Marcelo Fornazin: ‘Temos que incorporar nas tecnologias digitais os princípios do SUS’

Marcelo Fornazin: ‘Temos que incorporar nas tecnologias digitais os princípios do SUS’

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Homem de barba e cabelos castanhos, de pé, com as mãos no bolso da calça e camisa social branca, à frente de uma parede branca com a logomarca do CEE

O pesquisador Marcelo Fornazin, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), destaca, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, importantes reflexões sobre os desafios que a implementação de ferramentas para um Sistema Único de Saúde (SUS) mais digital trará, diante das desigualdades de acesso, principalmente, em lugares remotos do Brasil.

Fornazin observa que, diferentemente, do que acontecia no passado, as tecnologias emergentes, hoje, coletam nossos dados cotidianamente, isto é, “diversos dados de saúde são obtidos apenas com a utilização de um aplicativo de controle de passos, por exemplo”. Segundo o pesquisador, essa facilidade de coleta agiliza e auxilia a formulação de políticas não só para gerir organizações de saúde, como também para a gestão da saúde das populações.

Por outro lado, o pesquisador pontua a necessidade de participação social ativa nos processos de discussão sobre informação e tecnologia em saúde. “Quantos de nós, cidadãos e usuários de saúde, estamos conscientes desse processo de coletas de dados?”, indaga. “Defendo uma gestão tripartite da Saúde Digital, para que isso não seja apenas assunto dos gestores e levado para os trabalhadores na condição de passivos, e sim que os usuários sejam colaboradores desse processo”, destaca.

A análise de Fornazin se dá em meio à criação da Secretaria de Saúde Digital no âmbito do Ministério da Saúde, no atual governo. De acordo com Fornazin, a nova secretaria vem para organizar o sistema de informação, muitas vezes, tomado de forma fragmentada, e para articular diferentes percepções e trabalhar em articulação com as demais secretarias. O pesquisador cita a titular da pasta, a professora Ana Estela Haddad, que segundo ele, tornou-se referência no assunto quando, em 2007, trabalhou com o programa Brasil Redes, iniciativa do Ministério da Saúde para fortalecer e melhorar a qualidade do atendimento da atenção básica no SUS.  

De acordo com Fornazin, a relevância da Secretaria de Saúde Digital deve ser entendida a partir de um histórico em que se destacam “três importantes departamentos criados em diferentes momentos da trajetória do SUS”. Ele cita o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), criado em 1991, depois da Lei Orgânica da Saúde (8.080/1990), por meio do Decreto 100/1991, seu desmembramento, com a criação da Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev), voltada à área de informação em saúde e, agora, a Secretaria de Saúde Digital, agregando outros dois departamentos, o Departamento de Monitoramento e Avaliação de Saúde, que cuida de indicadores, informação, e o Departamento de Saúde Digital e Inovação, voltado a pensar a saúde digital do ponto de vista de sistemas de informação e de tecnologia de telessaúde, entre outros aspectos.

Segundo o pesquisador, quando pensamos em sistemas, o que temos em mente é a visão da gestão, da coleta dados, da eficiência e do aumento da produtividade, pouco se abordando o benefício ao trabalhador. “Se o trabalhador não se reconhece no sistema, não vai querer usar o sistema. O trabalhador precisa estar presente no processo de construção do sistema”, salienta.

 

A proteção de dados na informatização do SUS

Fornazin considera como “uma de nossas vulnerabilidades na informatização do SUS” o fato de os gestores ainda não tratarem tecnologia digital como algo estratégico, a serviço da melhoria do processo de trabalho. Conforme observa, as empresas fornecem o serviço, mas não há definição, por exemplo, quanto a quem vai guardar os dados coletados. “Muitas vezes, quando termina o contrato, as empresas levam os dados embora. O resultado disso é a fragilização”, avalia.

Pensar a segurança dos dados, considera o pesquisador, põe em xeque problemas de governança, observando-se, na trajetória do SUS, pouca atenção à questão das tecnologias, com poucos estudos realizados, e ausência de um processo de construção, acumulação e desenvolvimento com vistas ao futuro. “Precisamos investir em pesquisa e produzir conhecimento, para conseguirmos trabalhar com essas novas premissas que estão sendo colocadas”, observa.

De acordo com o pesquisador, um bom exemplo, “infelizmente pouco apropriado pela saúde”, é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que veio para regular nossos dados: não proíbe que sejam coletados, mas estabelece critérios. “A lei traz um elemento importante, não é proibitiva, tem uma visão reguladora”, explica, acrescentando que, infelizmente, o SUS ficou praticamente ausente do debate sobre a LGPD. “Seja para ações de vigilância, seja para o uso de dados para pesquisa”, pontua.

“A Fundação Oswaldo Cruz tem uma importante iniciativa sobre proteção de dados em saúde digital, que orienta (ver aqui) e aponta (ver aqui) como se dá o compartilhamento de dados coletados por serviços de saúde no país”, lembra. “Fizemos na Fiocruz um resumo executivo com alguns diagnósticos da situação dos dados na saúde digital, que mostra um pouco da produção científica na área. Precisamos fazer mais isso”, salienta.

 

SUS digital e os benefícios para população

Pensar ferramentas para um SUS digital, com garantia de acesso, requer considerar os diversos contextos sociais, culturais, econômicos e de acesso no país, considera Fornazin.

Precisamos seguir os princípios do SUS, que tem a universalidade como um de seus pilares, e o grande desafio de alcançar todas as pessoas no Brasil de forma equânime.  “Temos um sistema de telecomunicações orientado pelo mercado. Embora esse modelo privatizado tenha gerado uma série de inovações, para quem chega essa tecnologia? Para aqueles que têm mais dinheiro”, argumenta o pesquisador.

Para Fornazin, o grande desafio é criar um SUS baseado em tecnologias digitais a partir da universalidade, em um cenário no qual, ainda nos dias de hoje, a internet não chega para todos. “Temos um trabalho estrutural a ser feito e que não cabe ao SUS. Universalizar as tecnologias no SUS é papel do nosso sistema de ciência e tecnologia, e do nosso sistema de comunicações”, aponta.

De acordo com o pesquisador, temos no país um bom modelo de universalização do sistema de telecomunicações, que pode servir de exemplo. “Temos o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), criado na época da privatização, justamente com o objetivo de universalizar o acesso, mas foi pouco aplicado”, destaca.

Além disso, acrescenta, precisamos de uma organização de política pública, principalmente, para universalizar o acesso. “É preciso pensar processos descentralizados, outro princípio importante do SUS”, propõe.  “Cada região tem sua realidade, e esse processo tecnológico tem que acontecer em consonância com essas realidades, respeitando as características culturais, políticas, e institucionais da região”.

Para Fornazin, pensar políticas para o SUS está para além dos governos e, nesse sentido, é a partir dos “conselhos, espaços de gestão e colegiados” que criaremos consensos e normas que sejam do SUS e não do governo vigente. “Precisamos construir tecnologias não com o SUS ou para o SUS, mas a partir do SUS, pensando na universalidade, na descentralização e na participação social”.