“Sem Educação não tem ciência, sem ciência não tem tecnologia, sem tecnologia não tem inovação” – Helena Nader no CEE Podcast
A situação da educação brasileira é uma das grandes preocupações da bioquímica Helena Nader, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 106 anos. Empossada em maio de 2022, ela explica que o encolhimento de programas federais para as universidades, como o auxílio permanência, e a situação das bolsas de doutorado congeladas há oito anos têm desestimulado muitos jovens a buscar uma formação acadêmica. “Aquela mobilidade linda, que estava acontecendo no Brasil, deixou de acontecer. Estamos eliminando o futuro. Isso é o que me preocupa, porque aquele que você deixa de formar, não forma mais”, diz Nader, que é também professora titular na Universidade Federal de São Paulo.
O país está perdendo o que ela chama de janela de oportunidade, em um momento histórico de transição da estrutura etária da pirâmide demográfica, iniciada em meados do século XX, com queda das taxas de natalidade e de mortalidade. “A previsão é que a partir de 2050, 2055, a maior parte da população esteja na faixa acima de 60 anos. Quem vai manter esse indivíduo de 60? Esse jovem de quem estão tirando todas as oportunidades”. O Brasil está indo, avalia Nader, na contramão em relação a outros países que, também, não atingiram a estabilidade demográfica. Índia, China e países da Oceania, cujo pico dessa transição ocorrerá muito mais à frente do que o do Brasil, estão investindo pesado em educação e ciência.
“Temos que inserir a educação no século XXI”, sublinha Nader. Para discutir como a academia pode contribuir para mudar o atual panorama da educação brasileira em todos os níveis, desde a creche até o pós-doutorado, um grupo de trabalho foi criado na ABC. Esse grupo irá mapear o que já existe de pesquisa sobre o tema, compilar os dados e mostrar as possibilidades. Em um país continental como o Brasil, ela diz não acreditar em um modelo único de educação para ser aplicado em todos os estados e municípios, porque cada um tem suas caraterísticas.
Essa visão do Brasil, buscando contemplar sua diversidade, está presente também em outra pauta da atual gestão. “Nós temos seis vice-presidentes regionais, então, uma das principais iniciativas que eu gostaria de ter bem implementada é um foco nas regionais”, diz Nader. Esse direcionamento visa não à busca de mais autonomia para essas regionais, porque isso, diz a pesquisadora, elas já têm. O objetivo é “realmente reverberarem mais naquela área e, com isso, a ABC fazer um trabalho de sondagem do que aquela região precisa e traz de importante para o país”, explica.
As águas e contaminações, assim como a saúde única, que envolve o conceito de saúde planetária, são exemplos de outros temas que estão mobilizando a atenção da ABC. Os grupos de trabalho da instituição estão fazendo levantamento das pesquisas existentes a respeito desses temas, para sistematização dos dados, como forma de contribuir para a elaboração de políticas públicas. “A nossa ciência é muito boa, nós temos trabalhos e dados”, diz Nader, apontando que o que falta é uma política de Estado para o setor.
A pesquisadora cita, ainda, um assunto que atraiu a atenção mundial, em junho: os assassinatos do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, que também vêm mobilizando a ABC. “Como é que não se tem mais o direito de ir e vir?”, indaga, explicando que essa restrição acaba afetando diretamente a ciência. “Era um jornalista e um indigenista, que é um cientista. Os antropólogos fazem missões, os botânicos, os biólogos. Quer dizer que hoje é proibido?”. A ABC deverá reunir dados científicos, mostrando a realidade dessa parte do Brasil desconhecida para muitos brasileiros.
Outra pauta que Nader quer implementar é o aumento da participação de jovens cientistas na ABC. A entidade é composta por membros titulares, membros colaboradores, membros correspondentes – cientistas radicados no exterior há mais de dez anos que tenham colaborado com o desenvolvimento da ciência no Brasil – e os membros filiados, constituídos por jovens pesquisadores promissores das seis regiões definidas pela ABC (Norte, Nordeste e ES, RJ, MG e Centro-Oeste, SP e Sul), indicados e eleitos por membros titulares com atuação nessas regiões. “Nós queremos que nossos grupos de trabalho sempre tenham membros afiliados, porque é uma maneira de dialogar com esses jovens e trazer a visão deles. Muitas vezes, eles têm uma visão diferente.”
Nader aborda, também, o que a ABC vem fazendo para aumentar tanto a representatividade feminina na instituição, como a de cientistas negros. “Quando vimos que havia muito menos mulheres do que homens, embora mais do que 50% da ciência seja feita por mulheres, o que nós decidimos? Buscar mulheres cientistas de grande porte e propor os nomes dessas mulheres como membros”, relata. O resultado da busca ativa fez com que no início deste ano, pela primeira vez, a ABC elegesse mais cientistas mulheres do que homens para o quadro titular de acadêmicos. Na época, Nader era vice-presidente da organização. Essa política continua na atual gestão. Hoje elas representam 18% desse quadro, número que representa um avanço, mas que a pesquisadora avalia ser ainda aquém, principalmente, quando comparado com o percentual de mulheres na ciência.
Outro aspecto que a pesquisadora ressalta, diz respeito à baixa representação de cientistas negros na organização. “A Academia tem que refletir sobre onde ela está inserida, o país a que ela pertence”, diz Nader, enfatizando que o país é miscigenado e “não branco de olhos, verdes, azuis ou castanhos”. Embora seja a favor de políticas afirmativas, no caso da eleição de novos membros, ela defende que continue sendo um processo meritório. No entanto, ela sublinha a importância de ser feita a busca ativa. A eleição de novos membros para a ABC funciona com base em proposta encaminhada e currículo, e votada inicialmente na área específica de atuação do cientista. Aqueles que passam por esse primeiro turno vão para o segundo, onde serão votados por todos os acadêmicos. “É mais simples eu conhecer o meu entorno, e, muitas vezes, fora do meu entorno, tem grande qualidade. Foi isso que vimos quando fizemos a busca ativa por mulheres”.
Ao falar dos desafios da ciência brasileira, Nader destaca como o principal deles a inexistência de uma política de Estado voltada à ciência. “Escrevemos leis como ninguém, muito boas, bem escritas, mas o cumprimento delas é pífio e é desrespeitado pelo próprio parlamento que foi quem, às vezes, escreveu a lei”, afirma a pesquisadora. Para reverter essa situação, diz, é preciso ter no Brasil, de fato, o cumprimento da Constituição, com as suas emendas, e a compreensão por parte dos governantes da importância da ciência para o desenvolvimento do país. Nessa mesma direção, a pesquisadora defende a manutenção das universidades públicas pela importância na formação dos jovens e para a própria ciência, não concordando com os que consideram “um desperdício” esse investimento. “O brasileiro é sinônimo de resiliente. Eu continuo lutando pelo jovem. Acredito no Brasil e nenhum político ou grupos de políticos vai tirar de mim a confiança no país”.
O desenvolvimento a que a pesquisadora se refere deve contemplar uma preocupação social e ambiental, com diminuição da pobreza. O número de brasileiros que durante a pandemia passou para a linha da pobreza máxima e o número de jovens que não voltaram à escola, após o retorno das aulas presenciais, são motivos de preocupação para ela e indicativos de que, se nada for feito, o futuro do país estará comprometido.
Em relação ao financiamento da ciência e tecnologia, Nader considera que o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), hoje, se tornou a “tábua de salvação”. Antes, observa, assim como outros fundos setoriais, havia um enfoque mais estratégico, voltado a alguns projetos específicos. A substituição regular do orçamento da ciência e tecnologia pelos repasses desse Fundo tornou, por exemplo, o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal órgão de fomento à pesquisa no Brasil, totalmente dependente do FNDCT. Para agravar a situação, observa a pesquisadora, apesar de a Lei Complementar 177, de 2021, proibir o contingenciamento do FNDCT, R$ 2,5 bilhões de recursos foram bloqueados e o orçamento do FNDCT para 2022 ficou 45% menor do que em 2021. “O que nós vamos ter de recursos não mantêm a ciência brasileira”.
Ao destacar o papel da ciência e tecnologia para o desenvolvimento e soberania nacional, Nader diz que “país soberano é aquele que cuida de suas fronteiras, de seu povo e da economia para ter uma sociedade igualitária”, lembrando que, em pleno século XXI, o Brasil ainda convive com palafitas e esgoto a céu aberto. Mas, ao mesmo tempo, o país tem capacidade científica e tecnológica e infraestrutura para, em sua avaliação, mudar essa realidade e se tornar um líder na área de ciência e tecnologia em saúde no Hemisfério Sul.
A pesquisadora sublinha o desempenho da Fiocruz e do Butantan na produção de vacinas, durante a pandemia, “duas instituições centenárias que nos salvaram e das quais os brasileiros deveriam se orgulhar”. O país com que a pesquisadora diz sonhar e acreditar é aquele que não vai perder a chance de alavancar seu desenvolvimento durante a atual janela demográfica – que vai acabar, pois o número de filhos por família está diminuindo e a população está envelhecendo. O projeto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde envolvendo as indústrias farmacêuticas e o poder de compra do Estado pode, em sua avaliação, contribuir para isso. “Claro que a iniciativa privada tem que ter lucro, ninguém é contra isso, mas tem que ter uma articulação, tem que haver uma visão do Estado”.