Há orçamento mais do que suficiente para universalizar a internet
Diante da suspensão das aulas na Educação Básica e no Ensino superior, como medida de enfrentamento da covid-19, o ambiente virtual acabou por se tornar um caminho para que as atividades escolares e universitárias fossem, de alguma forma, mantidas. Se, no cenário da pandemia, a modalidade remota de ensino torna-se uma alternativa para os quase 60 milhões de estudantes do país, 8 milhões deles no ensino superior, esta deve, no entanto, ser considerada como uma “estratégia de redução de danos”, apenas. É o que defende nesta entrevista ao FCS pensa a pandemia o cientista político Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Em sua análise, Daniel faz vários alertas quanto à facilidade com que a educação a distância e o ensino remoto resvalam para a precarização, comprometendo o direito constitucional à educação. Seja pela aquisição de soluções tecnológicas das grandes corporações – que aumentaram enormemente o patrimônio durante a pandemia –, sem a sustentação de um consistente projeto pedagógico, seja no uso dessa modalidade para baratear o processo, não para enriquecê-lo pedagogicamente. Daniel defende com veemência o ensino presencial, como central no processo de ensino e aprendizagem. Isso, no entanto, não interfere na sua luta pela inclusão digital. “É perfeitamente possível para o orçamento público brasileiro, mesmo com toda queda arrecadatória, universalizar o acesso à internet e a unidades computacionais. E essa universalização precisa ocorrer”.
A Constituição Federal, além de afirmar a Educação como direito de todos (art. 205), prevê, em seu artigo 206, a igualdade de acesso e permanência na instituição de ensino, com qualidade. Como avalia, de forma geral, a possibilidade de cumprimento desse artigo no contexto da pandemia de covid-19, em uma área já que acumulava tantos desafios na pré-pandemia, como a educacional?
A pandemia radicaliza algo que já existia. No Brasil, os estudantes não têm igualdade de condições no acesso e permanência na escola, e também não têm a garantia de um padrão de qualidade, que são incisos do artigo 206 e são afirmados como princípios da educação nacional. Na verdade, o país ainda não superou o fato de que a educação brasileira historicamente reproduz desigualdades. A matrícula em creche, a matrícula na educação superior, por exemplo, são extremamente elitizadas ainda. Em que pesem os avanços conquistados pós-1988, após a Constituição Cidadã, o país ainda é desigual e, na pandemia, isso se aprofundou enormemente.
De que forma esse aprofundamento se deu e como vê o caminho do ensino remoto, para fazer frente ao necessário isolamento social no controle da pandemia? O Conselho Nacional de Educação publicou nota em março na qual apoia a realização de atividades a distância na Educação Básica e no Ensino Superior, neste momento. Como levar isso à frente com equidade, tendo em vista que é necessário equipar alunos e professores que, em suas casas, não contam com estações de trabalho com acesso à internet?
É preciso olhar o ensino remoto como uma versão precarizada da educação a distância, que é, por sua vez, um arremedo da educação. Uma educação que já era precarizadaantes da pandemia, em termos presenciais, torna-se ainda mais precarizada na forma remota. No entanto, diante da crise sanitária, nãotem jeito, é uma alternativa. Mas precisa ficar claro que é uma alternativa de redução de danos, porque o processo de ensino e aprendizagem ocorre essencialmente na educação presencial. Não existe educação básica e formação na graduação que consigam ser desenvolvidas a distância com qualidade. Isso não é possível. A ausência desse ponto no debate prejudica a compreensão do que é o direito à educação. Esse direito se dá presencialmente, na educação básica e na graduação. Para o aprendizado, a educação presencial é elemento central.
Ainda que a modalidade à distância deva ser observada com essas importantes ressalvas, é preciso garantir a inclusão digital de professores e alunos, não? Para que se apropriem dos recursos tecnológicos como sujeitos nesses espaços de interação, colaboração e, por extensão, de exercício de cidadania. No entanto, de acordo com dados da PNAD Contínua do IBGE de 2018, um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet e um quarto dos estudantes da rede pública de ensino não acessavam a internet no momento da pesquisa. Qual o peso desse cenário nestes tempos de isolamento social?
Com a educação presencial prejudicada e a educação a distância como alternativa de redução de danos, conforme mencionei, não há como fazer isso sem unidade computacional e internet banda larga para os alunos. Isso precisa ser universalizado para toda a população como um direito. É perfeitamente possível para o orçamento público brasileiro, mesmo com toda queda arrecadatória, universalizar o acesso à internet e a unidades computacionais – não pode ser celular, é preciso usar computador ou tablet – para os estudantes. E essa universalização precisa ocorrer. No entanto, a educação nunca foi prioridade no país.E o ensino remoto está sendo muito mal gerido no país, com má distribuição de equipamentos, sem projeto pedagógico esem um trabalho que valorize e empodere os professores nas tomadas de decisão. Esse é um aspecto. O outro é que o acesso à tecnologia, em especial diante de uma situação pandêmica, vai além da questão educacional; as pessoas não conseguem realizar suas vidas plenamente sem esses recursos.
Como avalia a preparação dos professores, hoje, para lidar com o ensino remoto?
Os professores estão mais preparados para lidar com educação a distância e, sobretudo, para participar do processo de formulação das aulas, das tecnologias do que as pessoas imaginam. É desejável, salutar e eficaz que se aprofundem os processos de formação e treinamento, mas os professores aprenderam rápido, até por causa da pressão. A questão maior não é essa, e sim que não são ouvidos. O Brasil é o único país com grandes redes escolares, grandes quantidades de matrícula, em que a gestão da educação não é feita por especialistas, por educadores. O resultado disso é a tomada de decisão enviesada, desqualificada. Nenhum ministro da Educação conhece a realidade das escolas públicas ou trabalhou em escola pública de educação básica. A maior parte jamais estudou em uma escola pública. Quem desconhece o problema não tem capacidade de enfrentá-lo. Não é diferente no atual governo. As ciências da educação não são ouvidas. Na pandemia, fortaleceu-se um discurso que considero importante quanto à necessidade de se basearem as políticas de saúde em recomendações científicas. Isso, no entanto, não se dá na Educação. Não se assumiu que é preciso discutir as políticas educacionais a partir das ciências pedagógicas.
Embora a escola venha se repensando, muito ainda se observa de seu modelo fordista, ainda hierarquizado, linear. A necessidade do uso da educação remota, imposta pela covid-19, poderia ser tomada como uma oportunidade de se olhar mais criticamente para o modelo de escola que temos hoje?
Essa discussão pode ser feita. É possível se pensar em alternativas de atualização do cotidiano escolar, reconhecendo a importância das tecnologias da informação, que já constituem parte da experiência, da vivencia de crianças, jovens e adultos. O problema é que a utilização das tecnologias da informação e da educação híbrida, como agora virou moda dizer, acaba se tornandoum caminho para a precarização. Qual é a referência de pensamento? Se for o direito à educação, vamos por um caminho: universalização das unidades computacionais, universalização da internet banda larga, momentos mais substantivos dentro do cotidiano escolar, maior capacidade de interação entre aluno e professor e, principalmente, fortalecimento da ciência pedagógica como orientadora da política educacional. Se a resposta for atualizar para diminuir custo, para reduzir o direito à educação, vamos por um outro caminho, em que o uso das tecnologias aprofundam as desigualdades. Não podemos negar a importância das tecnologias da informação na construção de novos processos pedagógicos, mas a ênfase tem que estar no processo pedagógico, não na redução de custos, no sacrifício das redes públicas de ensino, que é para onde caminham as organizações empresariais de educação.
Fpp – A educação a distância traz esse risco de uma aproximação mais utilitária, digamos assim, do ensino e aprendizagem, visando à produtividade, ao lucro, a baratear o processo, em vez de enriquecê-lo pedagogicamente. Que cuidados devem ser tomados nesse sentido, para que, afinal, não se abra mão dos aspectos positivos do uso da tecnologia?
DC – É interessante abordarmos isso. Fiz uma live com o economista Eduardo Moreira, para discutir a educação a distância e conversamos sobre o poder do Gafam, grupo formado por Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Essas empresas cresceram enormemente com a pandemia. No Brasil, especialmente, aGoogle. AApple vai ser a primeira empresa da história a alcançar a marca de um patrimônio de 2 trilhõesde dólares. A pandemia está alimentando as empresas de tecnologia, que passam a ser a única alternativa de vínculo social. Só que, na área da Educação, isso está se dando de forma irrefletida, é assustador. Várias aquisições de soluções por eles oferecidas são aceitas sem nenhum tipo de cuidado pedagógico. A pandemia de fato tornou-se uma oportunidade para os ultra-ricos e está sendo dramática para quem não se encontra nessa categoria. Ultra-ricoé critério econômico para definir pessoas que têm uma renda superior a 20 milhões de dólares.
Não se trata de propor uma imobilização, ou um discurso contra a educação à distância como caminho neste momento, e sim de buscartrazer certos pontos para o debate público, para que não se comprometa o direito à Educação...
Sim. Sempre com duas referências fundamentais. A primeira é que a construção dos processos pedagógicos tem que estar nos professores e na ciência pedagógica. A segunda é que educação, de fato, com significância do processo de ensino e aprendizagem, ocorre na modalidade presencial. Fora isso, é redução de danos.
Na área da Saúde, tem sido muito enfatizada na imprensa e em debates diversos a falta de coordenação e condução de um esforço nacional no combate à covid-19, de um programa de emergência bem estruturadopor parte do governo federal. Em relação à Educação, como avalia essas relações interfederativas, entre União e governos estaduais e municipais, seja historicamente, seja neste momento de crise sanitária?
O governo federal abdica de governar, está totalmente ausente da coordenação. Menos Brasília e mais Brasil significa deixar os entes federados à própria sorte. A União, como próprio nome diz, é responsável por trazer os entes federados para um mesmo projeto de governo. No entanto, a coordenação federativa na área da Educação não ocorre. Não ocorreu no governo Temer e ocorre menos ainda agora. Tivemos uma situação em que a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação não conversou com estados e municípios!Só a União tem poder, e um poder grande, para universalizar o acesso a unidades computacionais e a internet banda larga. Nos nossos cálculos, isso custaria R$ 11 bilhões, um investimento que se faz de uma vez só. É recurso totalmente plausível, mesmo com todo abalo arrecadatório causado pela pandemia. Há orçamento mais do que suficiente para levar à frente essa medida. Mas outros fatores são mais preocupantes: como estruturar o ano letivo, como criar referenciais e orientações para encaminhar esse ano letivo? É preciso lembrar que o direito à educação é nacional, não é do cidadão de São Paulo, do Rio de Janeiro ou do Amazonas. É do cidadão brasileiro. Então, uma coordenação nacional é necessária, para garantir esse direito a todos, garantir igualdade de condições de acesso e permanência na escola. O Bolsonaro é responsável pela má condução do Brasil na pandemia. Mas as pessoas que morreram também são responsabilidade do Michel Temer e de todos os parlamentares que votaram a favor da Emenda Constitucional 95 [que congela os gastos públicos por vinte anos], em 2016.
O que poderia ter sido feito, no passado, para que hoje tivéssemos melhores condições de enfrentar esta pandemia? O financiamento tem um peso específico nisso?
Certamente, se tivéssemos implementado aspectos do Plano Nacional de Educação (2014-2024), estaríamos em outra situação. O plano determina a implementação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) [indicador voltado a garantir um valor mínimo de recursos a serem investidos por aluno em cada etapa e modalidade da Educação Básica pública], que teria dotado as escolas de melhores condições, inclusive tecnológicas. O CAQ prevê que toda escola pública brasileira pode ser um hot spot de internet banda larga e que todas as escolas tenham uma biblioteca com pelo menos 4 mil títulos. Não existe equipamento público no Brasil que seja tão capilar e tão disseminado quanto as escolas. Elas poderiam ser espaços de transmissão de sinal. Isso não foi feito, porque no Brasil não se investe pensando no que o povo brasileiro merece em termos educacionais. Essas iniciativas favoreceriam toda a sociedade brasileira, não só a educação básica. Pode-se pensar que a escola seja um equipamento de toda a sociedade, um equipamento de oferta de acesso a internet e a cultura. Isso conectaria também os estudantes universitários.E é barato, extremamente barato.
Como poderíamos agir a partir de agora, com as falhas e desafios que temos hoje? O que pode ser feito a partir daqui?
O que pode ser feito é o que a sociedade brasileira menospreza e que deveria ser central: não adianta ignorar o que acontece nas escolas, nas turmas, nas salas de aula. É preciso processos de consulta, de construção conjunta com professores e familiares. Não há alternativa. Todas as decisões tomadas sem passar por esse processo são chutes informados, como se diz em economia. A qualidade da informação do chute é baixa, alheia ao processo de ensino e aprendizagem. O caminho é fazer o óbvio: consultar professores, alunos e familiares, fazer grandesprocessos avaliativos e tomar decisões baseadas na ciência pedagógica.
Muitas universidades públicas vieram buscando se preparar para oferecer o ensino remoto de forma responsável, nas condições adversas em que nos encontramos, para não deixar ninguém para trás. Pode compartilhar conosco como vem sendo sua experiência como professor de uma universidade pública, a USP, nesse processo, dando aulas remotamente?
Não cheguei a conhecer pessoalmente meus alunos, porque a pandemia chegou antes, mas tivemos que fazer um trabalho de reforço com muitos deles. São quase 200 alunos, que tenho que acompanhar, no dia a dia. Para se fazer um trabalho de educação remota qualificado, o grau de esforço do professor é vinte vezes maior. Na educação presencial, uma série de processos são facilitados, de diálogo, de construção, de explicação, para tirar dúvidas, oferecer leituras. Na educação remota, isso não é possível.Eu, na verdade, sou um privilegiado. Leciono em uma universidade que ofertou kits e emprestou equipamentos para que os alunos pudessem participar das aulas a distância, ficamos três meses, quase quatro, discutindo como iria sedar a continuidade do semestre, tudo muito bem costurado. Estou muito feliz com o grau de dedicação da comunidade universitária. Mas o aspecto mais forte no processo de ensino e aprendizagem é que os alunos não aprendem só com o professor, aprendem também entre eles, há criação de um ambiente de aprendizagem na sala de aula. E agora não temos isso. Se o aluno está com dificuldade em uma questão,retorno para responder para ele ou ela, especificamente para ele ou ela. E converso, peço resenha de checagem de leitura, corrijo a resenha, chamo para conversar se for o caso. É um trabalho muito mais extenuante. Se eu estivesse em sala de aula presencial, teria um resultado muito melhor, com mais eficiência e com esforço muito menor.Leciono Fundamentos Econômicos da Educação. Não vou conseguir chegar no patamar mais alto pretendido. Vai ser bom, mas não vai ser o ideal.
Que saldo, que lição considera possível obtermos deste ano letivo de 2020 e que cenário pós-pandemia você antevê?
Bem, ainda estamos em processo. Mas, por ora, o saldo é negativo, porque, de fato, as decisões estão sendo tomadas de forma alheia ao direito à educação.A boa notícia é que, em educação, tudo é reversível. A capacidade dos seres humanos de aprender é infinita. A verdade mais real é essa. Não existe limite para o aprendizado humano. E como não existe limite, se tivermos capacidade de tomarmos decisões certas, podemos equacionar. O que me preocupa concretamente é que não estamos sendo governados por pessoas que se preocupam com o direito à educação. Temos que enfrentar uma situação muito adversa para a realização desse direito.
Daniel Cara éprofessor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ampla rede de defesa da educação pública no país, que elaborou o indicador Custo Aluno Qualidade (CAQ), incluído no Plano Nacional de Educação 2014-2014 (PNE). É cientista político e doutor em Educação pela USP.Integra o Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e foi membro titular do Fórum Nacional de Educação (2010-2017). Pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação atua no Congresso Nacional em favor da aprovação da PEC 26/2020, que torna permanente o Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb).
Eliane Bardanachvili é doutora pelo Instituto de Comunicação e Informação Tecnológica em Saúde (Icict) da Fiocruz, com tese na área de Jornalismo e Saúde, e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFRJ. É jornalista, professora e pesquisadora em políticas públicas de Educação e Saúde, atuando, neste momento, no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz). Entre 2017 e 2018, integrou o corpo docente da Faculdade de Comunicação Social da Uerj, como professora substituta.