Leandro Safatle: preços de medicamentos e a necessidade de uma abordagem que vá além das questões regulatórias
“A regulação de medicamentos tem cumprido seu papel e conseguiu, ao longo dos anos, trazer resultados importantes para o país”, afirma o economista Leandro Safatle, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz) e integrante do Grupo de pesquisa sobre Desenvolvimento, Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde (GIS/Ensp/Fiocruz), em entrevista ao blog do CEE, na qual analisa as possibilidades e também os limites da política regulatória.
Conforme explica o pesquisador, a regulação de medicamentos no Brasil se dá em etapas e por órgãos distintos, como a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (Conitec), cada um com objetivos, regras e necessidades específicas. “Temos a Anvisa fazendo regulação sanitária, a CMED fazendo regulação de preços e a Conitec, na incorporação de tecnologias”, explica.
Sem a regulação, teríamos uma dificuldade muito maior de manter a sustentabilidade do sistema de saúde público do país
Ele observa que essa forma de a regulação operar tem sido essencial para sustentabilidade do sistema de saúde brasileiro e para dirimir parte da sua vulnerabilidade . "Sem a regulação de mercado, teríamos um problema gravíssimo para manter o sistema de saúde público, isso porque os preços iriam se desequilibrar, tendendo provavelmente a um padrão americano, que poria em risco o nosso sistema universal de saúde”.
O pesquisador traz o exemplo dos Estados Unidos, um dos maiores mercados do mundo e o que pratica os maiores preços. “É um mercado com escala e com competitividade, mas onde se opera com muita disfuncionalidade e que demandará provavelmente novas intervenções governamentais. Dos países desenvolvidos, o que tem o mercado menos regulado é o americano e, que, por isso, é o que mais propaga falhas para os demais mercados”.
Em relação aos preços de medicamentos no país, Safatle esclarece que, embora o Brasil tenha um desenho regulatório que trouxe resultados e conquistas importantes, com redução dos abusos nesse mercado, não se pode falar que os preços de medicamentos adotados no país sejam preços justos. “O que a regulação busca é que os preços máximos de comercialização aqui não se distanciem dos preços do mercado internacional e que os novos medicamentos não prejudiquem o funcionamento do mercado atual. A discussão de preços justos é muito mais ampla e vai além da regulação.” Safatle observa que o problema de preços é multifatorial. “Vai desde as falhas, assimetrias e características e barreiras desse mercado, até a dependência externa, variáveis macroeconômicas e as transições tecnológicas do setor”, enumera.
De acordo com o pesquisador, a regulação é um conjunto de instrumentos importantes, mas sozinha não resolve a questão de preços de medicamentos, que é complexa e envolve outros fatores e instrumentos diversos. “Se a discussão for preço, a regulação aborda apenas um dos campos da formação dos preços. Para operar nesse mercado, é preciso atuar em várias frentes, não só a regulatória”, explica, observando que se trata de uma visão abrangente, “do complexo como um todo, econômico e social da saúde”.
A regulação tem como principal foco evitar abusos de mercado
Tornar o mercado de medicamentos “mais pujante e eficiente”, destaca Safatle, depende de uma série de ações.“Você tem as políticas regulatórias e de incorporação, as políticas de fomento, as ações de promoção da concorrência, as políticas de inovação, as diferentes políticas sociais de ampliação do acesso e várias outras questões econômicas envolvidas”, analisa. “Veja que a questão regulatória é uma parte desse cenário, um aspecto bem importante, mas é importante entender esse contexto, até para saber que instrumentos criar e quem deve operá-los.
Os preços são um efeito do bom funcionamento desse mercado.” Um aspecto que se relaciona à regulação e que pode melhorar, aponta o pesquisador, refere-se ao avanço de alguns instrumentos de intervenção neste setor. “A regulação precisa avançar diante do atual contexto de desafios e de transição tecnológica que vivemos.
A regulação brasileira é ainda muito enrijecida e esse é um ponto importante que precisa ser debatido”, considera. Ao mesmo tempo, acrescenta o pesquisador, esse ‘enrijecimento’ tem sua justificativa e um aspecto positivo, de conferir proteção à estrutura regulatória. “Excesso de discricionaridade em um ambiente com tantos interesses envolvidos poderia colocar a regulação em risco”. A regulação de preços de medicamentos, de qualquer forma, destaca Safatle, não representa desafios apenas para o Brasil, é uma questão global, discutida, inclusive, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nos fóruns Fair Pricing, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e outros organismos que buscam junto aos países promover programas e políticas que tornem os medicamentos acessíveis a todas as pessoas. “Estamos num desafio global, e a estrutura regulatória é feita para racionalizar esse processo”, diz. “Mas é difícil”.
A regulação de preços de medicamentos não representa desafios apenas para o Brasil, é uma questão global
Safatle chama atenção, ainda, para as práticas de judicialização e suas consequências, no que diz respeito ao escape da proteção do aparato regulatório. “Via judicialização adotam-se normalmente preços bem superiores aos daqueles que seriam permitidos pelo modelo regulatório”, alerta. Outro fator preocupante, acrescenta, tem sido a dependência da indústria. “Crises que afetam a cadeia global de produção, como a que estamos vendo na na pandemia de Covid-19 e na forma como a indústria vem evoluindo e inovando, afetam bastante esse setor”.
O contexto tecnológico atual também é outra questão importante. “Essa configuração que a indústria está seguindo, de priorizar segmentos altamente lucrativos, voltados a doenças muito específicas e medicamentos de alto custo, em que se consegue rentabilidade mais alta, em detrimento daqueles de largo espectro e preços baixos, nos expõe a uma serie de problemas, como os de desabastecimento”, aponta.
Safatle conclui, destacando o papel do Complexo Econômico Industrial (CEIS) diante dsa necessidade de uma visão mais sistêmica de abordagem. “O mercado de medicamentos está em reconfiguração e, para se atuar nele de forma eficiente, é preciso entender essa complexidade, o modo de funcionamento do mercado, a diversidade da institucionalidade da ação pública e o papel de cada uma delas. Esse é um mercado complexo, essencial e estratégico e é preciso considerá-lo como tal”, pontua.