrática” e ao "entendimento real” do que é democracia, levada à 8ª Conferência sob o lema Saúde é democracia; democracia é saúde. “Democracia não é hegemonia”, defende.
O conteúdo do livro
Ao lado dos relatos de Santini e das entrevistas com atores que tiveram importante papel no movimento da Reforma Sanitária, SUS: uma biografia foi construído também a partir da produção bibliográfica disponível, para traçar um detalhado histórico da saúde no Brasil, desde o período colonial. Os saberes dos povos originários, passando pela medicina trazida ao país pelos africanos escravizados, a chegada dos padres catequizadores da Companhia de Jesus, no século XVI, as epidemias como a de varíola (doença só erradicada em 1973) e febre amarela, a vinda de médicos de Portugal e a ênfase no saber científico, com a chegada da Corte Portuguesa, em 1808, a virada do século XIX para o século XX, com ascensão do pensamento higienista, contra as condições precárias das cidades, o papel de Oswaldo Cruz, a ascensão do modelo de atendimento médico atrelado à categoria profissional urbana que contribuía para a Previdência, com os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que só chegaram ao fim com a criação do SUS; o pensamento hospitalocêntrico, pelo qual saúde era ter hospitais como solução para todos os problemas; e a não diferenciação entre doente e doença são alguns dos aspectos abordados.
“Um trabalho de pesquisa. Muito material eu tinha também”, conta Santini cujos relatos levaram a um amplo panorama da sociedade brasileira na segunda metade do século XX, desde o seu tempo de estudante de medicina em Niterói. Fatores políticos, sociais e econômicos que possibilitaram o surgimento do Sistema Único de Saúde, dentro do contexto da reabertura política pós-ditadura, também são trazidos à tona.
O texto apresenta, ainda, experiências exitosas em saúde pública, levadas à frente em cidades como Natal (RN), Londrina (PR), Niterói (RJ e Montes Claros (MG), voltadas à garantia de acesso da população aos serviços de saúde, bem como as implementadas nos anos 1970 por quatro faculdades de medicina que se propuseram a prestar serviço de saúde comunitária: a Universidade Federal Fluminente (UFF), em Niterói, dirigida por Santini; A UnB, na cidade-satélite de Sobradinho; a Universidade Estadual de Londrina (PR); e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Montes Claros.
“Todas essas experiências não teriam conduzido à criação do SUS se não tivessem sido coordenadas e lideradas por Sergio Arouca. Ele foi o teórico, o líder e, principalmente, o estrategista político que teria papel fundamental antes, durante e depois das mudanças que tornaram a saúde no Brasil um direito de todos e um dever do Estado. Todos os atores da reforma sanitária tiveram relevância, mas suas boas experiências provavelmente não teriam sido a base das reformas no campo da saúde sem o comando firme de Sérgio Arouca”, escrevem os autores.
Conheça o sumário de 'SUS: uma biografia'
SOBRE OS AUTORES
Luiz Antonio Santini é médico e, com Sergio Arouca, Hésio Cordeiro e outros companheiros do Partido Sanitário foi um dos artífices da construção do SUS. Aos 33 anos, tornou-se diretor da Faculdade de Medicina da UFF, promovendo mudanças no currículo do curso. Foi superintendente do Inamps, atuando no combate às fraudes que arruinavam o órgão que geria a saúde pública do país. Liderou no Estado do Rio de Janeiro as ações integradas que marcaram o início da descentralização do sistema de saúde – o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), que precedeu o SUS. Atuou na Comissão Nacional da Reforma Sanitária, capítulo fundamental para consagração do SUS na Constituição de 1988. Entre 2005 e 2015, foi diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca), estabelecendo um novo paradigma de controle do câncer. Atualmente, em parceria com o ex-ministro José Temporão, coordena a pesquisa Doenças Crônicas e Tecnologias de Saúde (DCTS), no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz como foco no acesso da população ao sistema de saúde.
Clóvis Bulcão é escritor e historiador. Comentarista da Rádio Tupi. Carioca, utiliza a cidade do Rio de Janeiro como pano de fundo para seus livros, como nas obras voltadas ao público infanto-juvenil, Leopoldina: a princesa do Brasil e Noel: o menino da Vila. É autor de duas biografias de famílias consideradas tradicionais no país: Os Guinle: a história de uma dinastia e Henrique Lage: o grande empresário que, por amor, criou um parque.
Trechos
Após a vitória da chapa de Tancredo Neves e José Sarney nas eleições indiretas para a Presidência da República, em 1985, os ministérios da Saúde e da Previdência Social ficaram com o PMDB. Com a nomeação para a Previdência de um verdadeiro democrata, o baiano Waldir Pires, as coisas ficaram ainda mais fáceis. Hésio foi nomeado presidente do Inamps; Santini foi para a Superintendência do Rio, e Arouca, mesmo sendo sabidamente comunista, para presidir a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Foram grandes passos para a construção do SUS. Na Previdência, o objetivo era acabar com o eterno déficit, combater a corrupção e acelerar ao máximo o processo de descentralização do atendimento médico celebrando convênios com municípios e estados. Já Arouca olhava lá na frente e articulava a mobilização da sociedade para garantir, na Assembleia Constituinte que se aproximava, a aprovação do Sistema Único de Saúde. (p. 24)
A saúde brasileira entrava na década de 1980 no Centro de Terapia Intensivo (CTI). Apesar da utilização de termos como o já mencionado “máfia de branco” e, depois, ‘trambiclínicas’ de forma generalizada pela sociedade e pelos meios de comunicação, havia uma silenciosa revolução em curso na área sanitária. Desde a década de 1960, em algumas faculdades do Brasil, jovens médicos como Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro e Luiz Santini estavam se formando dentro de novos paradigmas. Havia um movimento de introdução de novos conceitos sobre saúde pública nos velhos cursos de Higiene. Fugindo do padrão tradicional, esses alunos iam para a frente de batalha do atendimento básico e mobilizavam seus pacientes, pois era hora de realizar grandes mudanças na sociedade brasileira na esfera política e na área da Saúde. A roda que levaria à construção do SUS já estava em movimento, e o primeiro giro estava em curso, com alterações no currículo de algumas faculdades de medicina. (p. 65-66)