Livro analisa as relações entre estados, municípios e União durante a pandemia de Covid-19 e identifica um ‘novo federalismo’
As mudanças nas relações federativas, entre estados, municípios e União, observadas nos últimos anos é o tema do livro Novo Federalismo no Brasil: Tensões e inovações em tempos de pandemia de Covid-19, dos pesquisadores Sonia Fleury e Assis Mafort – ambos à frente do projeto de pesquisa Futuros do Federalismo, do CEE-Fiocruz –, que acaba de ser lançado. A produção do livro é fruto de parceria entre o CEE, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A versão on-line já está acessível – em breve será lançada a versão impressa – e teve dois lançamentos, em Brasília, durante a Assembleia do Conass, em 29/11/2023, e na 11ª Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), no dia seguinte. O lançamento nesses fóruns representou uma oportunidade de os pesquisadores, organizadores da obra, apresentarem aos gestores da Saúde a trajetória do trabalho realizado, conforme destacaram.
“A CIT é um espaço privilegiado, porque materializa nosso objeto de estudo, que é o pacto federativo tripartite, um dos pilares do SUS e da democracia no Brasil”, afirmou Assis Mafort.
Em mais de 500 páginas, a publicação reúne 12 artigos de 18 autores provenientes de oito instituições, resultado da pesquisa desenvolvida no âmbito do CEE, durante três anos. “Começamos a trabalhar neste livro a partir das tensões observadas nas relações federativas, diante de uma conjuntura tão difícil quanto a que estávamos vivendo na pandemia, analisando se o padrão federativo da Constituição de 1988 iria se alterar”, relatou Sonia Fleury. “Mas não nos debruçamos só sobre as tensões. Também começamos a perceber inovações decorrentes desse cenário”, destacou.
Conforme observou Assis, o pacto federativo tripartite “sofreu golpes muito duros”, e a relação de cooperação entre os entes federados, que permitiu a construção do Sistema Único de Saúde nos últimos trinta anos, foi rompido “por um governo federal que não só retirou, deliberadamente, a coordenação do Ministério da Saúde, como produziu um movimento de confrontação com estados e municípios”, pontuou. “Pela primeira vez, nessa conjuntura crítica [conceito que orientou academicamente a pesquisa], ficamos com um sistema nacional de saúde sem coordenação federal, uma conjuntura inédita”, apontou Assis, acrescentando, no entanto, que, se a capacidade de coordenação nacional se perdeu, por outro lado, a aprendizagem adquirida em trinta anos de articulação entre os entes federados, com a atuação do Conass e do Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], fez emergir um novo padrão de relação intergovernamental, “um novo federalismo no Brasil”, possibilitado pela própria arquitetura flexível das relações federativas conformada no setor saúde a partir da Constituição de 1988, .
Esse novo federalismo – termo cunhado pelo idealizador e primeiro coordenador do CEE-Fiocruz, Antonio Ivo de Carvalho (1950-2021), lembrou Assis – tratou-se de um federalismo cooperativo, que na ausência de coordenação federal, passou a contar com uma coordenação horizontalizada, “com a expertise do Conass e do Conasems”, nos aspectos político e institucional.
Nesse processo, prosseguiu o pesquisador, a formulação de políticas antes conduzida de forma tripartite pelos entes federados passou a ser exercida em grande parte pelo Congresso Nacional, “que teve papel importantíssimo na formulação de propostas estratégicas de apoio a estados e municípios”, e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que “também inverteu seu papel de decidir a favor da União e passou a decidir a favor de estados e municípios”.
A equipe de pesquisadores analisou 65 projetos de lei que revelaram uma atuação do Congresso “diferente de tudo o que vimos nos últimos trinta anos”, como observou Assis, no que diz respeito a um protagonismo e uma autonomia na relação com as instâncias estadual e municipal, de modo a apoiá-las. Foram analisadas também mais de trinta decisões do STF, apontando para uma defesa dos direitos de autonomia federativa de estados e municípios “frente a uma ação negacionista do Governo Federal”.
Para os pesquisadores, o arranjo descentralizado que se conformou durante a pandemia de Covid-19, constituindo o novo federalismo que dá título ao livro, deverá deixar marcas e apontar tendências para os próximos anos. Nesse sentido, o trabalho de pesquisa deverá continuar, diante da nova conjuntura política que vem sendo conformada no governo Lula e contando com o conhecimento adquirido ao se atravessar a pandemia.
“Quais cenários se divisam no federalismo brasileiro e como esse novo padrão de federalismo levará à condução das políticas no Ministério da Saúde e nas secretarias estaduais e municipais?”, observa Sonia Fleury, apresentando algumas das novas indagações. “Não é um tema que tenha muito charme na academia, mas esse é também um projeto político. Achamos fundamental entender esse fenômeno para poder incidir politicamente, entender onde estão as grandes lacunas e os grandes avanços”, considera.
Em comentário na contracapa do livro, o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde (Sictics/MS), Carlos Gadelha, coordenador científico do CEE-Fiocruz, aponta a obra como “emblemática” da proposta de construção de um think tank público, democrático e “comprometido com um projeto ousado de país”. Para Gadelha, a tarefa de “reconstruir a nação e de recriar a federação, com respeito ao papel e as inovações no âmbito dos estados e municípios, talvez seja o maior desafio de um país que de fato seja comprometido com a soberania e o desenvolvimento em suas dimensões econômica, social, ambiental e territorial”.
A gestão da Saúde como objeto de pesquisa ao longo do tempo
A busca por compreender a gestão na área da Saúde e as relações entre os entes federativos vem orientando estudos realizado por Sonia Fleury, Assis Mafort e colegas há mais de vinte anos. Um primeiro estudo realizado com secretários municipais de Saúde resultou no livro Democracia e inovação na gestão local da saúde (Editora Fiocruz, 2014), disponível online. A obra apresenta o resultado de pesquisa realizada ao longo de uma década, de 1996 a 2006, sobre as mudanças no perfil desses gestores e nos padrões de inovação, social, gerencial e assistencial, das secretarias municipais de Saúde. “Constatamos uma mudança no perfil dos gestores, que se tornou mais democratizado: menos homens brancos, mais mulheres, mais negros”, relata Sonia.
“Fizemos isso em 1996 e depois em 2006, aplicando o mesmo estudo, para ver como, com a evolução da descentralização, se consolidava esse fenômeno de transformação do poder local”, conta a pesquisadora, destacando que os resultados foram impactantes. “Chama atenção que os gestores que se qualificaram para a função de gestão, em cursos de pós-graduação, especialização, tenderam a ser mais inovadores que os demais gestores”, exemplificou.
Acesse o pdf do livro Novo Federalismo no Brasil: Tensões e inovações em tempos de pandemia de Covid-19
Conheça o sumário do livro
A “real natureza” do novo arranjo federativo, a articulação de seus componentes, as inovações políticas, institucionais e gerenciais desenvolvidas, bem como seus limites e insuficiências, são algumas questões orientadoras dos artigos reunidos no livro, que abordam desde o desmonte do Ministério da Saúde até o papel desempenhado por novos entes como o Consórcio do Nordeste, a CPI da Covid-19 e as ações da Frente Pela Vida, entre outros pontos.
Os autores buscam mostrar como a base cooperativa e descentralizada, instituída pela Constituição de 1988 e pelas Leis Orgânicas do SUS (8.080 e 8.142/1990) facilitaram a emergência desse novo arranjo de coordenação federativa, diante de uma conjuntura crítica sanitária mundial.