Joyce Schramm: ‘São pouquíssimos os estudos sobre os efeitos da relação crise-austeridade na saúde, abaixo da Linha do Equador’

Joyce Schramm: ‘São pouquíssimos os estudos sobre os efeitos da relação crise-austeridade na saúde, abaixo da Linha do Equador’

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Políticas que respondem à crise econômica com austeridade fiscal fazem mal à saúde. Estudo recém-concluído, de revisão, abrangendo o período 2006- 2017, sobre a relação crise-austeridade, verificou que as políticas econômicas que optaram pela austeridade fiscal como forma de enfrentamento da crise foram as que produziram maior impacto restritivo sobre os sistemas e serviços de saúde. O trabalho foi realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), tendo à frente os pesquisadores Joyce Mendes de Andrade Schramm, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), o epidemiologista e especialista em avaliação de políticas públicas Rômulo Paes-Sousa, do Centro de Pesquisas René Rachou da Fiocruz, e o pesquisador colaborador do CEE, Luiz Villarinho.

Os artigos estudados pelos três referiram-se, em sua maioria, aos países do Hemisfério Norte, tendo sido encontrada literatura restrita em relação à América Latina e ao Brasil. Isso chamou atenção para pelo menos dois pontos importantes, como observa Joyce Schramm, nesta entrevista para o blog do CEE-Fiocruz. Um deles é a necessidade de se produzirem evidências sobre o Brasil e a América Latina. O outro refere-se à possibilidade de a crise econômica no país combinada com medidas de austeridade fiscal – expressas na Emenda Constitucional 95, de 2016, que congela os gastos públicos por 20 anos –, resultar em uma situação ainda mais grave do que a vivenciada pelos países desenvolvidos que possuem sistemas de saúde mais estruturados.

“Se tem algo que precisamos tomar como ponto de partida para pensar a produção de evidências para o país é que o contexto brasileiro é muito diferente do contexto europeu. Alguns países da Europa têm sistemas de saúde fortes e consolidados, o que não é o caso brasileiro cujo Sistema Único de Saúde sofre de subfinanciamento crônico”, analisa Joyce.

O estudo compreendeu 884 artigos. Em uma primeira etapa, foram consideradas apenas as revistas científicas, abrindo-se depois  a pesquisa para livros e literatura cinzenta (documentos, avaliações, publicações na mídia, entre outros).

Leia a entrevista a seguir.

 

O que o estudo de revisão apontou no que diz respeito à associação entre austeridade e crise e seus efeitos sobre a saúde? Essa relação é clara?

Primeiro, que as informações sobre o tema referentes aos países abaixo da Linha do Equador são bastante restritos. Há muita coisa publicada sobre Europa e Estados Unidos, alguma coisa sobre Japão e Coreia e Austrália. Em relação à Europa, há sobretudo publicações relativas a Grécia e Espanha, alguma coisa sobre os países nórdicos, Portugal, Irlanda e Islândia e a França. Desse material, na primeira busca que fizemos, verificamos que 50% dos artigos tratavam de impactos sobre transtornos mentais: aumento de casos de ansiedade, depressão e do risco de suicídio.

 

Relacionados à crise e às medidas de austeridade?

Sim. Os artigos mostraram uma relação entre crise e austeridade e aumento de transtornos mentais. Vimos que isso foi estudado de muitas maneiras: estudos de tendências, que indicaram aumento nos casos de suicídio; estudos ambulatoriais, indicando aumento da procura por serviços de atenção aos transtornos mentais e aumento do consumo de medicamentos para tratamento desses transtornos; estudos sobre mortalidade; outros com foco na saúde materno-infantil. Estudos de revisão mostraram as relações com doenças ocupacionais, doenças crônicas (cânceres, doenças cardiovasculares, diabetes), violência, além de suicídio. Houve um inquérito realizado em hospitais na Grécia que verificou aumento da entrada de pacientes com traumatismo bucomaxilofacial decorrente de violência interpessoal, e aumento de casos de traumatismo craniano em crianças por causas não acidentais – isto é, provocado –, relacionados a períodos de crise, em comparação a períodos anteriores. Às vezes, os índices não parecem expressivos, 2%, 3%, mas são, dentro do contexto a ser analisado.

 

Como se deu a definição das fontes a serem consultadas para a realização dessa revisão?

Escolhemos a revisão narrativa com critério de inclusão que atendesse ao objetivo de obter o máximo de conteúdos possível. Embora não tenhamos mergulhado na literatura cinzenta – teses, matérias jornalísticas, blogues –, localizamos, no percurso, alguns textos que resolvemos incluir. O que há de produção de evidência publicada para o Brasil está na literatura cinzenta; algumas análises que vêm sendo feitas é a literatura cinzenta que está publicando.

 

O que chamou a atenção de vocês, nos dados encontrados, que possibilita orientar o olhar para a realidade brasileira?

Se tem algo que precisamos tomar como ponto de partida para pensar a produção de evidências para o país é que o contexto brasileiro é muito diferente do contexto europeu. Alguns países da Europa têm sistemas de saúde fortes e consolidados, o que não é o caso brasileiro cujo Sistema Único de Saúde sofre de subfinanciamento crônico. Algumas análises que fizemos para o país, relativas ao período anterior ao da Emenda Constitucional 95 [promulgada em dezembro de 2016 e que congela os gastos públicos por 20 anos], até 2014, 2015, já mostram resultados comprometedores. Os dados sobre diabetes, por exemplo, um tema com o qual eu trabalho, já apresentavam resultados que apontam que ainda temos muito trabalho pela frente. Além disso, é importante compreender que é preciso trabalhar na melhoria contínua da qualidade e que efetividade e eficiência decorrem de processos longos e cumulativos.

É preciso perguntar quanto a desassistência vai custar – além de sofrimento e mortes desnecessárias

De qualquer maneira, os estudos que vocês analisaram, ainda que se refiram ao Hemisfério Norte, são suficientes para deixar o nosso país em alerta, não?

O Brasil tem um cenário epidemiológico com predominância das doenças crônicas. Isso se expressa no campo da atenção pela importância do cuidado longitudinal, por muitos anos. Muitas dessas doenças, como o diabetes, são irreversíveis; o paciente precisa aderir ao tratamento, tomar o medicamento, perder peso, fazer exercício físico, fazer o controle das possíveis sequelas buscando evitá-las e/ou minimizando as incapacidades. Isso demanda do sistema de saúde um cuidado ao longo do tempo,  por muito tempo – e por toda vida, em algumas situações –, de forma a não incapacitar essas pessoas. Entender isso é muito importante tendo em vista que a demanda pelo sistema de saúde tende a aumentar. Dessa forma, desassistir é muito complicado. Já temos um cenário bastante fragilizado, e o que vai acontecer é uma piora do acesso.

 

O enfrentamento de crises financeiras, como vocês apontam no estudo, pode se dar não pela retração, e sim pelo aumento do gasto público com saúde. Por que essa segunda opção não é clara para muitos governantes? Afinal, menos recursos para a saúde resultam em mais gastos lá na frente...

Sim, é preciso perguntar quanto é que a desassistência vai custar – além de sofrimento e mortes desnecessárias. Os desfechos dependem de o quanto se protegeram ou não as políticas sociais. Alguns estudos mostraram que certos programas foram preservados em termos de investimento como por exemplo o programa de atenção e cuidado às mães e crianças, organização e reforço do programa de atenção e cuidado à população de rua. Desinvestir ou investir menos em diagnóstico precoce e vigilância, por exemplo, leva a aumentar os casos de doenças, e isso vai custar mais em curto e médio prazos. Não diagnosticar e não tratar significa que a pessoa vai voltar para a rede de atenção mais doente, mais comprometida, em situação de maior complexidade, o que irá representar mais gastos. Esse cálculo precisa ser feito. Verificamos estudos que mostram isso. Um  deles, de dois autores que são referência no tema da austeridade, [o economista e sociólogo britânico] David Stuckler e [o epidemiologista da Universidade de Stanford, Estados Unidos] Sanjay Bazu, o primeiro, autor do livro Por que a austeridade mata, mostram, em um artigo sobre tuberculose, que os Estados Unidos, buscando reduzir em 100 milhões de dólares os recursos para detecção da doença, acabaram gastando 1 bilhão de dólares, por conta de  uma epidemia decorrente de resistência às drogas para tratamento. Não investir pode custar muito mais.

 

O que se pode fazer, diante dessa constatação?

Inserimos em nosso estudo uma observação dos professores e pesquisadores Martin Mckee e Gregory Thomas-Reilly [no artigo Austerity: a failed experiment on people of Europe, 2012] que diz que a implementação de medidas de austeridade tem sido limitada a ministros da área econômica, e que os ministros da Saúde não têm ocupado o lugar devido na discussão da agenda implementada. Na realidade, ou temos ministros da Saúde fortes, comprometidos com políticas sociais, para discutir com a área econômica que medidas de austeridade serão tomadas, ou... É uma decisão política. Trabalhei muitos anos com carga de doenças; fiz estudos sobre isso no Brasil. No último que fizemos, as doenças infecciosas representavam 1% do total da carga. Essa proporção tão baixa seria razão para reduzir investimento? Claro que não! Estamos vendo aqui o caso da febre amarela, que tinha praticamente carga zero! Veja a zika... Se eu diminuo a vigilância, se reduzo recursos em atuações específicas, estou reduzindo a detecção. Se estou reduzindo a detecção, estou aumentando os riscos e seus efeitos.

Ou temos ministros da Saúde fortes, comprometidos com políticas sociais, para discutir com a área econômica que medidas de austeridade serão tomadas, ou... É uma decisão política

 

Esse é o caso da febre amarela, que veio avançando no país?

O caso da febre amarela não pode ser exclusivamente atribuído a esse fato. Mas que a redução de recursos para ações estratégicas tem peso, tem. Não se podem reduzir recursos em vigilância. A vigilância ativa é fundamental para detecção precoce de doenças. A bibliografia que consultamos nesse estudo de revisão que fizemos indica como pontos importantes as quedas de investimentos em diagnóstico precoce e na detecção. Isso demanda recursos, demanda serviços, demanda pessoal bem treinado, para lidar com doenças infecciosas e também com doenças crônicas – câncer de colo, câncer de mama, de próstata. Imagine-se deixar de investir em rastreamento de câncer de colo? As medidas de austeridade têm impacto na rotatividade de pessoal, comprometendo a qualidade, na incorporação de novos profissionais, enfim, cria-se um conjunto de situações que reduzem as condições de diagnóstico precoce e levam a uma perda de oportunidade de tratamento e cura. Essa conta temos que fazer.

 

Como começar a fazer isso?

Precisamos produzir evidências, analisar os dados. No X Congresso de Epidemiologia realizado em 2017, em Santa Catarina (SC), David Stuckler fez uma fala em que conclamou os profissionais de saúde, os epidemiologistas, a trabalhar nessa produção de registros, de evidências. Temos, por exemplo, situações reportadas por quem trabalha no campo dos direitos humanos e da judicialização, mostrando a dificuldade cada vez maior de acesso a tratamento, a medicamentos. Nós ainda não sistematizamos os dados disponíveis. Já existem consequências sobre a saúde do subfinanciamento que atinge o SUS. O quanto isso vai piorar no tempo com a EC 95, isso precisa ser medido.

 

Não tivemos melhorias nos últimos anos?

Claro que tivemos melhorias. No campo da saúde materno-infantil, a expansão da atenção primária trouxe melhorias como a redução de internações por condições sensíveis à  atenção primária; muitos indicadores de doenças crônicas mostram melhoras, como por exemplo a redução da mortalidade cardiovascular. Mas a tarefa que temos pela frente é grande. E vai exigir o trabalho em rede. São muitas as análises possíveis, requerendo, em várias situações, um olhar multidisciplinar.

 

Que especialistas devem participar de uma rede assim?

Uma discussão como essa tem que se dar em diálogo com diferentes atores, com diferentes setores. Há um dado que nos mostra que cada dólar gasto em prevenção pode gerar economia de até dez dólares em gastos posteriores para os governos. Na verdade, não se está gastando, se está investindo. Os economistas falam disso muito bem. Há também grupos de direitos humanos, que trabalham com a área da saúde e têm contato imediato com questões relacionadas à judicialização e às dificuldades de acesso ao sistema de saúde. Temos, a sociedade civil, enfim, são muitos atores. Não consigo ver um trabalho desses que não seja realizado em rede, em parceria, com economistas, com o Judiciário, com a sociedade civil. Temos informações produzidas, na Fiocruz, por exemplo, com os dados dos serviços de saúde, mas esses dados ficam perdidos em nossos artigos, nossas teses, nossos trabalhos. Não saem desse espaço acadêmico para a sociedade. E deve haver muita coisa na literatura cinzenta, que vai aparecer, à medida que formos aprofundando essas análises. Quando se fizer uma busca mais aprofundada, mais dirigida, por tema, tudo isso vai aparecer. É preciso trabalhar com uma lupa em determinadas questões, de forma a resgatarmos o material que já existe.