Livro analisa o desmonte das políticas de proteção social no Brasil e aponta conexão entre populismo autoritário e desregulação do Estado
[Atualizado em 22/2/2024]
Por que os direitos sociais de cidadania – tão difíceis de construir desde a redemocratização do país, marcada pela Constituição Federal de 1988 – vêm sendo facilmente desconstruídos, desmantelando políticas públicas e redes de proteção social? A busca por responder a essa indagação orientou as análises reunidas no livro Social Policy dismantling and de-democratization in Brazil – Citizenship in Danger (Cidadania em perigo – Desmonte das Políticas Sociais e Desdemocratização no Brasil), lançado em agosto de 2023 em inglês, pela editora Springer, e que terá, em breve, lançamento em português, pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict-Fiocruz) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A obra resulta dos estudos desenvolvidos no projeto integrado Futuros da Proteção Social, um dos nove do CEE-Fiocruz, coordenado pela pesquisadora do Centro Sonia Fleury, também organizadora da publicação, que reúne textos de oito autores, integrantes da equipe.
Cidadania em Perigo já está disponível em português para download
Conforme escreve Sonia Fleury no texto introdutório, o livro busca compreender a recente emergência dos regimes autoritários populistas – fenômeno observado não só no Brasil –, “que vem convulsionando os sistemas políticos democráticos, e desestabilizando os poderes administrativos do Estado, as políticas públicas e os direitos de cidadania”. Esse fenômeno, sinaliza a pesquisadora, merece ser estudado para além de suas manifestações superficiais. São estabelecidas “algumas conexões causais entre a ascensão do populismo autoritário, as políticas de liberalização e o ajuste fiscal”, destaca.
Em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, Sonia explica que os pesquisadores se reuniram, inicialmente, como um grupo de estudos, voltando-se ao impacto do desmonte das políticas sociais e à literatura disponível sobre o tema, que se constitui, hoje, como uma área de pesquisa em nível global. “Essa mudança política vem ocorrendo em vários locais do mundo”, diz a pesquisadora.
Diferentemente da maior parte das análises voltadas a governos populistas autoritários, conforme explicitam os autores na obra, o estudo não se prendeu apenas “à ótica do regime político, da ideologia e da retórica dos governantes”, enfatizando, em vez disso, o desmonte das políticas de proteção social – em seus vários setores – no contexto do autoritarismo. “Não separamos a política econômica da política social. Muitas vezes, se trata de uma ou de outra. Para nós, essas políticas andam juntas, ou seja, o projeto autoritário neoliberal é um projeto de desmonte do Estado nas áreas das políticas sociais. As duas políticas têm que ser vistas juntas”, observa Sonia.
Foram analisados setores como saúde, nutrição e alimentação, emprego e seguridade e assistência social. Nessa análise setorial empreendida, o grupo de pesquisadores constatou o desmonte em todas as áreas investigadas. As estratégias de desmantelamento, no entanto, mostraram-se diferenciadas, aproveitando as fraquezas institucionais inerentes a cada área. “A austeridade, o neoliberalismo são adaptáveis”, aponta Sonia. “O desmonte ocorreu em países com estruturas e setores muito diferenciados, o que mostra essa adaptabilidade, utilizando-se as fragilidades já existentes”.
Ela cita como exemplo a área da saúde, um caso “bastante claro”, em que o mecanismo de desmonte foi o desfinanciamento. Já na área da nutrição e alimentação, a estratégia foi acabar com políticas de menor institucionalidade, enquanto que no que diz respeito à previdência e à reforma trabalhista, o recurso foi a criação de uma narrativa segundo a qual se acabaria com os privilégios. “Esse é um peixe fácil de vender: a reforma beneficiaria a sociedade como um todo, porque acabaria com privilégios de alguns, quando, na verdade, nada disso ocorreu. Os privilégios para militares, juízes, parlamentares continuaram existindo e foram penalizadas as mulheres, os setores mais informais”.
Os pesquisadores concentraram-se no caso brasileiro, mas observaram também que, de país para país, as estratégias para dar legitimidade popular ao autoritarismo também diferem. Sonia cita o caso da Hungria, onde o foco não se deu no aspecto moral ou religiosa como no Brasil; a legitimidade naquele país é alcançada por meio de uma oposição aos direitos dos imigrantes, tomados como “bode expiatório’ para todos os problemas, econômicos e sociais. “O caso brasileiro tem características comuns aos demais – a desigualdade, a redução do Estado – mas a construção do apoio em cada sociedade se dá de formas diferentes”.
‘Líderes autoritários populistas não agem sozinhos’
O objeto de análise dos autores foi o “governo populista autoritário de Jair Bolsonaro”, a partir do qual buscam entender a dinâmica desses novos regimes, suas implicações para as relações Estado-sociedade, sua permanência ou recorrência, e lançar um olhar sobre casos semelhantes em outros contextos. Nesse sentido, a obra traz um alerta, quanto a não se dar foco exclusivo aos líderes populistas autoritários, sob risco de se “obscurecer a desdemocratização” em curso. “Esses líderes convulsionam os sistemas políticos, desorganizam o aparato burocrático do Estado e atacam sistematicamente as instituições da democracia representativa, mas não agem sozinhos”, aponta Sonia, defendendo que as “relações cúmplices de líderes populistas autoritários e instituições e agentes do mercado” precisam ser reveladas.
“Este livro constitui uma contribuição essencial para fornecer elementos teóricos e da experiência concreta recente para compreender a experiência brasileira do triste período bolsonarista, de conjunção de um populismo de direita com a inflexão da democracia, a retomada, sem timidez, de um liberalismo econômico e as ações concretas de destruição do Estado e das instituições ligadas à proteção social. Tem a coragem de não tratar esse período apenas como uma anomalia de um fenômeno particular e, portanto, passageiro ou mesmo casual”, observa o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde (Sectics/MS), Carlos Gadelha, no prefácio da edição a ser publicada em português.
Para Gadelha, ainda, o livro permite também “pensar e apostar em um projeto alternativo” para o país. “A contraface da visão totalizante-concreta adotada mostra a necessidade que o Brasil enfrenta, no presente, de avançar em uma visão teórica e política que integre um projeto abrangente, incorporando, de modo endógeno, as dimensões econômicas, sociais e ambientais do desenvolvimento”, escreve o secretário da Sectics, coordenador científico do CEE-Fiocruz. “Da crítica conceitual e política também sai uma agenda de busca de respostas em que o ator-chave é a participação da sociedade para direcionar o Estado para os interesses nacionais, das pessoas e do planeta”, aponta.
Conforme afirmam os autores, “não é acidental o fato de um crescente número de governos populistas autoritários ao redor do mundo compartilharem visões ultraliberais no campo econômico, consentindo muitas vezes com regras fiscais de austeridade que limitam sua própria discrição, a exemplo do governo Bolsonaro no Brasil”.
Sonia destaca que muitos setores foram beneficiados pelo desmonte das políticas sociais. Ela observa uma “confluência de interesses” voltados à redução ou retirada do Estado na regulação da área privada e na garantia de oferecer aquilo de que a população precisa. “Há, por um lado, setores extremamente conservadores que são contra o Estado, porque querem, por exemplo, que apenas a família seja responsável pela educação, que valores religiosos e tradicionais sejam mantidos em detrimento do Estado laico. Por outro lado, há os setores empresariais, extremamente beneficiados por essa política de cortes e desregulação”, analisa.
“Construir uma coalizão de forças conservadoras e heterogêneas, mas unificadas em torno de objetivos precisos – como a pilhagem do Estado por interesses econômicos predatórios e a exploração de animosidades identitárias e/ ou partidárias de esquerda –, é a principal estratégia do populismo autoritário”, escrevem os autores.
Quanto mais universais as políticas, menos fragilizadas elas serão’
Ao final da obra, os autores listam o que consideram “desafios fundamentais’ enfrentados pelo atual governo: “a necessidade de formar amplas coalizões partidárias para aprovar projetos legislativos, o que dificulta a construção de um projeto para o qual o governo foi reeleito; ii) a tarefa crucial de isolar e punir os conspiradores dentro das Forças Armadas; iii) a reconstrução das capacidades do Estado, que foram extremamente destruídas, a inteligência os dados, os sistemas de informação; e (iv) o enfrentamento das profundas desigualdades sociais, que aumentaram muito”.
Sonia destaca, ainda, a necessidade de uma estratégia de comunicação, de informação, de cultura democrática para uma sociedade que ficou “extremamente debilitada” pela difusão de fake news e do negacionaismo da ciência. “Não é fácil, em uma conjuntura de destruição das instituições democráticas”, considera.
Se as estratégias diferenciadas de desmonte das políticas públicas, de acordo com as fragilidades de cada setor, mostram que “o santo tem pés de barro”, pondera Sonia, a lição que é preciso tirar é: “Temos que acabar com as fragilidades para não sofrermos derrotas futuras”.
Ao mesmo tempo em que considera que se trata de “algo enorme”, a pesquisadora vê a possibilidade de diversas medidas serem levadas à frente. “Manter os direitos de aposentadoria e pensão vinculados a contribuição no mercado formal de trabalho nos deixará sempre fragilizados, porque grande parte dos trabalhadores não é do trabalho formal. Mas se você associa os benefícios à condição de cidadania, como, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), eles passam a ser universalizados”, exemplifica. “Quanto mais universais as políticas, menos fragilizadas elas estarão, pelo fato de não estarem aderidas apenas a certos grupos”.
Capítulo a capítulo
Os nove artigos produzidos pelos oito autores que assinam a obra, de 332 páginas, compõem nove capítulos distribuídos por cinco partes – Abordagens teóricas do Estado de Bem-Estar Social na América Latina; Políticas de austeridade e constrangimentos econômicos; Emprego e Seguridade Social; Sistemas de políticas sociais sob a égide da desdemocratização; e Reflexões finais.
No Capítulo 1, o estudo aponta que o desmantelamento das políticas de proteção social no Brasil, além de reproduzir uma tendência global, “precisa ser entendido na especificidade da trajetória de construção da institucionalidade democrática” e parte do entendimento de que o desmantelamento se aproveita das peculiaridades, fraquezas e vulnerabilidades do
Estado de Bem-Estar Social no Brasil e em outros países da América Latina. O texto considera que, por intermédio do desenvolvimento de estruturas de proteção social, tanto a natureza do Estado quanto suas dinâmicas de institucionalização são reveladas.
O Capítulo 2 analisa a trajetória histórico-institucional das reformas de austeridade fiscal que impactaram negativamente o financiamento e as capacidades de provisão de políticas públicas do Estado brasileiro.
O Capítulo 3 trata das recentes reformas trabalhistas no Brasil, apontando que o núcleo político dessas reformas consiste em ampliar a prerrogativa de poder patronal ante a ação organizada e coletiva dos trabalhadores. São destacadas três “tarefas urgentes” a serem desempenhadas no atual cenário de recrudescimento do autoritarismo e desmantelamento de políticas públicas: salvaguardar a democracia das “crescentes tentações autoritárias” que conduzem à deslegitimação e ao tensionamento das instituições políticas democráticas; construir uma coalizão político-econômica e societal progressista devotada à reconstrução nacional; e revitalizar o arcabouço institucional de políticas públicas e o fortalecimento de mecanismos progressivos de financiamento fora dos cânones liberal/ortodoxos.
O Capítulo 4 discute o processo de desmonte das políticas públicas de emprego no Brasil, norteando-se pelo pressuposto de que a precária institucionalização do sistema público de emprego no país favorece o desmonte dessas políticas.
O Capítulo 5 desenvolve duas hipóteses para explicar o progressivo desmantelamento da previdência social e o crescimento da previdência privada no Brasil. Por um lado, discute como o entendimento histórico do sistema previdenciário como mero seguro social fragiliza frentes populares em defesa de sua universalização e adoção de parâmetros solidários. Em segundo lugar, discute o enfraquecimento do sistema previdenciário diante da financeirização da economia brasileira, que tem levado ao surgimento e ao fortalecimento de produtos e entidades de previdência privada.
O Capítulo 6 analisa o processo de desmonte da estrutura de sustentação do SUS e as repercussões do frágil processo de garantia do direito universal à saúde. O foco se deu nas mudanças propostas e implementadas nas políticas de saúde, relacionando-as com o processo mais amplo de impedimento/retração do direito universal à saúde – “a política mais abrangente do modelo de bem-estar social brasileiro”.
No Capítulo 7 é abordada a institucionalização de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) no Brasil, expressando a potência das coalizações de interesses entre organizações da sociedade civil e setores de governo, que se fortaleceram nos espaços institucionais de participação social e intersetorialidade. “Ainda assim, não foi possível evitar um desmonte, ainda que parcial, dessa política, especialmente em contextos de crise, quando as medidas de austeridade incidiram de forma importante em alguns programas alimentares”.
O Capítulo 8 mostra que a eleição de uma nova coalizão política de esquerda à Presidência da República na primeira década do século XX possibilitou que a defesa da assistência social como direito ocupasse cargos estratégicos no governo federal e impulsionasse a construção do Sistema Único de Assistência Social (Suas).
O Capítulo 9 é reservado a considerações finais.
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Sumário (em português)
Cidadania em perigo – Desmonte das Políticas Sociais e Desdemocratização no Brasil
Parte I Abordagens Teóricas do Estado de Bem-Estar Social na América Latina...................11
Capítulo 1 – Estado de Bem-Estar: em busca de uma teoria latino-americana
Sonia Fleury ..............................................................................................................................13
Parte II Políticas de Austeridade e Constrangimentos Econômicos .................................... 59
Capítulo 2 – A construção institucional da austeridade pós-1988
Carlos Eduardo Santos Pinho ................................................................................................... 61
Parte III Emprego e Seguridade Social ............................................................................... 93
Capítulo 3 – As Reformas Trabalhistas e a Crise do Corporativismo Democrático
Ronaldo Teodoro ................................................................................................................................... 95
Capítulo 4 – O Desmonte das Políticas de Emprego no Brasil: a empregabilidade sem direitos
Arnaldo Provasi Lanzara ........................................................................................................ 124
Capítulo 5 – A Encruzilhada da Previdência Social: entre a solidariedade fragilizada e a apropriação financeira
Fernanda Pernasetti .............................................................................................................. 150
Parte IV Sistemas de Políticas Sociais sob a Égide da Desdemocratização ........................ 185
Capítulo 6 – Direito Universal à Saúde no Brasil: da expansão restringida ao desmonte
Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato .................................................................. ..............................187
Capítulo 7 – O Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional brasileiro – tensões, conflitos e paradoxos
Luciene Burlandy ...................................................................................................217
Capítulo 8 – Avançando em Direção ao Passado: o desmonte do Sistema Único de Assistência Social
Mônica de Castro Maia Senna ..................................................................................... 256
Parte V Reflexões Finais .................................................................................................. 291
Capítulo 9 – Populismo Autoritário, Desdemocratização e Desmonte das Políticas Sociais: lições do caso brasileiro
Sonia Fleury, Arnaldo Lanzara, Carlos Pinho, Fernanda Pernasetti, Lenaura Lobato, Luciene Burlandy, Mônica Senna e Ronaldo Teodoro......................................................................... 293
Sobre os autores ................................................................................................................... 324
Siglas e abreviações .............................................................................................................. 325